impermeavel, para pendurar no cinto. Aperta-me nos bracos, batendo nas minhas costas, como fez com Antonio, torna a montar a cavalo e parte a toda brida.

OS INDIOS

Caminho ate 1 hora da tarde. Nao ha mais nenhuma arvore, nenhum mato, no horizonte. O mar esta brilhando, prateado, e acima dele o sol queima. Caminho descalco, meus sapatos estao sempre dependurados, um de cada lado do ombro esquerdo. No momento em que resolvo me deitar, parece-me que estou vendo ao longe, bem afastadas da praia, cinco ou seis arvores ou pedras grandes. Procuro calcular a distancia: 10 quilometros, talvez. Apanho metade de uma folha grande de coca e, mastigando-a, recomeco minha caminhada em um passo bastante rapido. Uma hora depois, identifico as cinco ou seis coisas: sao cabanas com teto de bambu, ou de palha, ou de folhas marrom-claro. De uma delas esta saindo fumaca. Em seguida, vejo pessoas e elas ja me viram. Percebo que um grupo grita e faz gestos na direcao da praia. Vejo, entao, quatro barcos que se aproximam rapidamente da praia e desembarcam umas dez pessoas. Todos estao reunidos diante das casas e olham para mim… Vejo nitidamente que tanto os homens como as mulheres estao nus, tem somente alguma coisa presa na frente para esconder o sexo. Caminho devagar na direcao deles. Tres estao segurando arcos, com flechas na mao. Nao fazem gestos, nem de hostilidade, nem de amizade. Um cachorro comeca a latir e, irritado, se lanca sobre mim. Acaba me mordendo na parte de baixo da barriga da perna e arranca um pedaco da calca… Quando torna a investir, e atingido no traseiro por uma pequena flecha, saida nao sei de onde (depois fiquei sabendo: de uma zarabatana), foge ganindo e parece entrar numa casa. Aproximo-me mancando, pois a mordida foi realmente seria. Paro a apenas 10 metros do grupo. Nenhum deles se mexe nem diz nada, as criancas ficam atras das maes. Os corpos, cor de cobre, nus, musculosos, sao esplendidos. As mulheres tem seios empinados, duros e firmes, com bicos enormes. So uma delas tem seios grandes e caidos.

A aparencia de um deles e tao nobre, seus tracos sao tao finos, sua raca e de uma nobreza que se manifesta tao claramente, que caminho diretamente em sua direcao. Ele nao tem arco nem flecha. E tao alto como eu, seus cabelos estao bem cortados, com uma franja comprida que se detem na altura das sobrancelhas. Suas orelhas estao escondidas pelos cabelos, que, na parte de tras, chegam a altura do lobulo das orelhas e sao negros como azeviche, quase violeta. Seus olhos sao cinzentos como ferro. Nao tem um so pelo, quer no peito, quer nos bracos, quer nas pernas. As coxas, cor de cobre, sao musculosas, as pernas sao bem torneadas e esbeltas. Esta descalco. A 3 metros dele, paro. Ele, entao, da dois passos e me olha fixamente nos olhos. Esse exame dura dois minutos. O rosto, onde nada se move, parece o de uma estatua de cobre de olhar severo. Depois, ele sorri e me toca o ombro. Em seguida, todos me tocam e uma jovem india me segura pela mao e me leva a sombra de uma das cabanas. La, ela ajeita a perna da minha calca. Todo mundo esta em volta, sentado em circulo. Um homem me estende um cigarro aceso, aceito-o e comeco a fumar. Todos riem da minha maneira de fumar, pois eles – tanto os homens como as mulheres – fumam com a brasa dentro da boca. A ferida nao esta mais sangrando, mas falta um pedaco mais ou menos do tamanho da metade de uma moeda de 5 francos. A mulher arranca os pelos e, quando tudo ja esta bem depilado, lava a ferida com a agua do mar que uma indiazinha fora buscar. Com a agua, ela pressiona, para fazer o sangue correr outra vez. Ainda nao satisfeita, espeta cada lesao com um ferro pontudo. Como todo mundo esta me olhando, esforco-me para nao me agitar. Outra india jovem quer ajuda-la, mas ela a repele com dureza. Todos riem desse gesto. Compreendo que ela quisera mostrar a outra que eu lhe pertencia com exclusividade e que foi por isso que todos riram. Depois, ela corta as duas pernas da minha calca logo acima dos joelhos. Sobre uma pedra, prepara algas do mar que lhe trouxeram, coloca-as sobre a ferida e prende-as com o pano tirado da calca. Contente com seu trabalho, faz-me sinal para que eu me levante.

Levanto-me, comeco a tirar a roupa. Neste momento, ela ve logo abaixo do colarinho uma borboleta que me fiz tatuar perto da base do pescoco. Olhando-a e descobrindo outras tatuagens, dispoe-se a me tirar a camisa ela mesma, para ver melhor. Todos, homens e mulheres, estao muito interessados nas tatuagens de meu peito: a direita, algemas de Calvi; a esquerda, uma cabeca de mulher; sobre o estomago, o focinho de um tigre; sobre a coluna vertebral, um grande marinheiro crucificado e sobre toda a largura dos rins uma cena de caca com cacadores, palmeiras, elefantes e tigres. Ao perceberem essas tatuagens, os homens afastam as mulheres e se poem a examinar longamente, minuciosamente, cada tatuagem, tocando-a. Cada um da a sua opiniao e, antes de todos, o chefe. A partir desse momento, estou aceito pelos homens. As mulheres me haviam aceitado desde o inicio, quando o chefe sorrira e me tocara o ombro.

Entramos na maior das cabanas e la eu me sinto completamente desconcertado. O chao e de terra batida, vermelha, cor de tijolo. A cabana tem oito portas, e redonda, as vigas suportam redes de cores vivas, feitas de pura la. No centro, uma pedra redonda e achatada, castanha e polida, cercada de outras pedras chatas para servirem de assento. Nas paredes, varios fuzis de cano duplo e um sabre militar. Espalhados por toda parte, arcos de variadas dimensoes. Noto tambem uma carapaca de tartaruga na qual um homem, poderia se deitar, um fogao de pedras secas bem dispostas umas sobre as outras, sem qualquer indicio de cimento. Sobre a mesa, metade de uma cabaca contendo no fundo uns dois ou tres punhados de perolas. Num chifre de boi, dao-me para beber um suco de fruta fermentado, agridoce, muito bom; em seguida, sobre uma folha de bananeira, trazem-me um peixe grande de pelo menos 2 quilos, assado sobre a brasa. Convidam-me a comer e eu como lentamente. Quando acabo o peixe, que estava delicioso, a mulher me toma pela mao e me leva a praia, onde lavo as maos e a boca com a agua do mar. Depois, voltamos. Com os outros sentados em circulos e a jovem india a meu lado, a mao na minha coxa, tentamos trocar algumas informacoes a nosso respeito por meio de gestos e palavras.

Num movimento unico, o chefe se levanta, vai ate o fundo da cabana, volta com um pedaco de pedra branca e faz desenhos sobre a mesa. Comeca por desenhar indios nus, a aldeia deles e depois o mar. A direita do povoado indigena, casas com janelas, homens e mulheres vestidos. Os homens aparecem com um fuzil na mao ou com um pedaco de pau. A esquerda, outro povoado, homens com fuzil e chapeu, caras antipaticas, mulheres vestidas. Depois de eu ter observado bastante os desenhos, ele percebe que esquecera qualquer coisa e desenha um caminho que vai da aldeia indigena ao povoado da direita e outro que segue pela esquerda, na direcao do outro povoado. Para me indicar como eles estao colocados em relacao a aldeia, ele desenha na costa venezuelana, a direita, um sol, representado por um circulo do qual saem raios em todas as direcoes e, na costa colombiana, do lado da outra aldeia, um sol cortado no horizonte por urna linha sinuosa. Nao havia como se enganar: de um lado, o sol nascia; do outro, se punha. O jovem chefe olha com orgulho para sua obra. Todos a olham, cada um por sua vez. Quando percebe que compreendi mesmo o que ele queria dizer, empunha novamente o giz e cobre de tracos os povoados de ambos os lados, deixando intata somente a sua aldeia. Compreendo que ele quer me dizer que as pessoas daqueles lugares sao mas, que ele nao quer nada com elas e so a sua aldeia e boa. A quem o diz!

Limpam a mesa com um pedaco de la molhada. Depois que ela secou, ele me da o giz e cabe a mim contar a minha historia em desenhos. E mais complicada do que a dele. Desenho um homem com as maos amarradas, com dois homens armados que o vigiam; depois, faco o mesmo homem correr, perseguido pelos dois com os fuzis. Faco tres vezes a mesma cena e a cada vez me distancio mais dos meus perseguidores; na ultima, os policiais param e eu continuo a correr, na direcao da aldeia, que desenho com os indios, com o cao e, adiante deles, o chefe de bracos abertos para mim.

Meu desenho nao deve ter saido tao ruim. pois, em seguida a umas conversas bastante longas entre os homens, o chefe abre os bracos, tal como no meu desenho. Eles tinham compreendido.

Nessa mesma noite, a india me leva para a cabana dela, onde vivem seis indias e quatro indios. Instala uma magnifica rede de la, muito larga, onde duas pessoas podem facilmente dormir atravessadas. Eu me deito na rede, mas ao comprido; ela entao se deita numa outra rede, no sentido da largura. Faco a mesma coisa e ela vem se deitar a meu lado. Toca o meu corpo, as orelhas, os olhos, a boca, com seus dedos longos e finos mas muito nodosos, cheios de cicatrizes pequenas e estriadas. Sao as feridas feitas nas conchas, quando ela mergulha para apanhar ostras com perolas. Quando acaricio seu rosto, ela me pega a mao, espantada de ve- la fina e sem marcas. Depois desse momento na rede, a gente se levanta e vai para a cabana grande do chefe. Dao-me os fuzis para examinar: sao de calibre 12 e 16, de Saint-Etienne. Ha seis caixas cheias de cartuchos de chumbo tipo zero-zero.

A india e de estatura mediana, tem os olhos cinzentos cor de ferro como os do chefe, seu perfil e muito puro, os cabelos trancados lhe chegam ate os quadris e sao repartidos ao meio. Seus seios sao admiravelmente bem feitos, altos e em forma de pera. Os bicos sao mais escuros do que a pele cor de cobre e sao grandes. Quando beija, ela morde, nao sabe beijar. Rapidamente eu lhe ensino a beijar a maneira civilizada. Quando caminhamos, nao quer andar do meu lado e nao e possivel fazer nada, pois ela vem andando atras de mim. Uma das cabanas nao tem moradores e esta em mau estado. Auxiliada pelas outras mulheres, ela ajeita o teto com folhas e endireita o muro com aplicacoes de uma terra vermelha cheia de argila. Os indios possuem todos os tipos de ferramentas cortantes; facas, facoes, sabres, machados, enxadas e um ancinho com dentes de ferro. Ha utensilios de cobre e de aluminio, regadores, panelas, uma mo de esmeril, um forno, toneis de ferro e de madeira. Redes desmesuradamente grandes, de pura la, enfeitadas com franjas trancadas e desenhos de cores muito violentas, vermelho-sangue, azul-da-prussia, negro tom de azeviche, amarelo-canario. Logo a casa esta pronta e ela comeca a trazer coisas recebidas das outras indias (ate um arreio de burro), um tripe de ferro para colocar sobre o fogo, uma rede onde quatro adultos poderiam dormir atravessados, vidros, latas, panelas, etc.

Ha quinze dias que cheguei, nos nos acariciamos mutuamente, mas ela se recusa violentamente a ir ate o fim. Nao compreendo, pois foi ela quem me provocou e, quando chega a hora, nao quer Nao se cobre nunca com pano algum, a unica roupa que usa e o cache-sexe, preso a sua cintura estreita por uma cordinha bastante fina; as nadegas permanecem inteiramente nuas. Instalamo-nos sem cerimonia alguma na cabana, que tem tres portas, a da entrada principal e duas outras em posicoes opostas. Na circunferencia da cabana, que e redonda, essas tres portas formam um triangulo isosceles. Cada uma das portas tem sua propria razao de ser. Eu, por exemplo, devo entrar e sair pela porta do norte. Ela deve sempre entrar e sair pela porta do sul. Nao devo entrar ou sair pela sua porta e nem ela deve utilizar a minha. Os amigos entram pela porta principal e tanto eu como ela so a devemos usar quando acompanhados de visitas.

Foi so depois que nos instalamos na casa que ela se entregou a mim. Nao quero entrar em pormenores, mas era uma amorosa ardente e habil por intuicao, que se enrolava em mim como um cipo. Escondidos de todos, sem excecao, eu a penteio e lhe faco as trancas nos cabelos. Ela fica feliz quando a penteio, uma felicidade indescritivel pode ser vista em seu rosto juntamente com o medo de que nos surpreendam, pois percebo que um homem nao deve pentear sua mulher, nem polir-lhe as maos com uma pedra semelhante a pedra-pomes, nem beijar-lhe de determinada maneira a boca e os seios.

Lali (e o nome dela) e eu nos instalamos, portanto, na casa. Ha uma coisa que me surpreende: ela nunca usa as frigideiras ou as panelas de ferro ou de aluminio, nunca bebe num copo de vidro, faz tudo nos recipientes de barro fabricados por eles proprios.

O regador serve para nos lavarmos, com a pedra. As necessidades sao feitas no mar.

Vou observar o trabalho de abertura de ostras e busca de perolas. Sao as mulheres mais velhas que o fazem. Cada mulher jovem que pesca perolas tem a sua sacola. As perolas encontradas nas ostras sao repartidas da seguinte maneira: uma parte para o chefe, que representa a comunidade; uma parte para o pescador; meia parte para a mulher que abre as ostras; e uma parte e meia para a mergulhadora. Quando vive com a familia, ela da as perolas a seu tio, irmao de seu pai. Nunca compreendi por que e o tio tambem quem entra em primeiro lugar na casa dos noivos que estao em vias de se casar, coloca o braco da mulher em volta da cintura do marido e poe o braco direito do homem em torno da cintura da mulher, de maneira que o dedo indicador entre no umbigo. Depois de fazer isso, vai embora.

Vejo, pois, a abertura das ostras, mas nao vejo a pesca, ja que nao me convidaram a entrar na canoa. Eles pescam bem longe da costa, a cerca de 500 metros. Ha dias em que Lali volta toda arranhada nas coxas ou nos flancos pelo coral. As vezes sai sangue das feridas. Entao, ela prepara uma pasta de algas marinhas e a aplica sobre os ferimentos. Nao faco coisa alguma sem que me tenham feito sinais convidando-me a faze-la. Nunca entro na cabana do chefe sem que alguem ou ele proprio me pegue pela mao e me leve la. Lali esta desconfiada de que tres mocas indias da idade dela se deitam no capim o mais perto possivel da porta da nossa

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