examina, comparando o tigre do meu peito com o do desenho. Faco Lali se deitar em cima da mesa, passo um pano ligeiramente umido em seu ventre, ponho a folha para decalcar e, por cima, a folha do desenho que acabei de fazer. Faco alguns tracos e o deslumbramento de todos chega ao auge quando surge na barriga de Lali uma pequena parte do desenho. E so neste momento que o chefe compreende que todo o trabalho que estou tendo e por ele.

Os seres que nao tem a hipocrisia de uma educacao de civilizados reagem com naturalidade na medida em que vao percebendo as coisas. E de imediato que ficam contentes ou descontentes, alegres ou tristes, interessados ou indiferentes. E espantosa a superioridade de indios puros como estes guajiros. Eles sao muito superiores a nos, pois, quando acolhem uma pessoa, dao-lhe tudo o que possuem; e, por sua vez, quando recebem dela qualquer atencao, por menor que seja, estas criaturas supersensiveis ficam profundamente emocionadas. Resolvi fazer as linhas gerais maiores do desenho com a navalha, de maneira que logo na primeira aplicacao o contorno da tatuagem estara definitivamente fixado. Depois completarei com tres. agulhas presas numa vareta. Na manha seguinte, comeco a trabalhar.

Zato esta deitado sobre a mesa. Transportei o desenho do papel fino para um outro papel branco mais resistente e, com um crayon duro, passo-o decalcando, para sua pele, ja preparada com um leite de argila branca que deixei secar. O traco fixa melhor na superficie coberta pelo po. O chefe fica estendido na mesa, duro, imovel, sem mexer sequer a cabeca, com medo de prejudicar o desenho, que lhe faco ver atraves do espelho. Faco os tracos com a navalha. Sai um pouquinho de sangue e, a cada vez que isso acontece, enxugo-o. Quando todas as linhas foram coitadas e um traco vermelho fino substituiu o traco do desenho, passo tinta nanquim azul por todo o peito. A tinta e rejeitada pelo sangue e so se fixa bem nos lugares onde o corte foi um pouco mais fundo, mas o desenho esta maravilhosamente nitido. Oito dias mais tarde, Zato pode exibir sua cabeca de tigre, a goela a mostra, a lingua vermelha, os dentes brancos, as narinas, o bigode negro, os olhos. Estou satisfeito com a minha obra: a cabeca desse tigre esta mais bela do que a do meu, seus tons estao mais vivos. Quando cai a casca da ferida, retoco alguns lugares com as agulhas. Zato esta tao contente, que pediu seis espelhos a Zorrillo, um para cada cabana e dois para a dele.

Passam os dias, passam as semanas e os meses. Estamos em abril e ha quatro meses que me encontro aqui. Minha saude e excelente. Estou forte e os pes, acostumados a andar descalcos, me permitem longas caminhadas sem cansaco algum, cacando lagartos grandes. Esqueci-me de dizer que, depois da minha primeira visita ao feiticeiro, tinha pedido a Zorrillo que me trouxesse tintura de iodo, agua oxigenada, algodao, gaze, tabletes de quinino e Stovarsol. Tinha visto um preso no hospital com uma ferida grande como a do feiticeiro e Chatal, o enfermeiro, amassava uma pilula de Stovarsol e a aplicava no ferimento. Recebi tudo o que pedira e mais uma pomada que Zorrillo trouxera por sua conta. Mandei a faca pequena de madeira ao feiticeiro e ele me respondeu mandando a dele. Levei muito tempo e tive muita dificuldade em convence-lo a deixar-me tratar dele, mas, depois de algumas visitas, a chaga estava reduzida a metade; em seguida, ele continuou o tratamento sozinho e, um belo dia, me enviou a faca grande de madeira para que eu fosse ve-lo completamente curado. Ninguem soube jamais que tinha sido eu quem o curara.

Minhas mulheres nao me deixam. Quando Lali esta pescando, Zoraima fica comigo. Quando Zoraima vai mergulhar, Lali me faz companhia.

Nasceu um filho de Zato. No momento em que sentiu as dores do parto, sua mulher foi para a praia, escondeu-se atras de uma rocha que a protegia do olhar de todos e uma outra mulher de Zato lhe levou um cesto grande com broas, agua doce e acucar escuro nao refinado. O nascimento deve ter ocorrido por volta das 4 horas da tarde, pois, no por do sol, ela apareceu caminhando em direcao a aldeia, gritando e levantando os bracos com o nenen. Antes de ela chegar, Zato ja sabe que e um homem. Percebo que, se fosse uma menina, ela teria chegado sem gritar alegremente e nao levantaria a crianca nos bracos, como estava fazendo. E Lali quem me explica isso, por mimica. A india vem vindo, de repente para e levanta o garoto. Zato estende os bracos e grita, sem se mexer. Ela torna a andar alguns metros, levanta outra vez o garoto e volta a parar. Zato grita e estende novamente os bracos. Nos ultimos 30 ou 40 metros da caminhada da mulher, a cena se repete cinco ou seis vezes. Zato nao sai dos umbrais da sua cabana: permanece diante da porta maior de sua casa e todos estao colocados a sua direita ou a sua esquerda. Quando chega a apenas cinco ou seis passos, a mae ergue o filho, para e grita. Entao Zato avanca, pega a crianca, levanta-a em seus bracos, volta-se para o oriente e grita tres vezes, levantando tres vezes o bebe. Senta-se, coloca a crianca deitada atravessada sobre seu peito, sob o braco direito, com a cabeca sob a axila esquerda. Depois entra, sem se voltar, pela porta grande da casa. Todos o seguem e a mae e quem entra por ultimo. Bebemos todo o vinho fermentado que havia.

De manha e de tarde, durante toda a semana, a terra diante da cabana de Zato e regada e os homens e as mulheres a pisam depois de ela ter sido regada. Fazem, assim, um circulo grande de argila vermelha bem batida. Armam uma grande tenda de couro de boi e eu adivinho que ali vai ser realizada uma festa. Grandes recipientes de barro, pelo menos umas vinte jarras enormes, sao guardados nessa tenda com a bebida preferida dos indios. Dispoem-se diversas pedras e, em torno delas, vao sendo acumulados galhos secos e verdes, cuja quantidade aumenta a cada dia. Alguns desses galhos foram trazidos ha muito tempo pelo mar, estao secos, brancos e polidos. Tambem ha imensos troncos de arvores, chegados de longe, ninguem sabe como nem quando. Por cima das pedras foram instaladas duas forquilhas de madeira do mesmo tamanho: sao as bases para uma enorme churrasqueira. Quatro tartarugas de barriga para cima, mais de trinta lagartos, uns maiores do que os outros, vivos, com as pernas amarradas umas as outras, para nao poderem fugir, dois carneiros: toda essa carne espera o momento de ser sacrificada e devorada. Ha pelo menos 2 000 ovos de tartaruga.

Um dia de manha, chegam uns quinze homens a cavalo, todos indios, com colares a volta do pescoco, imensos chapeus de palha, cache-sexe, as coxas, as pernas e os pes nus, a bunda de fora, as costas cobertas por belas peles de carneiro. Todos com facoes na cintura, dois com fuzis de cano duplo para caca, o chefe com uma carabina de repeticao e uma magnifica blusa de couro negro, alem de um cinturao cheio de balas. Os cavalos sao excelentes, pequenos, mas muito fortes, todos cinzentos. Na garupa, cada um deles traz plantas secas. Desde quando ainda estavam longe, anunciaram a chegada com tiros de fuzil; porem vinham galopando tao depressa, que logo chegaram ate nos. O chefe dos recem-chegados e estranhamente parecido com Zato e seu irmao, embora mais velho. Descendo de seu puro-sangue, ele se dirige a Zato e os dois se tocam nos ombros. Entra sozinho na casa e volta com a india atras dele e o bebe em seus bracos. Ergue-o e apresenta-o a todos. Depois faz o mesmo gesto que Zato fizera: volta-o para o oriente, onde o sol nasce, coloca-o atravessado no peito, com a cabeca debaixo do braco esquerdo, e torna a entrar na casa. Entao, todos os cavaleiros desmontam, prendem os cavalos um pouco afastados, com as plantas em fardos pendurados no pescoco de cada um. Por volta de meio-dia chegam as indias, numa charrete enorme puxada por quatro cavalos, guiada por Zorrillo. Na charrete estao pelo menos vinte indias, todas jovens, e sete ou oito criancas, todas do sexo feminino.

Antes da chegada de Zorrillo, eu tinha sido apresentado a todos os cavaleiros, a comecar pelo chefe. Zato me chama a atencao para o fato de que o dedo menor de seu pe esquerdo e torto e fica por cima do outro. Com seu irmao e com o chefe que acabara de chegar e a mesma coisa. Depois, mostra-me que no braco de cada um dos tres esta uma identica mancha negra, uma especie de sinal de distincao. Compreendo que o recem-chegado e seu pai. As tatuagens de Zato sao muito admiradas por todos, sobretudo a da cabeca de tigre. Todas as indias que acabam de chegar tem desenhos coloridos no corpo e no rosto. Lali coloca, no pescoco de algumas, colares d pedacos de coral e, no pescoco de outras, colares de conchas. Noto uma india admiravel, mais alta do que as outras, que sao de estatura media. Tem um perfil de italiana, parece uma figura de camafeu. Os cabelos dela sao negro-violeta, os olhos sao completamente verde-jade, imensos, com cilios longos e sobrancelhas bem arqueadas. Os cabelos estao cortados a maneira india, repartidos ao meio, com franja, caidos a esquerda e a direita, cobrindo as orelhas. As pontas estao cortadas a altura da metade do pescoco. Os seios de marmore sao proximos no tronco e se abrem harmoniosamente.

Lali me apresenta a ela e leva-a a nossa casa com Zoraima e uma outra india muito jovem, que traz umas canecas e uma especie de pinceis. De fato, as visitantes vao pintar as indias da aldeia. Vejo a india bonita pintar obras-primas em Lali e Zoraima. Os pinceis sao feitos com pedacinhos de la atados em varetas. Ela os molha em tintas de cores diferentes, para desenhar. Entao pego o meu pincel e, comecando pelo umbigo de Lali, desenho uma planta com dois galhos, cada um dos quais vai ate a base de um dos seios; depois pinto petalas cor-de-rosa e o bico do seio em amarelo. Dir-se-ia uma flor semi-aberta, com seu pistilo. As tres outras querem que eu lhes faca a mesma coisa. Preciso perguntar a Zorrillo. Ele me diz que posso pinta-las como quiser, desde que elas estejam de acordo. Voces podem imaginar o que fiz. Durante mais de duas horas, pintei os seios das jovens indias, tanto das visitantes como das outras. Zoraima exigiu uma pintura exatamente igual a de Lali. Enquanto isso, os indios assavam os carneiros e duas tartarugas. A carne delas e vermelha e bonita, parece carne de vaca.

Sento-me perto de Zato e do pai dele, na tenda. Os homens comem de um lado, as mulheres do outro, exceto as que nos servem. A festa termina com uma especie de danca, noite alta. Para a musica, ha um indio que toca uma flauta de madeira de som rude e bate em dois tambores de pele de carneiro. Muitos indios, homens e mulheres, estao bebados, porem nao ha nenhum incidente desagradavel. O feiticeiro veio, montado num burrico. Todos olham a cicatriz cor-de-rosa que ficou no lugar da ferida, aquela ferida que todos conheciam: ficam espantados de ve-la fechada. So Zorrillo e eu sabemos como foi a coisa. Zorrillo me explica que o chefe que veio a nossa aldeia e o Pai de Zato e se chama Justo: e ele quem ajuda as controversias surgidas entre as pessoas de sua tribo e entre as diversas tribos de guajiros. Zorrillo me diz tambem que, quando ha incidentes com outra raca de indios, os lapus, eles se reunem para discutir e ver se fazem a guerra ou resolvem amigavelmente as coisas. Quando um indio e assassinado por outro indio de outra tribo, faz-se um acordo segundo o qual, para evitar a guerra, o assassino pague pelo morto a tribo deste. O preco as vezes chega a duzentas cabecas de gado, pois, nas montanhas e ao pe delas, todas as tribos tem muitas vacas e muitos bois. Infelizmente, os indios nunca vacinam o gado contra a febre aftosa e as epidemias matam grande quantidade de animais. Em certo sentido – diz Zorrillo -, isso e bom, pois sem essas epidemias haveria gado demais. Esse gado nao pode ser oficialmente vendido nem na Colombia nem na Venezuela: deve ficar sempre em territorio indigena, pois as autoridades tem medo de que ele leve a febre aftosa para outras regioes de ambos os paises. Zorrillo me informa, entretanto, que ha muito contrabando de gado pelas montanhas.

O chefe visitante – Justo – me diz atraves de Zorrillo que eu va ve-lo em sua aldeia, onde, segundo parece, ha mais de cem cabanas. Diz que venha com Lali e Zoraima, que ele nos instalara numa cabana, e que eu nao leve coisa nenhuma, pois la terei tudo de que precisarmos. Diz que eu leve apenas o meu material de tatuagem para fazer nele, tambem, um tigre. Tira sua pulseira de couro preto e me da. Segundo Zorrillo, esse e um gesto importante que significa que ele e meu amigo e nao sera capaz de recusar a satisfacao de qualquer desejo meu. Pergunta-me se eu quero um cavalo, respondo-lhe que quero mas nao posso aceitar, pois aqui quase nao existe capim para alimenta-lo. Diz que Lali ou Zoraima, quando for necessario, podem ir com o cavalo a uma distancia de meio dia deste lugar, onde existe capim alto e bom. Aceito o cavalo e ele diz que logo o mandara para mim.

Aproveito esta longa visita de Zorrillo para dizer-lhe que confio nele, que espero que ele nao me traia, falando sobre a minha ideia de ir para a Venezuela ou para a Colombia. Ele me descreve os perigos dos primeiros 30 quilometros de um lado e do outro das fronteiras. Pelas informacoes dos contrabandistas, o lado venezuelano e mais perigoso que o colombiano. Entretanto, ele proprio poderia ir comigo, no lado colombiano, ate perto de Santa Marta, acrescentando que ja fizera essa caminhada e que a Colombia era realmente a melhor solucao. Esta de acordo com a minha ideia de comprar outro dicionario, ou melhor, livros que ensinam espanhol e nos quais eu aprenderia frases usuais. Segundo ele, se eu aprendesse a gaguejar bastante, seria uma grande vantagem para mim, pois as pessoas que me escutassem se impacientariam e acabariam as minhas frases, sem prestar muita atencao na pronuncia e no sotaque. Fica resolvido que ele me trara os livros, um mapa (o mais preciso que for possivel) e se encarregara de vender as minhas perolas quando chegar a ocasiao e arranjar dinheiro colombiano. Zorrillo me explica que os indios, a comecar pelo chefe, so podem me apoiar na minha decisao de partir,, ja que a partida e o que eu desejo. Lamentarao que eu va embora, mas compreenderao que e normal eu querer voltar para junto dos meus. O dificil vai ser com Zoraima e, sobretudo, com Lali. Qualquer uma das duas, mas especialmente Lali, e muito capaz de me derrubar com um tiro de fuzil. Outra coisa: Zorrillo me faz notar algo que eu nao sabia, isto e, que Zoraima esta gravida. Nao tinha percebido. Estou espantado.

A festa acabou, todos foram embora, a tenda de couro foi desmontada, tudo volta a ser como antes, pelo menos na aparencia. Recebo o cavalo, um magnifico tordilho, com um rabo comprido que vai quase ate o chao e uma crina maravilhosa, cinzenta com reflexos prateados. Lali e Zoraima nao estao nada contentes e o

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