Torno a examinar o mapa, mudando alguns pormenores na passagem pelas cidades. Ao faze-lo, penso outra vez no que me disse Justo. Onde e que eu seria mais feliz do que aqui, onde todos me querem bem? Decidindo voltar para a civilizacao, nao estou me condenando a infelicidade? O futuro o dira.
Essas tres semanas passam como por encanto. Lali comprovou que esta gravida; portanto, serao duas ou tres as criancas que me esperarao quando eu voltar. Por que tres? Ela me diz que sua mae teve gemeos duas vezes. Fomos ao feiticeiro. Nao devemos fechar a porta. Devemos somente colocar um galho de arvore atravessado nela. A rede em que dormimos os tres deve ficar presa no teto da cabana e elas duas devem sempre dormir juntas, pois sao uma pessoa so. Em seguida, ele nos faz sentar perto do fogo, queima folhas verdes e nos rodeia de fumaca durante mais de dez minutos. Voltamos para casa e ficamos a espera de Zorrillo, que chega, de fato, naquela mesma noite. Em torno de uma fogueira, diante da minha cabana, passamos toda a noite a falar. Por intermedio de Zorrillo, eu dizia a cada um dos indios uma palavra gentil e cada indio, por sua vez, me respondia alguma coisa. Quando o sol ja comecava a nascer, retirei-me com Lali e Zoraima. Passamos o dia inteiro fazendo o amor. A tarde, chega o momento da partida. Zorrillo traduz o que eu vou falando:
– Zato, grande chefe desta tribo que me acolheu, que me deu tudo, devo dizer-lhe que e preciso que me autorize a deixar a aldeia por muitas luas.
– Por que quer deixar os seus amigos?
– Porque devo perseguir aqueles que me trataram como um animal. Gracas a voce, na sua aldeia, estive protegido e pude viver feliz, comer bem, encontrei amigos nobres, mulheres que colocaram o sol dentro do meu peito. Mas isso nao pode transformar um homem como eu num animal, capaz de, apos encontrar um abrigo quente e bom, permanecer nele a vida toda, por medo do sofrimento que a luta costuma trazer. Vou enfrentar meus inimigos. Parto em busca de meu pai, que precisa de mim. Deixo aqui minha alma, em minhas mulheres, Lali e Zoraima, deixo as criancas que sao o fruto dessa uniao. Minha cabana e delas e das criancas que vao nascer. Se alguem esquecer isso, espero que voce, Zato, saiba recorda-lo. Alem da sua vigilancia pessoal, peco que um homem chamado Usli tambem proteja dia e noite a minha familia. Quero muito bem a todos e sempre hei de querer. Farei o possivel para voltar depressa. Se morrer no cumprimento do meu dever, terei morrido pensando em voces, pensando em Lali, em Zoraima, nos meus filhos e em todos os indios guajiros, que sao a minha familia.
Torno a entrar na minha cabana, seguido por Lali e Zoraima. Visto a camisa, as calcas caquis, meias e botas.
Durante muito tempo, olho parte por parte esta aldeia idilica onde acabo de passar seis meses: Essa tribo guajira, tao temida, que inspira medo tanto as outras tribos como aos brancos, foi para mim um porto onde pude respirar, um refugio insuperavel contra a maldade dos homens. Aqui encontrei amor, paz, tranquilidade e nobreza. Adeus, guajiros, indios selvagens da peninsula colombo-venezuelana. Felizmente, a terra de voces e grande e esta livre da ingerencia das duas civilizacoes existentes ao lado dela. A maneira selvagem de viver de voces, a maneira como voces se defendem, me ensinou uma coisa muito importante para o futuro: que e melhor ser um indio selvagem do que um literato transformado em juiz.
Adeus, Lali e Zoraima, mulheres incomparaveis, de reacoes tao proximas da natureza, sem calculos, espontaneas, mulheres que, no momento da minha partida, com um gesto simples, colocaram num saquinho de pano todas as perolas existentes na cabana. Voltarei um dia, nao ha duvida. E uma coisa certa. Quando? Como? Nao sei. Mas faco a mim mesmo a promessa de voltar.
La pelo final da tarde, Zorrillo monta a cavalo e nos partimos na direcao da Colombia. Vou com um chapeu de palha. Controlo com firmeza as redeas do cavalo. Todos os indios da tribo, sem excecao, cobrem o rosto com o braco esquerdo e estendem o braco direito na minha direcao. Com o gesto, eles querem dizer que nao me desejam ver partir, que gostariam de me reter com eles. Lali e Zoraima me acompanham durante uns 100 metros. Penso que elas vao me beijar, mas, de repente, com um grito, elas saem correndo na direcao da nossa casa, sem olhar para tras.
5 VOLTA A CIVILIZACAO
Sair do territorio da Guajira india nao e dificil e nos atravessamos sem trapalhadas os postos fronteiricos de La Vela. A cavalo, podiamos percorrer em dois dias o que me custou tanto tempo com Antonio. Porem, nao so estes postos fronteiricos sao extremamente perigosos, como tambem ha uma faixa de 120 quilometros ate Rio Hacha, o povoado donde me evadi.
Com Zorrillo junto, fiz minha primeira experiencia de conversacao com um civil colombiano, numa especie de albergue onde vendem bebida e comida. Nao me sai mal e, conforme me diz Zorrillo, gaguejar fortemente ajuda muito a disfarcar o sotaque e a maneira de falar.
Saimos para Santa Marta. Zorrillo deve me deixar na metade do caminho e ir de volta esta manha.
Zorrillo me deixou sozinho. Decidimos que ele levaria o cavalo. De fato, possuir um cavalo e ter um domicilio, pertencer a um povoado determinado e, entao, correr o risco de ser obrigado a responder a perguntas aborrecidas: “Conhece fulano? Como se chama o prefeito? Que faz a senhora X? Quem e o dono do armazem?”
Nao, e melhor que eu continue a pe, que viaje de caminhao ou de onibus e, depois de Santa Marta, de trem. Devo ser para todo mundo um
Zorrillo trocou para mim tres moedas de ouro de 100 pesos e me deu 1 000 pesos. Um bom operario ganha de oito a dez pesos por dia; portanto, so com isto, ja tenho dinheiro para me sustentar durante bastante tempo. Subi num caminhao que vai para muito perto de Santa Marta, um porto bem importante que fica a 120 quilometros, mais ou menos, do lugar onde me deixou Zorrillo. O caminhao vai a procura de cabras ou de cabritos, sei la.
A cada 6 ou 10 quilometros ha sempre um botequim. O chofer desce e me convida. Quem convida e ele, mas eu e que pago, e, de cada vez, ele bebe cinco ou seis copos de uma cachaca que arde como fogo. De minha parte, faco de conta que bebo um copo. Depois de percorridos uns 50 quilometros, ele esta bebado pra burro. Ficou tao alto, que erra a direcao e entra num caminho lamacento onde o caminhao se atola e donde nao pode mais sair. O colombiano nao se inquieta: deita-se no caminhao, atras, e me diz para dormir na cabina. Nao sei o que fazer. Ainda devem faltar uns 40 quilometros ate Santa Marta. Ficando com ele, evito ser interrogado pela gente que aparece e, apesar das numerosas paradas, vou mais depressa do que a pe.
Assim, ao amanhecer, resolvo dormir. O dia comecou, sao quase 7 horas. Chega uma carroca puxada por dois cavalos. O caminhao impede que ela passe. Alguem me acorda, acreditando que o chofer sou eu, uma vez que era eu quem estava na cabina. Gaguejando, finjo estar na situacao do cara que, despertado, nao sabe bem onde esta.
O chofer acorda e discute com o carroceiro. Apesar de varias tentativas, nao se consegue tirar o caminhao. Tem lama ate os eixos, a coisa nao tem jeito. Na carroca estao duas irmas de caridade vestidas de preto, com suas toucas, e tres meninas. Depois de muita discussao, os dois homens concordam em abrir uma clareira no cerrado para que a carroca, com uma roda na estrada e a outra na parte desmatada, atravesse este pedaco ruim de cerca de 20 metros.
Cada um com um machete (um facao para cortar cana-de-acucar, instrumento que todos trazem quando viajam), os dois cortam tudo o que poderia atrapalhar, enquanto vou arrumando o mato cortado no caminho, para diminuir a altura e tambem para proteger a carroca, que se arrisca a afundar na lama. Depois de quase duas horas, a passagem ficou aberta. Foi entao que as irmas, depois de me agradecerem, me perguntam aonde eu vou. Digo: “Santa Marta”.
– Mas o senhor nao esta no caminho certo, e preciso ir para tras conosco. Levaremos o senhor para muito perto de Santa Marta. a
Nao tenho jeito de recusar, pareceria anormal. Por outro lado, gostaria de dizer que vou ficar com o chofer do caminhao para ajuda-lo mas, diante da dificuldade de falar tanta coisa, prefiro dizer: “
E ai estou na carroca, com as tres meninas. As duas bondosas irmas estao sentadas no banco com o carroceiro.
A gente comeca a andar e, na verdade, viajamos bastante depressa ara percorrer os 5 ou 6 quilometros feitos por engano com o caminhao Uma vez na estrada certa, vamos a bom passo e, por volta do meio-dia, paramos num albergue para comer. As tres meninas e o carroceiro numa mesa e as duas boas irmas e eu numa mesa vizinha. As freiras sao jovens, de 25 a trinta anos. A pele muito branca. Uma e espanhola, a outra irlandesa.
– O senhor nao e daqui, nao e?
– Sim, sou de Barranquilla.
– Nao, o senhor nao e colombiano, seus cabelos sao muito claros e sua pele esta escura porque o senhor esta queimado de sol. Donde vem?
– De Rio Hacha.
– Que fazia por la?
– Eletricista.
– Ah! Tenho um amigo na companhia de eletricidade, chama-se Perez, e espanhol. Conhece-o?
– Sim.
– Isto me da prazer.
No fim do almoco, elas se levantam para ir lavar as maos e a irlandesa fica sozinha. Olha-me e, a seguir, diz em frances:
– Nao trairei o senhor, mas minha companheira diz que viu sua fotografia num jornal. O senhor e o frances que fugiu da prisao de Rio Hacha, nao e?
Negar seria pior ainda.
– Sim, irma. Peco-lhe, nao me denuncie. Nao sou o homem mau que andam dizendo. Amo a Deus e o respeito.
A espanhola chega, a outra diz: “E ele, sim”. Ela responde muito depressa uma coisa que nao entendo. Ficam com o ar de refletir, levantam-se e vao a privada de novo. Durante os cinco minutos da ausencia delas, reajo rapidamente. Devo partir antes que voltem, devo ficar? Da no mesmo, caso elas estejam pensando em me denunciar, porque, se dou o fora, me acharao muito depressa. Esta regiao nao e uma “selva” muito espessa e os acessos aos caminhos que levam as cidades logo ficarao certamente vigiados. Vou me entregar ao destino que, ate hoje, nao foi mau comigo.
Elas voltam muito sorridentes e a irlandesa pergunta pelo meu nome.
– Enrique.
– Bem, Enrique, o senhor vira conosco ate o convento para onde vamos, que fica a 8 quilometros de Santa Marta. Conosco na carroca, o senhor nada tem a temer na estrada. Nao fale, todo mundo acreditara que o senhor e um trabalhador do convento.
As irmas pagam o almoco de todos. Compro um pacote de doze macos de cigarros e um isqueiro. Saimos. Durante todo o trajeto, as irmas nao me dirigem mais a palavra e eu lhes fico agradecido. Dessa maneira, o carroceiro nao percebe que falo mal a lingua do pais. La pelo fim da tarde, paramos num albergue grande. Vejo um onibus onde leio: “Rio Hacha-Santa Marta”. Tenho vontade de toma-lo. Aproximo-me da irma irlandesa e lhe falo da minha intencao de utilizar este onibus.
– E muito perigoso – diz ela – porque, antes de chegar a Santa Marta, ha, pelo menos, dois postos de policia, onde exigem dos passageiros sua