Temos de esperar, esperar… Os tres desapareceram, depois de nos dizer adeus com lencos brancos. Vento, por Deus do ceu! Vento para nos despregarmos dessa terra colombiana, que constitui para nos um ponto de interrogacao. Com efeito, nao se sabe se eles devolvem ou nao os fugitivos. Nos tres preferimos, naturalmente, a certeza da Honduras britanica ao desconhecido da Colombia. Somente as 3 da tarde e que reaparece o vento e podemos partir. Armamos todas as velas e, talvez um pouco inclinado demais, o barco desliza suavemente durante mais de duas horas; mas eis que surge uma lancha a motor, carregada de homens, e aproa para nos, atirando para cima, a fim de nos fazer parar. Tento desobedecer e fugir, procurando o alto-mar, para sair das aguas territoriais. Nada feito. A possante lancha chega perto de nos em menos de hora e meia de perseguicao e, sob a mira de dez homens de fuzil na mao, somos obrigados a nos entregar.

Esses soldados ou policiais que nos prenderam tem um aspecto muito esquisito: calcas sujas que ja foram brancas, malhas de la esburacadas que certamente nunca foram lavadas. Estao todos descalcos, menos o “comandante”, este mais bem vestido e mais. limpo. Se estao mal vestidos, em compensacao estao armados ate os dentes: um cinturao cheio de balas, fuzis de guerra bem engraxados e, como complemento, um grande punhal embainhado, com o cabo ao alcance da mao. O sujeito que eles chamam de “comandante” tem uma cara de mestico assassino. Carrega um grande revolver, numa cartucheira tambem cheia de balas. Como so falam espanhol, mal compreendemos o que dizem, mas, nem o olhar, nem os gestos, nem o tom da voz sao simpaticos; tudo e hostil.

Vamos a pe do porto ate a prisao, atravessando a aldeia, que e mesmo Rio Hacha, escoltados por seis soldados esfarrapados e mais tres na retaguarda, com as armas apontadas para nos. E uma recepcao nada simpatica.

Chegamos ao patio de uma cadeia cercada por um pequeno muro. Uns vinte presos, barbudos e sujos, ali se encontram de pe ou sentados, Olhando-nos em atitude hostil. “Vamos, vamos”, mas e dificil andar mais depressa porque Clousiot, embora esteja bem melhor, caminha ainda sobre o estribo da sua perca engessada e nao pode ir mais depressa. O “comandante”, que ficou para tras, nos alcanca, carregando a bussola e o oleado. Esta comendo nossos biscoitos e nossos chocolates e compreendemos perfeitamente que vamos ser despojados de todos os nossos pertences. Nao nos enganamos. Ficamos fechados numa sala nojenta, com uma janela de grossas grades. No chao, umas tabuas, tendo numa extremidade uma especie de travesseiro de madeira: sao as camas.

– Franceses, franceses – grita perto da janela um prisioneiro, quando os policiais partem, apos nos haverem trancafiado.

– Que e que voce quer?

– Franceses, mau, mau!

– Mau, o que?

– A policia.

– A policia?

– Sim, policia mau.

E se afasta. Caiu a noite, uma lampada eletrica de fraca voltagem ilumina mal a sala. Mosquitos em quantidade assobiam em nossos ouvidos e nos entram pelo nariz.

– Muito bem, estamos fritos! Vai nos custar caro ter concordado em desembarcar aqueles tres cretinos.

– Que e que voce quer, a gente nao sabia. O pior e que nao tivemos vento.

– Voce se aproximou demais – diz Clousiot.

– Ora, cale essa boca, Nao e a hora de se acusar ou de acusar os outros, e hora de cerrar fileiras. Precisamos estar mais unidos do que nunca.

– Voce tem razao, Papi, perdao. Nao e culpa de ninguem.

Que merda! Seria muito injusto que, depois de tanta luta, a fuga terminasse aqui, desse jeito, tao lamentavelmente. Nao fomos revistados. Estou com meu canudo e trato logo de enfia-lo naquele lugar. Clousiot introduz tambem o seu. Tivemos razao em nao nos desfazermos deles. Sao “carteiras” impermeaveis e pouco volumosas, faceis de guardar em nosso corpo. No meu relogio sao 8 horas da noite. Trazem-nos um pedaco de rapadura para cada um, do tamanho de um punho fechado, e tres bolas de massa de arroz, cozidos com agua e sal. “Buenas noches!” – “Deve ser: boa noite” – diz Maturette. No dia seguinte, as 7 horas da manha, servem no patio um cafe muito gostoso, em copos de madeira. La pelas 8 horas, aparece o “comandante”. Peco licenca para ir ao barco pegar as nossas coisas. Ou ele nao compreende, ou faz de conta que nao entende. Quanto mais olho para ele, mais acho que tem cara de assassino. Traz na cinta, a esquerda, uma garrafinha dentro de um estojo de couro: tira para fora, destampa, bebe um trago, cospe e me estende o frasco. Diante desse primeiro gesto amavel, pego a garrafa e bebo. Felizmente so tomo um traguinho, e puro fogo, com gosto de alcool para queimar, Engulo rapidamente e o desgracado indio mestico de preto se poe a rir desbragadamente!

As 10 horas chegam varios civis, vestidos de branco e engravatados. Sao seis ou sete e entram num edificio que parece ser a diretoria da prisao. Somos chamados. Estao todos sentados em cadeiras dispostas em semicirculo, debaixo de um grande quadro representando um oficial branco coberto de condecoracoes: “Presidente Alfonso Lopez de Colombia”. Um desses senhores da uma cadeira para Clousiot, falando com ele em frances, os outros presos ficam de pe. O sujeito que esta no centro, magro, nariz adunco, oculos de vidros cortados, comeca a me interrogar. O interprete nao traduz coisa nenhuma e conversa comigo:

– O senhor que acaba de falar e que vai interroga-lo e o juiz da cidade de Rio Hacha, os outros sao pessoas importantes, amigos dele. Eu, que estou aqui como tradutor, sou haitiano e encarregado das obras eletricas deste departamento. Creio que alguns deles, embora nao queiram dizer, compreendem um pouco o frances, talvez o proprio juiz.

O juiz se impacienta com esse preambulo e comeca o interrogatorio em espanhol. O haitiano vai traduzindo as perguntas e as respostas.

– Voces sao franceses?

– Sim, senhor.

– De onde vem?

– De Curacau.

– E antes?

– Trinidad.

– E antes?

– Martinica.

– E mentira. O nosso consul em Curacau avisou, ha mais de uma semana, para vigiarmos a costa, porque seis evadidos da penitenciaria francesa estavam para desembarcar em nosso pais.

– Muito bem, somos fugitivos da penitenciaria.

– Caieneiros, portanto?

– Sim, senhor.

– Se um pais tao nobre como a Franca puniu-os tao severamente e deportou voces para tao longe, quer dizer que voces sao bandidos muito perigosos?

– Talvez.

– Ladroes ou assassinos?

– Homicidas.

– Matadores. Entao voces sao matadores. Onde estao os tres outros?

– Ficaram em Curacau.

– Voce esta mentindo mais uma vez. Desembarcaram a 60 quilometros daqui, num lugar chamado Castillette. Ja foram presos, felizmente, e estarao aqui dentro de poucas horas. Voces roubaram aquele barco?

– Nao, foi dado de presente pelo bispo de Curacau.

– Bem. Voces vao ficar presos aqui ate que o governo decida o que fazer com voces. Pelo delito de ter feito desembarcar tres dos seus cumplices em territorio colombiano, procurando em seguida voltar ao mar, condeno voce, o capitao do navio, a tres meses de prisao, e a um mes os dois outros. Comportem-se bem, se nao quiserem ser castigados fisicamente pelos guardas, que sao homens muito duros. Tem algo a dizer?

– Nao. Apenas quero recolher as roupas e os viveres que ficaram a bordo da embarcacao.

– Tudo isso foi confiscado pela alfandega, menos uma calca, uma camisa, um paleto e um par de sapatos para cada um de voces. O resto e confiscado e nao adianta insistir: nao ha nada a fazer, e a lei.

Voltamos para o patio. O juiz e cercado pelos desgracados prisioneiros do pais: “Doutor, doutor!” Ele passa no meio deles, cheio de importancia, sem responder e sem parar. Sai da prisao com a comitiva e desaparece.

A 1 hora chegam os tres outros nossos companheiros, num caminhao com sete ou oito homens armados. Descem cabisbaixos, com as suas maletas. Entramos com eles na sala.

– Que bruta besteira fizemos, prejudicando tambem voces. Nao merecemos perdao, Papi – diz o bretao. – Se voce quiser nos matar, pode agir, eu nem me defendo. Nos nao somos homens, somos uns putos. Fizemos isso porque tinhamos medo do mar; pois bem, pelo que vi da Colombia e dos colombianos, o perigo do mar e cafe pequeno, comparado com o perigo de estar nas maos desses caras. Foi por causa da falta de vento que voces se estreparam?

– Sim, bretao. Nao tenho que matar ninguem, todos nos erramos. Eu nao devia ter deixado voces descerem, e nada teria acontecido.

– Voce e muito bom, Papi.

– Nao, sou apenas justo – digo, e conto para eles o interrogatorio. – Enfim, talvez o governador nos ponha em liberdade.

– Pois sim… Como diz o proverbio: esperemos, a esperanca faz viver.

A meu ver, as autoridades deste fim de mundo semibarbaro nao podem tomar nenhuma decisao a nosso respeito. Somente as altas autoridades poderao resolver se podemos ficar na Colombia, se vamos voltar a Franca, ou vamos ser recolocados em nosso barco, para prosseguir a viagem. Seria o diabo se essa gente, a qual nao causamos nenhum prejuizo, adotasse a decisao pior, pois, afinal de contas, nao cometemos nenhum delito na terra deles.

Faz uma semana que estamos aqui. Nao houve qualquer mudanca, a nao ser que estao falando agora de nos transferir com uma boa escolta para uma cidade mais importante, Santa Marta, a 200 quilometros daqui. Esses policiais com cara de bucaneiros ou de corsarios nao melhoraram de atitude. Ontem, quase levei um tiro de fuzil de um deles, porque lhe reclamei a restituicao do meu sabao no tanque. Continuamos nesta sala podre, cheia de mosquitos, agora um pouco mais limpa gracas a Maturette e ao bretao, que a lavam todos os dias. Comeco a ficar desesperado, perco a confianca. Essa raca de colombianos, mistura de indios e de pretos, esses mesticos de indios e de espanhois que foram no passado os donos do pais nao me inspiram confianca. Um preso colombiano nos emprestou um velho jornal de Santa Marta. Na primeira pagina estao os nossos seis retratos e, embaixo, a cara do comandante da policia, com seu enorme chapeu de feltro, de charuto na boca, acompanhado de uns dez policiais, empunhando seus paus-furados. Percebo que a captura foi romanceada e valorizado o papel desempenhado por eles. Parece que toda a Colombia foi salva de um terrivel perigo, gracas a nossa detencao. Contudo, o retrato dos bandidos e muito mais simpatico que o dos policiais. Os bandidos tem

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