E o menino de dezenove anos, esse pequeno-burgues acidentalmente transformado em presidiario, esse garoto de tracos mais finos que uma mulher, diz, com sua voz suave:
– E voces acreditam que esses policiais de cabecas quadradas vao fabricar para cada um de nos carteiras de identidade duvidosas ou falsas? Eu, nao. O mais que podem fazer e fechar os olhos para que a gente, clandestinamente, embarque um por um num petroleiro de partida, e nada mais. Alias, eles fariam isso para se livrar de nos sem dor de cabeca. Esta e a minha opiniao. Nao acredito na historia.
Saio poucas vezes, de manha, para fazer algumas compras. Ja estamos aqui ha uma semana e nada de novo aconteceu. Estamos ficando nervosos. Certa tarde, aparecem tres padres, acompanhados de policiais, visitando uma por uma todas as salas e todas as ceias. Ficam muito tempo na cela mais proxima de nos, onde esta um negro acusado de estupro. Supondo que eles virao nos ver, entramos todos em nossa sala e nos sentamos nas camas. De fato, chegam os tres padres, acompanhados pelo Dr. Naal, pelo comandante da policia e por um sujeito cheio de galoes e vestido de branco, que deve ser oficial de marinha.
– Monsenhor, aqui estao os franceses – diz em frances o chefe de policia. – Tiveram conduta exemplar.
– Congratulo-me com voces, meus filhos. Vamos sentar nos bancos em volta da mesa, ai estaremos melhor para conversar.
Todo mundo senta, inclusive os que acompanham o bispo. Trazem um tamborete que se encontrava diante da porta, no patio, e o colocam na cabeceira da mesa. Desta maneira, o bispo podera ver bem todos nos.
– Os franceses sao quase todos catolicos, qual de voces nao e?
Ninguem levanta a mao. Penso que o padre da Conciergerie quase me batizou e que posso me considerar catolico, eu tambem.
– Meus amigos, eu sou descendente de franceses e me chamo Irenee de Bruyne. Meus antepassados eram protestantes huguenotes refugiados na Holanda, na epoca em que Catarina de Medicis os perseguia para matar. Sou, portanto, de sangue frances, bispo de Curacau, cidade onde ha mais protestantes que catolicos, mas onde os catolicos sao todos crentes e praticantes. Em que situacao voces se acham?
– Estamos esperando para ser embarcados nos petroleiros, um por um.
– Quantos ja partiram dessa maneira?
– Ate agora, nenhum.
– Hum! Que diz a isso, comandante? Responda em frances, por favor, o senhor fala frances tao bem.
– Monsenhor, o governador, sinceramente, tem a ideia de ajudar esses homens empregando essa formula, mas devo dizer, com toda a sinceridade, que ate hoje nenhum capitao de navio aceitou levar qualquer um deles, principalmente porque eles nao tem passaporte.
– E por ai que deviamos comecar. O governador nao poderia dar a cada um deles um passaporte excepcional?
– Nao sei. Nunca falou nisso.
– Depois de amanha, vou rezar uma missa por voces. Querem vir se confessar, amanha a tarde? Eu os ouvirei pessoalmente, a fim de ajuda-los, para que o bom Deus perdoe os seus pecados. Sera possivel o senhor envia-los a catedral as 3 horas?
– Sim.
– Gostaria que eles viessem de taxi ou em carro particular.
– Eu mesmo os acompanharei, monsenhor – diz o Dr. Naal.
– Obrigado, meu filho. Meus filhos, nao posso lhes prometer nada. Apenas posso lhes dizer uma palavra verdadeira: a partir deste momento, vou me esforcar para lhes ser o mais util possivel.
Vendo que Naal lhe beija o anel e que o bretao faz o mesmo, nos tambem beijamos de leve o anel episcopal e o acompanhamos ate o seu carro, estacionado no patio.
No dia seguinte, todos se confessam com o bispo. Eu sou o ultimo.
– Vamos, meu filho. Comece primeiro pelo maior pecado.
– Meu padre, em primeiro lugar nao sou batizado, mas um padre da prisao na Franca me disse que, batizados ou nao, somos todos filhos do bom Deus.
– Ele tinha razao. Pois bem, vamos sair do confessionario e voce vai me contar tudo.
Conto a minha vida, com todos os episodios. Demorada e pacientemente, com a maior atencao, o principe da Igreja me escuta sem me interromper. Pega minhas maos entre as suas e me fita muitas vezes nos olhos; as vezes, nas passagens dificeis de confessar, ele baixa os olhos para me ajudar. Esse padre de sessenta anos tem o olhar e o rosto tao puros, que refletem qualquer coisa de infantil. Sua alma limpida e certamente repleta de infinita bondade se irradia em todos os seus tracos, e seu olhar cinza-claro penetra em mim como um balsamo sobre uma ferida. Calmamente, muito devagar, sempre com as minhas maos entre as suas, ele me fala numa voz tao suave que e quase um murmurio:
– Deus concede as vezes aos seus filhos a graca de suportar a maldade humana, para que aquele que escolheu como vitima saia da prova mais forte e mais nobre do que nunca. Veja, meu filho, se voce nao tivesse tido esse calvario para subir, jamais poderia ter-se elevado tao alto e se aproximado tao intensamente da verdade de Deus. Digo melhor: as pessoas, os sistemas, as engrenagens dessa maquina horrivel que esmagou voce, os seres fundamentalmente maus que de varias maneiras torturaram e prejudicaram voce prestaram-lhe o maior servico que poderiam prestar. Provocaram em voce o aparecimento de um novo ser, superior ao primeiro e, hoje, se voce tem o sentido da honra, da bondade, da caridade e a energia necessaria para vencer todos os obstaculos e tornar-se um individuo superior, deve tudo isso a eles. Essas ideias de vinganca, de punir cada um proporcionalmente a importancia do mal que lhe fez, nao podem ir adiante numa criatura como voce. Voce deve ser um salvador de homens e nao viver para fazer o mal, mesmo acreditando que isso seria justificado. Deus foi generoso com voce, ele disse: “Ajuda-te, eu te ajudarei”. Ele ajudou voce em tudo e ate lhe permitiu salvar outros homens e leva-los a liberdade. Sobretudo, nao creia que sao muito graves todos esses pecados que voce cometeu. Ha muita gente de alta posicao social que se tornou culpada de pecados bem mais graves que os seus. So que eles nao tiveram, no castigo imposto pela justica dos homens, a oportunidade de elevar-se, como voce o fez.
– Obrigado, padre. O senhor me fez um bem enorme, para toda a minha vida. Nunca hei de esquecer.
E lhe beijo as maos.
– Voce vai partir novamente, meu filho, e enfrentar outros perigos. Eu queria batiza-lo antes que partisse. Que acha?
– Padre, deixe-me ficar como estou, por enquanto. Meu pai me criou sem religiao. Ele tem um coracao de ouro. Quando minha mae morreu, ele soube encontrar, para me amar ainda mais, gestos, palavras e atencoes de mae. Me parece que, se eu me deixasse batizar, estaria cometendo uma especie de traicao para com ele. Me deixe ficar completamente livre, com uma identidade estabelecida, um modo de viver normal e entao, quando escrever a ele, perguntarei se posso, sem magoa-lo, abandonar a sua filosofia e me fazer batizar.
– Compreendo, meu filho, e tenho certeza de que Deus esta com voce. Dou-lhe a minha bencao e peco a Deus que o proteja.
– E assim. Dom Irenee de Bruyne se espelha por inteiro nesse sermao – me diz o Dr. Naal.
– Exatamente. E o que o senhor pensa fazer agora?
– Vou pedir ao governador que de ordem a alfandega para que me conceda preferencia na primeira venda de barcos apreendidos aos contrabandistas. Voce vira comigo, para dar sua opiniao e escolher aquele que mais lhe convem. Quanto ao resto, alimentos e roupas, sera facil.
Desde o dia do sermao do bispo, temos constantemente visitas, especialmente as 6 horas da tarde. Essa gente quer nos conhecer. Sentam-se nos bancos junto a mesa, cada um traz alguma coisa, que deposita discretamente sobre uma cama, sem mesmo dizer: “Olhem, eu trouxe isso para voces”. La pelas 2 horas da tarde, sempre aparecem algumas Irmazinhas dos Pobres, acompanhadas da superiora e falando muito bem o frances. A sua cesta esta sempre cheia de boas coisas preparadas por elas. A superiora e ainda moca, menos de quarenta anos. Nao se veem seus cabelos, presos na coifa branca, mas ela tem os olhos azuis e as sobrancelhas loiras. Pertence a uma importante familia e – segundo nos disse o Dr. Naal – escreveu para a Holanda, a fim de que se encontre outro meio que nao seja o de nos obrigar a partir novamente pelo mar. Passamos juntos uns bons momentos e ela nos pede varias vezes para narrar a nossa evasao. As vezes me pede para contar diretamente a umas freiras que a acompanham e que falam frances. E, se eu esqueco ou omito um detalhe, ela me chama docemente a ordem:
– Henri, nao conte tao depressa. Voce esta pulando a historia do
Estou contando tudo isso porque sao momentos tao doces, tao completamente opostos a tudo o que temos vivido, que uma luz celestial parece iluminar de modo irreal esse caminho da podridao, que esta em vias de desaparecer.
Fui ver o barco, magnifica embarcacao de 8 metros de comprimento, com uma bela quilha, um mastro muito alto e velas imensas. E realmente adequado para o contrabando. Esta completamente equipado, mas todo lacrado pela alfandega. No leilao, um senhor comeca com um lance de 6 000 florins, mais ou menos 1 000 dolares; mas o barco fica sendo nosso por 6 001 florins, depois que o Dr. Naal murmura algumas palavras ao ouvido daquele cavalheiro.
Em cinco dias estamos prontos. Pintado de novo, repleto de viveres, bem ajeitados no porao, esse barco com meio conves e um presente de rei. Seis maletas, uma para cada um de nos, com roupas novas, sapatos, tudo que e necessario para a gente se vestir, sao protegidas por um pano impermeavel e colocadas na coberta do barco.
Partimos ao raiar do dia. O doutor e as Irmazinhas dos Pobres vieram nos dizer adeus. Largamos facilmente do cais, o vento logo nos pega e vogamos normalmente. O sol se levanta radioso, temos pela frente um dia sem historias. Logo percebo que o navio tem velas demais e nao ha lastro suficiente. Tenho que ser prudente. Deslizamos a toda velocidade. Este navio e um verdadeiro puro-sangue, quanto a velocidade, mas tambem e ciumento e irritavel. Tomo a direcao pleno oeste. Ficou decidido que desembarcariamos clandestinamente na costa colombiana os tres homens que se juntaram a nos em Trinidad. Eles nao querem saber de uma longa travessia, dizem que tem confianca em mim, mas nao no tempo. Com efeito, segundo os boletins meteorologicos dos jornais lidos na prisao, preve-se mau tempo e ate mesmo furacao.
Reconheco os seus direitos e fica combinado que eles desembarcarao numa peninsula desolada e desabitada, chamada La Guajira. Quanto a nos, do grupo inicial, dali zarparemos os tres para a Honduras britanica. O tempo esta esplendido e a noite estrelada que sucede ao dia radioso facilita, por meio de uma meia-lua muito brilhante, esse projeto de desembarque. Vamos direto para a costa colombiana, lanco a ancora e comecamos a sondar, devagar, para ver se eles podem desembarcar. Infelizmente, a agua e muito profunda e temos de nos aproximar perigosamente de um costao rochoso, para chegarmos a ter menos de 1 metro e 50 de agua. Apertamos as maos, cada um deles desce, toma pe e, com a mala na cabeca, avanca para a terra firme. Observamos a manobra com interesse e um pouco de tristeza. Esses camaradas se comportaram bem conosco, estiveram a altura, das necessidades em todas as circunstancias. E uma pena que abandonem o navio. Enquanto eles se aproximam da costa, o vento desaparece completamente. Merda! Tomara que nao nos vejam da aldeia marcada no mapa e que se chama Rio Hacha. E o primeiro porto onde se acham autoridades policiais. Esperemos que a desgraca nao aconteca. Acho que estamos bem em frente daquele ponto, por causa do pequeno farol que se encontra na ponta que acabamos de passar.