(documento de identidade), o que nao acontecera com a carroca.

Agradeco a ela vivamente e, entao, a angustia que passei a sentir depois que me reconheceram desaparece imediatamente. Foi, pelo contrario, uma sorte enorme para mim ter encontrado estas boas irmas. Efetivamente, ao anoitecer, chegamos a um posto de policia (em espanhol, alcabale). Um onibus, que vinha de Santa Marta e ia para Rio Hacha, estava sendo inspecionado pela policia. Estou deitado de costas na carroca, meu chapeu de palha em cima do rosto, fingindo dormir. Uma menina de uns oito anos tem a cabeca apoiada no meu ombro e dorme de verdade. Quando a carroca passa, o carroceiro para seus cavalos justamente entre o onibus e o posto.

– Como estan todos por aqui? - diz a irma espanhola.

– Muy bien, hermana.

– Me alegro, vamonos, muchachos.

E saimos andando, tranquilamente.

As 10 horas da noite, um outro posto, muito iluminado. Duas filas de viaturas de toda classe esperam, paradas. Uma vem pela direita, a nossa pela esquerda. As malas dos carros sao abertas e os policiais olham dentro. Vejo uma mulher, obrigada a descer, remexendo na sua bolsa. Ela e levada ao posto de policia. Nao tem, provavelmente, a cedula. Neste caso, nao ha nada a fazer. Os veiculos passam, um depois do outro. Como existem duas filas, nao se, pode ter uma passagem de favor. Por falta de espaco, e preciso se resignar a esperar. Sinto-me perdido. A nossa frente, esta um onibus pequeno cheio de passageiros. Em cima, sobre o teto, maletas e grandes embrulhos. Atras, tambem, uma especie de rede grossa cheia de embrulhos. Os policiais obrigam os passageiros a descer. Este onibus nao tem mais de uma porta, na frente. Homens e mulheres descem. Mulheres com criancas nos bracos. Uma a uma tornam a subir.

– Cedula! Cedula!

E todos saem e mostram um cartao com sua fotografia.

Zorrillo nunca me falou nisso. Se soubesse, teria talvez tentado arranjar uma cedula falsa. Fico pensando que, se passar por este posto, pagarei o que for preciso, mas arranjarei uma cedula antes de viajar de Santa Marta a Barranquilla, cidade muito importante da costa atlantica: 250 000 habitantes, diz o dicionario.

Deus do ceu, como e demorada a operacao de exame desse onibus. A irlandesa se volta para mim: “Fique calmo, Enrique”. Tomo imediatamente um susto com esta frase imprudente, o condutor certamente ouviu.

Chegando nossa vez, a carroca avanca nesta luz brilhante. Resolvo me sentar. Ficando deitado, segundo me parece, posso dar a impressao de que me escondo. Apoiei as costas nas tabuas da carroca e olho para as costas das irmas. So posso ser visto de perfil e tenho o chapeu bastante afundado na cabeca, mas sem exagero.

– Como estan todos por aqui? - repete a boa irma espanhola.

– Muy bien, hermanas. Y como viajam tan tarde? (Muito bem, irmas. E por que viajam tao tarde?)

– Por una urgencia, por eso no me detengo. Somos muy apuradas. (E um caso de urgencia, por isso nao paro. Estamos muito apressadas.)

– Vayanse con Dios, hermanas. (Vao com Deus, irmas.)

– Gracias, hijos. Que Dios les protege. (Obrigado, meus filhos. Que Deus os proteja.)

– Amen - dizem os policiais.

E nos passamos tranquilamente, sem que ninguem nos exija coisa alguma. As emocoes dos minutos passados devem ter dado dor de barriga nas boas irmas, porque, a 100 metros dali, fazem parar a viatura para descer e desaparecer por um instante no mato. Voltamos a andar. Acendo um cigarro. Estou tao emocionado, que, quando a irlandesa sobe, eu lhe digo:

– Obrigado, minha irma.

Ela me diz:

– Nao ha de que, mas nos tivemos tanto medo, que isso nos desarranjou os intestinos.

Por volta da meia-noite, chegamos ao convento. Um grande muro, uma grande porta. O carroceiro saiu para ajeitar os cavalos e a carroca e as tres meninas sao conduzidas ao interior do convento. Na escadaria do patio, uma discussao acalorada se trava entre a irma porteira e as duas irmas. A irlandesa me diz que nao quer acordar a madre superiora para lhe pedir autorizacao para que eu durma no convento. Ai, fico indeciso. Deveria aproveitar rapidamente este incidente para me retirar e partir para Santa Marta, uma vez que sabia que so faltavam 8 quilometros.

Este erro me custou, mais tarde, sete anos de cana.

Por fim, a madre superiora foi acordada, e me dao um quarto no segundo andar. Da janela, vejo as luzes da cidade. Distingo o farol e as luzes fixas. Do porto sai um barco grande.

Adormeco e o sol esta alto quando batem a minha porta. Tive um sonho atroz. Lali abria a barriga dela em minha presenca e nosso filho saia de sua barriga aos pedacos.

Faco a barba e me lavo muito rapidamente. Desco. Ao pe da escada esta a irma irlandesa, que me recebe com um ligeiro sorriso:

– Bom dia, Henri. O senhor dormiu bem?

– Sim, minha irma.

– Venha, por favor, ao escritorio de nossa madre superiora, que quer ver o senhor.

Entramos. Uma mulher esta sentada atras de uma escrivaninha. Um rosto extremamente severo, de uma pessoa de cinquenta e tantos anos talvez, me encara com olhos negros sem brandura.

– Senor, sabe usted hablar espanol?

– Muy poco.

– Bueno, Ia hermana va a servir de interprete.

– O senhor e frances, foi o que me disseram.

– Sim, madre.

– O senhor fugiu da prisao de Rio Hacha?

– Sim, madre.

– Ha quanto tempo?

– Perto de sete meses.

– Que fez durante este tempo?

– Estive com os indios.

– O que? O senhor, com os guajiros? Isso nao se admite. Esses selvagens nunca permitiram ninguem no seu territorio. Nenhum missionario conseguiu penetrar ali, imagine. Nao admito essa resposta. Onde o senhor esteve? Diga a verdade.

– Madre, estava com os indios e tenho prova.

– Qual?

– Perolas que eles pescaram.

Desprego o saco que esta seguro com alfinetes no meio das costas do meu paleto e o entrego a ela. Ela abre o saco e dele sai um punhado de perolas.

– Quantas perolas ha ai?

– Nao sei, talvez quinhentas ou seiscentas. Mais ou menos.

– Isso nao e uma prova. O senhor pode ter roubado em outro lugar.

– Madre, para que sua consciencia fique em paz, se quiser eu fico aqui o tempo que for preciso para que possa se informar se houve um roubo de perolas. Prometo a senhora nao me mexer de meu quarto ate o dia em que a senhora decidir o contrario.

Ela me olha muito fixamente. Suponho que deve dizer a si mesma: “E se voce fugir? Ja fugiu da prisao, daqui e mais facil…”

– Deixarei com a senhora o saco de perolas, que sao toda a minha fortuna. Sei que estou em boas maos.

– Bem, esta combinado. Nao, o senhor nao precisa ficar fechado no seu quarto. De manha e a tarde, pode descer ao jardim, quando minhas filhas estao na capela. O senhor comera na cozinha, junto com os empregados.

Saio desta entrevista um pouco tranquilizado. No momento em que vou subir ao meu quarto, a irma irlandesa me leva para a cozinha. Uma taca grande de cafe com leite, pao preto muito fresco e manteiga. A irma me ve comer sem dizer uma palavra e sem se sentar, de pe a minha frente. Tem um aspecto preocupado. Digo:

– Obrigado, minha irma, por tudo que fez em meu favor.

– Gostaria de fazer mais ainda, mas nao posso fazer mais nada, meu amigo Henri – e, com estas palavras, sai da cozinha.

Sentado diante da janela, olho a cidade, o porto, o mar. O campo ao redor esta bem cultivado. Nao consigo me desfazer da impressao de que me encontro em perigo. A tal ponto, que decido escapar na noite proxima. Tanto pior para as perolas, que fiquem para seu convento ou para ela propria, a madre superiora. Ela nao confia em mim e, alem do mais, nao devo me enganar, porque nao e possivel que nao fale frances, uma catala, madre superiora de um convento, portanto instruida. Isso e bem esquisito. Conclusao: nesta noite caio fora.

Sim, nesta tarde vou descer ao patio, para ver o lugar por onde posso saltar o muro. Por volta da 1 hora, batem a minha porta:

– Desca, por favor, para comer, Henri.

– Sim, ja vou, obrigado.

Sentado a mesa da cozinha, mal comeco a me servir da carne com batatas cozidas, quando a porta se abre e aparecem, armados de fuzis, quatro policiais em uniformes brancos, um com galoes, de revolver na mao.

– No te mueve o te mato! (Nao te mexas ou te mato!)

Ele me poe algemas. A irma irlandesa da um grande grito e desmaia. Duas irmas da cozinha a levantam.

– Vamos - diz o chefe.

Ele sobe comigo ao meu quarto. Minha trouxa e revolvida e encontram logo as 36 moedas de ouro de 100 pesos que ainda me restam, porem nao examinam o estojo com as duas flechas. Sem duvida, acreditaram que eram lapis. Com uma satisfacao nao escondida, o chefe bota nos seus bolsos as moedas de ouro. A gente

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