tres pedras com um fogo que esta sempre aceso, a gente percebe. Ele nao dorme numa rede e sim numa especie de cama feita com galhos de arvores e a mais de 1 metro do chao. A tenda e bastante grande, deve ter uns 20 metros quadrados. Nao tem paredes: do lado por onde vem o vento ha alguns arbustos. Vi duas cobras, uma de cerca de 3 metros, da grossura de um braco; a outra, com mais ou menos 1 metro, tinha um V amarelo na cabeca. Pensei: “Devem comer as galinhas e os ovos”. Nao compreendo como podem conviver dentro dessa tenda com as cabras, as galinhas, as ovelhas e tambem um jumento. O indio velho me examina de cima a baixo, me faz tirar as calcas transformadas num short por Lali e, quando estou nu como um verme, faz com que me sente sobre uma pedra perto do fogo. Poe no fogo umas folhas verdes que fazem muita fumaca e cheiram a hortela. A fumaca me envolve a ponto de sufocar, mas quase nao tusso e durante uns dez minutos espero que isso passe. Depois, ele queima as minhas calcas e me da dois cache-sexe de indio, um de couro de carneiro e outro de cobra, mole como uma luva. Coloca no meu braco um bracelete feito com tiras de couro trancado de cabra, de carneiro e de cobra. E um bracelete com 10 centimetros de largura e se prende por intermedio de uma tira de couro de cobra que a gente aperta ou afrouxa a vontade.

No tornozelo esquerdo, o feiticeiro tem uma ferida do tamanho de uma moeda de 2 francos, coberta de moscas. De vez em quando, ele as enxota e, nas horas em que elas insistem demais, espalha cinza em cima da chaga. Aceito pelo feiticeiro, disponho-me a partir, quando ele me da uma faca de madeira menor do que aquela que me envia quando quer me ver. Em poucos minutos, Lali me explicaria que, quando quisesse ver o feiticeiro, de agora em diante, eu deveria lhe mandar essa faca pequena e, se ele concordasse em me receber, me mandaria a grande. Antes de deixa-lo, observei como seu rosto magro e seu pescoco sao cheios de rugas. Sua boca tem apenas cinco dentes: tres embaixo e dois em cima, na frente. Os olhos, amendoados como os de todos os indios, possuem nas palpebras tanta pelanca, que, quando elas se fecham, formam duas bolotas. Nao tem cilios nem sobrancelhas. Os cabelos sao lisos e negros, caidos, aparados na altura dos ombros, com uma franja igual a de todos os demais indios, a altura das sobrancelhas.

Vou-me embora e me desagrada ficar com a bunda de fora. Sinto-me gaiato. Mas, afinal, vai por conta da fuga! E preciso levar os indios a serio e a liberdade compensa alguns inconvenientes. Lali ve o cache-sexe e, rindo, mostra todos os dentes, que alias sao tao bonitos como as perolas que ela pesca. Examina o bracelete e a outra tanguinha de cobra. Para ver se fui submetido a fumaca, ela me cheira. Os indios, diga-se de passagem, tem o olfato muito desenvolvido.

Acostumei-me a essa vida e percebi que era preciso nao continuar nela por muito tempo mais, pois podia acontecer que eu perdesse a vontade de ir embora. Lali me observa sempre, ela gostaria de me ver participando mais ativamente da vida em comum. Por exemplo, ela me viu sair na pesca de peixes, sabe que eu remo bem e sou capaz de dirigir a canoa pequena e leve. Dai a querer que eu dirija o barco em que ela sai nao ha muita distancia. No entanto, isso nao me convem. Lali e a melhor mergulhadora da aldeia, o barco dela e sempre aquele que traz as ostras maiores e em maior quantidade, pescadas mais no fundo. Sei tambem que o jovem pescador que a leva no barco e o irmao do chefe. Indo com Lali, eu o prejudicaria; portanto, e uma coisa que nao devo fazer. Quando Lali me ve pensativo, ela chama outra vez a irma, que vem correndo, alegre, e entra na casa pela minha porta. Isso deve ter uma significacao importante. Por exemplo, elas chegam juntas diante da porta maior, que da para o mar; ali, elas se separam, Lali faz uma volta e entra pela porta dela, enquanto Zoraima, a garota, vai passar pela minha porta. Os seios de Zoraima nao sao maiores do que tangerinas e seus cabelos nao sao compridos: sao cortados na altura do queixo e a franja que cobre a testa desce alem das sobrancelhas, chega quase ao comeco das palpebras. Cada vez que ela vem, chamada pela irma, as duas tomam banho e, ao entrarem, tiram o cache- sexe, que fica pendurado na rede. A garota vai embora sempre triste, pelo fato de eu nao a ter possuido. Outro dia, nos estavamos os tres deitados na rede, Lali no meio; ela se levantou e me deixou colado ao corpo nu de Zoraima.

O indio que pesca com Lali se feriu no joelho, um ferimento grande e profundo. Os outros o levaram ao feiticeiro e ele voltou com um emplastro de argila branco. Nessa manha, portanto, tive de ir pescar com Lali. Entramos na agua com o barco da maneira usual e nos saimos bem. Levei-a um pouco mais longe do que costumava. Ela esta radiante de me ver ali, com ela, na canoa. Antes de mergulhar, passa oleo no corpo. Imagino que no fundo negro do mar, que estou observando, a agua deve ser um bocado fria. Tres barbatanas de tubarao passam bastante perto de nos, eu as aponto, mas ela nao lhes da nenhuma importancia. Sao 10 horas da manha, o sol brilha. Com a sacola presa ao braco esquerdo, com o facao embainhado preso a cintura, ela mergulha; e, ao mergulhar, nao empurra a canoa com os pes, como faria normalmente outra pessoa qualquer. Com incrivel rapidez, desaparece no fundo escuro da agua. Seu primeiro mergulho deve ter sido de exploracao, pois a sacola volta com poucas ostras. Vem-me uma ideia. A bordo ha um rolo de corda de couro. Amarro a ponta na sacola, entrego-a a Lali e desenrolo a corda na medida em que Lali vai descendo, levando a sacola e a corda. Ela deve ter compreendido a manobra, pois retorna sem a sacola, apos um demorado mergulho. Segura ao barco para descansar, ela me faz sinal para puxar a sacola. Puxo-a, mas, num dado momento, ela parece ter ficado presa em algum coral. Ela mergulha e a desprende, de modo que a sacola acaba chegando, cheia pela metade. Esvazio-a no barco. Em oito mergulhos de 15 metros, nessa manha, a canoa fica quase cheia. Quando Lali sobe, ficam faltando so dois dedos para que a agua entre no bote. Ele esta tao cheio de ostras, que, quando vou puxar a ancora, verifico que corremos o risco de afundar. Entao deixamos a ancora presa pela corda a um remo, que fica flutuando e assinalando o lugar para voltarmos. Chegamos a terra sem incidentes.

A velha nos espera e o indio que acompanha Lali esta na areia seca, no lugar onde, apos a pesca, eles costumam abrir as ostras. Esta contente com o fato de nos termos trazido tantas ostras. Lali parece explicar-lhe o que eu fiz, amarrando a sacola na corda, aliviando-lhe o esforco da subida e permitindo que ela ponha mais ostras dentro dela. Ele examina o no que eu dei na corda para prende-la ao saco. Experimenta desfaze-lo e, logo na primeira tentativa, consegue refaze-lo com muita pericia. Entao me olha, muito orgulhoso.

Abrindo as ostras, a velha encontra treze perolas. Lali, que habitualmente nao fica nunca para essa operacao e espera em casa que lhe levem a parte dela, permaneceu ate que abrissem a ultima ostra- Comi pelo menos tres duzias. Lali comeu cinco ou seis. A velha separa as perolas, que sao mais ou menos do mesmo tamanho, do tamanho de urna ervilha. Tres perolas para o chefe, tres para mim, duas para a velha, cinco para Lali. Lali recebe as tres perolas que me cabem e as entrega a mim. Eu as recebo e as entrego ao indio machucado. Ele nao quer recebe-las, mas eu lhe abro a mao, ponho as perolas dentro dela e torno a fecha-la. Entao aceita. Sua mulher e sua filha observam a cena um tanto afastadas do nosso grupo e estavam em silencio, mas agora comecam a rir e se aproximam. Ajudo o pescador a se deslocar ate a cabana dele.

Esta cena se repete durante cerca de duas semanas. Todos os dias, entrego as perolas ao pescador. Ontem, das seis que nos couberam, guardei uma. Chegando em casa, obriguei Lali a come-la. Ela ficou touquinha de alegria e cantou a tarde toda. De vez em quando, vou ver o indio branco. Ele me disse que se chama Zorrillo, que em espanhol quer dizer raposinha. Falou que o chefe lhe pedira para me Perguntar por que eu nao fazia a tatuagem do focinho de tigre que fora pedida. Expliquei-lhe que nao sei desenhar bem. Com a ajuda do dicionario, peco-lhe para me trazer um espelho retangular com a superficie do meu peito, papel transparente, um pincel fino, um tinteiro e papel-carbono (ou, se ele nao o encontrar, um crayon grande e grosso). Digo-lhe tambem para trazer roupas do meu tamanho e guarda-las na casa dele com tres camisas caquis. Fico sabendo que a policia lhe fez perguntas sobre Antonio e sobre mim. Ele lhes respondeu que eu tinha passado para a Venezuela pelas montanhas e que Antonio tinha sido mordido por uma cobra e estava morto. Disse-me tambem que os franceses estao na prisao em Santa Marta.

Na casa de Zorrillo ha exatamente as mesmas coisas heterogeneas que na casa do chefe: muitos vasos decorados com desenhos de que os indios gostam, ceramicas de muita arte, tanto pelo formato como pelos desenhos e pelas cores; redes de pura la, magnificas, umas brancas, outras coloridas, com franjas; couros curtidos de cobras, lagartos e enormes sapos; cestos trancados, brancos e em cores. Segundo ele me falou, todos esses objetos sao feitos por indios da mesma raca dos da minha tribo, mas que vivem em uma regiao de vegetacao espessa, a 25 dias de viagem a pe, na direcao do interior. Desse lugar e que vem as folhas de coca e ele me da mais de vinte delas. Quando estiver deprimido, mastigarei uma. Despeco-me de Zorrillo, pedindo-lhe que, alem de todos os meus pedidos anotados, me trouxesse alguns jornais ou revistas em espanhol, pois com meu dicionario consegui aprender bastante em dois meses. Nao ha noticias de Antonio; ele sabe apenas que houve um novo choque entre guardas-costeiros e contrabandistas. Cinco guardas e um contrabandista morreram, o barco nao foi capturado. Jamais vi na aldeia uma gota sequer de alcool, a nao ser a bebida fermentada que e preparada com frutas. Enxergando uma garrafa de anis, peco-a, mas ele recusa. Se quiser, posso bebe-la aqui, mas nao posso leva-la. Esse albino e um sabio.

Deixo Zorrillo e me vou em um burrico que ele me emprestou e que amanha voltara sozinho a sua casa. Levo apenas um pacote de bombons de varias cores, enrolados um por um em papel fino, e sessenta macos de cigarro. Lali esta me esperando a mais de 3 quilometros da aldeia, com a irma; ela nao faz nenhuma cena e concorda em vir andando ao meu lado, abracada. De vez em quando, ela para e me beija a maneira civilizada, na boca. Quando chegamos, vou ver o chefe e lhe ofereco os bombons e os cigarros. Sentamos a porta, diante do mar. Tomamos a bebida fermentada, que, para ficar fresca, e guardada em moringas. Lali se senta a minha direita, com os bracos em volta da minha coxa; sua irma se senta a minha esquerda, na mesma posicao. Elas comem os bombons. O pacote fica aberto diante de nos e as mulheres e as criancas se servem com discricao. O chefe empurra a cabeca de Zoraima para perto da minha e me faz compreender que ela quer ser minha mulher, como Lali. Lali faz gestos, segura seus proprios seios com as maos e depois mostra que Zoraima tem seios pequenos e que e por isso que nao a quero. Levanto os ombros e todo mundo ri. Percebo que Zoraima parece muito infeliz. Seguro-a nos meus bracos e entao envolvo seu pescoco e lhe acaricio os seios; ela fica radiante de felicidade. Fumo alguns cigarros; os indios experimentam e logo os rejeitam, preferem o cigarro deles, com a brasa dentro da boca. Cumprimento todos e pego Lali pelo braco para ir embora. Lali vem atras de mim e Zoraima a segue. Peixes grandes estao sendo assados na brasa, e sempre uma delicia. Coloquei no fogo uma lagosta de pelo menos 2 quilos. Comemos com prazer essa carne delicada.

Recebi o espelho, o papel fino, o papel para decalcar, um tubo de cola que eu nao tinha pedido, mas pode vir a ser util, varios crayons grandes meio duros, o tinteiro e o pincel. Penduro o espelho em um fio, deixando-o a altura do meu peito, ficando eu sentado. No espelho aparece claramente, com todos os pormenores e do mesmo tamanho, a cabeca do tigre. Lali e Zoraima, curiosas e interessadas, me observam. Faco os tracos com o pincel; como a tinta escorre, uso a cola, misturando-a com a tinta e, a partir de entao, vai tudo bem. Depois de tres sessoes de uma hora de trabalho cada, consigo ter no espelho a replica perfeita da cabeca do tigre.

Lali foi buscar o chefe, Zoraima pega minhas maos e as coloca em seus seios, ela exprime tanta tristeza e desejo no rosto, seus olhos exprimem tanta volupia e amor, que, sem saber bem o que faco, acabo por possui-la ali, no chao, no meio da cabana. Ela geme um pouco, mas seu corpo, tenso de prazer, me envolve e nao quer me largar. Com suavidade, me desprendo e vou tomar banho no mar, pois estou cheio de terra; ela vem atras de mim e nos nos lavamos juntos. Esfrego-lhe as costas, ela me esfrega as pernas e os bracos, voltamos para casa. Lali esta sentada no lugar onde nos nos deitamos e, quando entramos, ela percebe tudo. Levanta- se, poe os bracos em volta do meu pescoco e me beija com ternura. Depois pega a irma pelo braco, faz com que ela saia pela minha porta, enquanto a propria Lali sai pela dela. Ouco barulho fora, saio e vejo Lali, Zoraima e outras duas mulheres esforcando-se por furar a parede com um ferro. Percebo que elas vao fazer uma quarta porta. Para que a parede se abra sem rachar, elas a molham com o regador. Em pouco tempo, a porta esta feita. Zoraima remove os escombros da parte derrubada. De agora em diante, ela entrara e saira sempre por esta porta e nunca mais utilizara a minha.

Chega o chefe com tres indios e com o irmao, cuja perna ja esta quase cicatrizada. O chefe olha o desenho no espelho e se mira. Esta encantado de ver o tigre tao bem desenhado e de ver seu rosto. Nao compreende o que estou querendo fazer. O desenho esta seco: ponho o espelho deitado em cima da mesa, o papel transparente por cima, e comeco a copiar. E coisa muito facil e anda bastante depressa. O crayon meio duro acompanha os tracos com fidelidade. Em menos de meia hora, diante dos olhos interessados de todos, aparece um desenho tao perfeito como o original. Cada um dos indios segura a folha e a

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