casa. para tentarem ver ou ouvir o que fazemos quando ficamos sozinhos.
Ontem vi o indio que faz a ligacao entre a aldeia dos indios e o primeiro povoado colombiano, situado a 2 quilometros do posto da fronteira. Esse povoado se chama La Vela. O indio tem dois jumentos e uma carabina Winchester de repeticao; nao usa roupa alguma, limitando-se, como todos, ao
La pelas 5 horas, chegamos as margens de um riacho onde estao cinco casas de indios. Todos vem me ver. O indio fala, fala, fala, ate o momento em que chega um tipo que tem os olhos, os cabelos, o nariz, todos os tracos de um indio, exceto a cor. E branco, palido e tem os olhos vermelhos como os de um albino. Esta vestindo calcas caquis. Compreendo, entao, que o indio da minha aldeia nunca ultrapassa esse lugar aqui. O indio branco me diz:
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Ele fala o espanhol melhor do que eu e se percebe que sabe entrar em contato com os civilizados, organizando o comercio de maneira a defender encarnicadamente os interesses de sua raca. Na hora da partida, me da um colar feito com pecas de prata colombiana, muito brancas. Diz que e para Lali.
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Torno a partir, sozinho, e ainda nao havia percorrido a metade do caminho quando vejo Lali, na companhia de uma de suas irmas, muito jovem, que teria talvez doze ou treze anos. Lali tem, com certeza, uma idade entre dezesseis e dezoito anos. Lancando-se sobre mim como uma louca, ela me arranha o peito – pois protejo o rosto – e depois me morde cruelmente no pescoco. Custo a controla-la, empregando todas as minhas forcas. De repente, ela se acalma. Ponho a menina india montada no jumento e vou caminhando atras, abracado com Lali. Voltamos devagar a aldeia. Durante o retorno, mato uma coruja. Atirei nela sem saber o que era, apenas porque vira os olhos brilhando no meio da noite. Lali quer leva-la de qualquer maneira conosco e resolve amarra-la na sela do burrico. Chegamos de madrugada. Estou tao cansado, que quero tomar um banho. Lali me lava e, em seguida, na minha frente, tira o
Quando as duas voltam, estou sentado, esperando que a agua posta por mim no fogo esquente, para bebe-la com limao e acucar. Entao acontece uma coisa que eu so pude entender direito depois: Lali coloca sua irma entre as minhas pernas e poe os meus bracos em torno da cintura dela. Percebo que a garota esta sem o
Diante da casa esta sentado o indio que costuma guiar a canoa onde vai Lali. Percebo que esta esperando por ela. Ele sorri para mim e fecha os olhos, com uma expressao simpatica que significa que sabe que Lali esta dormindo. Sento-me a seu lado e ele me fala de coisas que nao entendo. E excepcionalmente musculoso, jovem, robusto como um atleta. Observa minhas tatuagens, examina-as longamente e depois me faz sinais de que gostaria que eu o tatuasse. Respondo-lhe que sim com um gesto de cabeca, mas parece que ele pensa que nao o compreendi. Chega Lali. Ela untou o corpo todo com oleo. Como sabe que eu nao gosto disso, me faz compreender que, com o tempo nublado, a agua deve estar muito fria. A mimica, feita meio a serio e meio na brincadeira, e tao graciosa que, fingindo que nao a compreendi, faco com que ela a repita varias vezes. Quando lhe faco sinal para recomecar uma vez mais, ela franze a boca de uma maneira que claramente significa; “Sera que voce e,. burro ou sera que eu sou incapaz para explicar por que passei oleo?”
O chefe passa diante de nos com duas indias. Elas carregam um enorme lagarto verde de pelo menos 4 ou 6 quilos e ele leva um arco e algumas flechas. Acabou de caca-lo e me convida a ir come-lo mais tarde. Lali lhe fala e ele me toca o ombro e aponta para o mar. Compreendo que posso ir com Lali, se eu quiser. Vamos os tres: Lali, seu habitual companheiro de pesca e eu. A pequena canoa, feita de madeira muito leve, e facilmente posta na agua. Eles a levam no ombro e entram na agua. O inicio da navegacao e curioso: o indio e o primeiro que sobe e se instala na popa, com um grande remo na mao. Lali, com a agua pela altura do busto, equilibra a canoa e a impede de recuar na direcao da praia. Subo e coloco-me no meio. Em seguida, num unico movimento rapido, Lali sobe e, ao mesmo tempo, com uma remada, o indio nos faz avancar mar adentro. As ondas vao aumentando de tamanho na medida em que a gente progride. A 500 ou 600 metros da praia, encontramos uma especie de canal, onde ja estao dois barcos pescando. Lali prende as trancas no alto da cabeca por meio de cinco tiras de couro vermelho, tres atravessadas, duas ao comprido, presas ao pescoco. Empunhando um facao, segue a haste de ferro de cerca de 15 quilos que serve de ancora e que o indio baixou ate o fundo. O barco esta ancorado, mas nao fica quieto, pois a cada onda sobe e desce.
Durante mais de tres horas, Lali desce ao fundo do mar e torna a subir. Nao se ve o fundo, mas, pelo tempo que ela leva, deve estar a uns 15 a 18 metros. Cada vez que ela sobe, traz o saco com ostras e o indio o esvazia na canoa. Durante essas tres horas, nem uma vez Lali subiu para cima do bote. Para descansar, ela fica cinco ou dez minutos agarrada a ele sem sair da agua. Mudamos duas vezes de lugar sem que Lali tenha entrado na canoa. No segundo lugar da nossa pesca, o saco vem com ostras mais numerosas e maiores. Dirigimo-nos para a terra. Lali sobe a canoa e as ondas nos levam rapidamente a praia. Uma india velha nos espera. Lali e eu a deixamos transportar as ostras para a areia seca, juntamente com o indio. Quando todas as ostras estao secas, Lali impede a velha de abri-las, pois faz questao de comecar ela propria. Depressa, com a faca, ela abre umas trinta ate encontrar uma perola. Nao preciso dizer que comi pelo menos umas duas duzias de ostras. A agua do fundo do mar deve ser fria, pois elas tambem estavam bastante frias. Delicadamente, Lali extrai a perola de dentro da ostra: e do tamanho de uma ervilha pequena. Uma perola grande, maior, provavelmente, que as perolas medias. E como brilha! A natureza lhe deu tons que mudam, embora discretos. Lali segura a perola com os dedos, coloca-a na boca e fica com ela ai durante um momento; depois retira-a e coloca-a na minha. Por meio de uma serie de gestos e movimentos do queixo, explica-me que quer que eu a esmague com os dentes e a engula. Diante da minha recusa inicial, sua suplica e tao bela, que eu faco aquilo que ela quer: trituro a perola com os dentes e engulo os fragmentos. Ela abre quatro ou cinco ostras e me faz come-las, para ajudar a engolir a perola. Parece uma crianca: abre minha boca, me faz deitar na areia e verifica se nao ficou nem um pedacinho preso entre os dentes. Deixamos os outros continuarem a trabalhar e nos vamos.
Ha um mes que estou ali. Nao ha engano possivel, pois vou marcando os dias num papel. Faz tempo que as agulhas chegaram, com tinta nanquim vermelha, azul, violeta. Na cabana do chefe descobri tres navalhas de barbear Solingen. Ele nunca as usa para se barbear, ja que os indios sao imberbes. Uma das navalhas serve para o corte gradual dos cabelos. Fiz uma tatuagem no braco de Zato, o chefe: um indio com plumas de todas as cores na cabeca. Ele ficou encantado e me fez compreender que nao queria que eu fizesse tatuagem alguma nos outros antes de lhe fazer uma grande tatuagem no peito. Quer a mesma carantonha de tigre que eu tenho, com dentes igualmente grandes. Acho graca, nao sei desenhar a ponto de fazer uma cabeca tao bonita. Lali me depilou o corpo todo. Logo que ve um pelo em mim, arranca-o e esfrega no lugar uma pasta feita de alga do mar e cinza. Parece-me que ha maior dificuldade, depois, para eles tornarem a crescer.
Essa comunidade india se chama Guajira. Eles vivem tanto na costa como na planicie interior que se estende ate o pe das montanhas. Nas montanhas vivem outras comunidades, chamadas Motilones. Nos anos seguintes, eu haveria de lidar com eles. Por intermedio do comercio, conforme ja expliquei, os guajiros tem contato com a civilizacao. Os indios da costa mandam ao indio branco perolas e tambem tartarugas. As tartarugas sao fornecidas vivas e chegam a pesar ate por volta de 150 quilos. Nunca, entretanto, elas chegam ao peso e ao tamanho das do Orinoco ou do Maroni, que atingem 400 quilos e cuja carapaca as vezes vai alem de 2 metros de comprimento e 1 metro no ponto de maior largura. Depois de viradas de barriga para cima, as tartarugas nao conseguem mais se desvirar. Vi algumas serem levadas depois de terem ficado tres semanas de costas no chao, sem comer e sem beber, e elas ainda estavam vivas. Os grandes lagartos verdes, por sua vez, sao otimos para comer. A carne deles e deliciosa, branca e mole; os ovos cozinhados na areia ao sol tambem sao muito saborosos. So o aspecto deles nao anima muito a come- los.
Cada vez que Lali volta da pesca, traz para casa as perolas que lhe cabem e as da para mim. Coloco-as num recipiente de madeira sem separar as grandes, as medias e as pequenas; ficam todas misturadas. Numa caixa de fosforos guardo separadas somente duas perolas cor-de-rosa, tres negras e sete cinzentas de aspecto metalico, fantasticamente belas. Guardo tambem uma perola barroca (*) grande que tem o formato e o tamanho de um grao de feijao branco. Essa perola barroca tem tres cores superpostas e, conforme o tempo, uma delas sobressai em relacao as outras: a parte negra, a parte cor de aco ou a parte prateada com reflexos cor- de-rosa. Gracas as perolas e a algumas tartarugas, nada falta a tribo. So que eles tem coisas que nao servem para nada e deixam de ter coisas que lhes poderiam ser uteis. Por exemplo: em toda a tribo nao ha um unico espelho. Para poder me barbear e me olhar, precisei encontrar – sem duvida, proveniente de um naufragio – uma placa de 40 centimetros, niquelada de um dos lados.
(*) Perola de superficie irregular.
Minha politica em relacao aos meus amigos e simples: nao faco coisa alguma que possa diminuir a autoridade e o saber do chefe e menos ainda a reputacao de um indio muito velho que vive a apenas 4 quilometros, no interior daquelas terras, cercado de cobras, duas cabras e uma duzia de carneiros e ovelhas. E o feiticeiro das diferentes aldeias de guajiros. Minha atitude faz com que ninguem me inveje e me olhe com ma vontade. Ao fim de dois meses, estou completamente adotado por todos. O feiticeiro tem tambem umas vinte galinhas. Nas duas aldeias que conheco nao ha cabras, nem galinhas, nem ovelhas, nem carneiros; concluo, portanto, que a posse de animais domesticos deve ser um privilegio do feiticeiro. Todo dia de manha, uma india (elas fazem rodizio) lhe leva peixe e ostras frescas num cesto posto sobre a cabeca. Leva-lhe tambem broinhas de milho, feitas no mesmo dia e assadas sobre pedras cercadas de fogo. As vezes – mas nao sempre -, elas voltam com ovos e leite coalhado. Quando o feiticeiro quer que eu va ve-lo, me manda pessoalmente tres ovos e uma faca de madeira bem polida. Lali me acompanha ate a metade do caminho e me espera a sombra de enormes cactos. Da primeira vez, ela pos a faca de madeira na minha mao e me fez sinal de ir adiante, na direcao de seu braco.
O indio velho vive no meio de uma sujeira enorme, numa tenda feita de couros de boi estendidos, com o lado peludo voltado para dentro. No interior da tenda ha