seguinte, estou na capitania na hora combinada, com Maturette. Um marinheiro sobe conosco e saimos do porto com bom vento. Duas horas depois, enquanto estamos bordejando para dentro e para fora do porto, chega um navio de guerra e se aproxima de nos. No conves, alinhados, estao os oficiais e os marinheiros, todos de branco. Passam perto e dao a volta em torno do nosso barco, gritando “Hurra!”, e abaixam duas vezes a bandeira. E uma saudacao oficial, cujo significado nao entendo. Voltamos para a capitania, onde o navio de guerra ja esta atracado. Tambem amarram nosso barco no cais. Um marinheiro nos faz sinal para segui-lo e subimos a bordo, onde o comandante nos recebe no alto da escada. Um apito modulado sauda nossa chegada e, apos nos haver apresentado aos oficiais, ele nos faz passar diante dos alunos e dos suboficiais, alinhados em posicao de sentido. O comandante pronuncia algumas palavras em ingles e, a seguir, ordena o “fora de forma”. Um jovem oficial me explica que o comandante acaba de dizer aos alunos quanto merecemos o respeito dos marinheiros por havermos feito, nessa pequena embarcacao, uma viagem tao longa, e que iamos fazer outra ainda maior e mais perigosa. Agradecemos ao oficial por tanta honra. Ele nos presenteia com tres capotes de oleado, que nos serao muito uteis mais tarde. Sao impermeaveis pretos, com um grosso fecho frances e o respectivo capuz.

Dois dias antes da partida, o Dr. Bowen nos procura para nos pedir, por parte do superintendente da policia, que levemos conosco tres degredados que chegaram aqui faz uma semana. Foram desembarcados na ilha e seus companheiros voltaram para a Venezuela, segundo dizem. Nao estou gostando disso, mas fomos tratados com demasiada nobreza para podermos recusar receber esses tres homens a bordo. Peco para falar com eles antes de dar minha resposta. Um carro da policia vem me buscar. Sou levado para falar com o superintendente, o oficial cheio de galoes que nos interrogou quando da nossa chegada. O sargento Willy serve de interprete.

– Como vai o senhor?

– Bem, obrigado. Estamos precisando que voces nos prestem um servico.

– Se for possivel, com muito prazer.

– Temos, na cadeia, tres franceses degredados. Eles vem vivendo clandestinamente ha algumas semanas na ilha e alegam que seus companheiros os desembarcaram e foram embora. Achamos que afundaram o barco, mas eles dizem que nem sabem dirigir uma embarcacao. Talvez seja uma manobra para que lhes fornecamos um barco. Precisamos manda-los embora: seria lamentavel, se eu me visse obrigado a entrega-los ao comissario do primeiro navio frances de passagem.

– Senhor superintendente, vou fazer o impossivel para atende-lo, mas antes quero falar com eles. O senhor deve compreender que e perigoso acolher a bordo tres desconhecidos.

– Compreendo. Willy, de ordem para os tres franceses sairem ao patio.

Quero conversar sozinho com eles e peco ao sargento que se retire.

– Voces sao degredados?

– Nao, somos “duros” (forcados).

– Por que disseram que eram degredados?

– A gente pensava que eles preferem um homem que cometeu alguns pequenos delitos do que um cara que cometeu algum crime muito grave. Ve-se que estavamos enganados. E voce, quem e?

– Um “duro”.

– Nao te conhecemos.

– Eu sou do ultimo comboio; e voces?

– Do comboio de 1929.

– E eu de 27 – diz o terceiro.

– O negocio e o seguinte: o superintendente me chamou para me pedir que levassemos voces a bordo, onde ja somos tres. Ele diz que, se eu nao aceitar, como nenhum de voces sabe manejar um barco, ele sera obrigado a entrega-los ao primeiro navio frances que passar. Que e que voces acham?

– Por motivos que sao so da nossa conta, nao queremos voltar para o mar. Poderiamos fingir que partimos com voces, voce nos deixa na ponta da ilha e continua a sua fuga.

– Nao posso fazer isso.

– Por que?

– Porque nao quero pagar com uma sujeira as atencoes que tiveram conosco.

– Mas eu acho, companheiro, que, antes dos rosbifes, voce deve ajudar os duros.

– Por que?

– Porque voce tambem e um duro.

– Sim, mas ha tantas especies de duros, que talvez haja mais diferenca entre mim e voces do que entre mim e os rosbifes, depende do ponto de vista.

– Entao voce vai deixar que nos entreguem as autoridades francesas?

– Nao, mas tambem nao vou desembarcar voces antes de Curacau.

– Nao tenho coragem de recomecar – diz um deles.

– Escutem, vejam primeiro o meu barco. Talvez aquele com que voces vieram fosse ruim.

– Bem, vamos experimentar – dizem os dois outros.

– Muito bem. Vou pedir ao superintendente licenca para voces verem o barco.

Acompanhados pelo sargento Willy, vamos para o porto. Os tres sujeitos parecem ter mais confianca depois que veem o barco.

NOVA PARTIDA

Partimos dois dias depois, nos tres e mais os tres desconhecidos. Nao sei como souberam da noticia, mas uma duzia das mulheres dos bares assistem a partida, bem como a familia Bowen e o capitao do Exercito da Salvacao. Como uma das mulheres me abraca, Margaret me diz, rindo:

– Henri, como voce ficou noivo tao depressa? Isso nao esta direito!

– Ate logo para todos. Nao, adeus! Mas fiquem sabendo que voces deixaram em nossos coracoes uma marca tao grande, que nunca se apagara.

E as 4 horas da tarde partimos, puxados por um rebocador. Fomos muito rapidos ao sair da barra, nao deixando de enxugar uma lagrima e de olhar ate o ultimo momento o grupo que veio nos dizer adeus e que agita grandes lencos brancos. Logo que e desamarrado o cabo que nos liga ao rebocador, todas as velas se inflam e enfrentamos as primeiras dos milhoes de ondas que teremos de furar antes de chegar ao destino.

Ha duas facas a bordo, uma comigo, outra com Maturette.

O machado esta perto de Clousiot, bem como o facao. Temos certeza de que nenhum dos outros esta armado, mas combinamos que nunca nos tres vamos dormir ao mesmo tempo durante a viagem. Ao por do sol, o navio-escola nos acompanha perto de meia hora, sauda-nos e vai embora.

– Como e que voce se chama?

– Leblond.

– Que comboio?

– Vinte e sete.

– Qual e a pena?

– Vinte anos.

– E voce?

– Kergueret. Comboio 29, quinze anos, sou bretao.

– Voce e bretao e nao sabe dirigir um barco?

– Nao.

– Eu me chamo Dufils e sou de Angers. Peguei a perpetua por causa de uma palavra cretina que eu disse no tribunal, do contrario teria tido dez anos no maximo. Comboio 29.

– Que palavra foi essa?

– Vou explicar. Matei minha mulher com o ferro de passar roupa. Durante os debates, um jurado me perguntou por que tinha usado um ferro de passar roupa para matar. Nao sei por que, respondi que a tinha matado com um ferro de passar roupa porque ela estava desrespeitando o vinco das minhas calcas. E foi por causa dessa frase idiota que eles me salgaram tanto, disse o meu advogado.

– De onde voces fugiram?

– De um campo de trabalho florestal chamado Cascade, a 80 quilometros de Saint-Laurent. Nao foi dificil partir porque gozavamos de muita liberdade. Eramos cinco, foi tudo facilimo.

– Como, cinco? E onde estao os outros dois?

Criou-se um silencio embaracoso. Clousiot entao disse:

– Camarada, aqui somos todos homens; como estamos juntos, nos precisamos saber. Desembuche.

– Eu vou contar tudo – disse o bretao. – De fato, eramos cinco na saida, mas os dois sujeitos de Cannes que estao faltando nos disseram que eram pescadores da costa. Eles nao tinham pago nem um tostao para a fuga e diziam que o trabalho deles a bordo valia mais que dinheiro. Ora, logo percebemos que nem um nem outro conheciam coisa alguma de navegacao. Corremos vinte vezes o risco de morrer afogados. A gente ia acompanhando a costa bem de perto, primeiro a Guiana Holandesa, depois a Inglesa e por fim Trinidad. Entre Georgetown e Trinidad, eu matei aquele que tinha dito que podia ser o capitao da fuga. Aquele cara merecia a morte, porque para viajar gratis ele enganou todo mundo quanto a sua capacidade de marinheiro. E o outro pensou que iam mata-lo tambem e num dia de temporal ele se jogou no mar por sua propria vontade, largando o leme do barco. Tivemos que nos arranjar como pudemos. A embarcacao ficou varias vezes cheia de agua, finalmente nos arrebentamos contra um rochedo e nos salvamos por milagre. Dou minha palavra de honra de que tudo o que disse e a pura verdade.

– E verdade – dizem os outros dois. – A coisa se passou exatamente assim e nos tres estavamos de acordo em matar aquele tipo. Que e que voce acha, Papillon?

– Nao estou em condicoes de ser juiz.

– Mas – insiste o bretao – o que voce teria feito em nosso caso?

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