– Por que?
– Deram meu irmaozinho para ser comido por uma porca.
– Nao pode ser. Que horror!
– Meu irmaozinho de cinco anos todos os dias jogava pedras no filho deles e o menino foi ferido na cabeca varias vezes.
– Nao era uma razao.
– Foi o que eu disse, quando soube.
– E como soube?
– Meu irmaozinho tinha desaparecido ha tres dias e, quando procurava o garoto, achei uma sandalia dele no estrume. Esse estrume tinha saido do chiqueiro onde estava a porca. Mexendo no estrume, achei uma meia branca cheia de sangue. Compreendi. A mulher confessou antes que eu matasse todos. Deixei que rezassem, antes de fuzilar. Com o primeiro tiro do fuzil, quebrei as pernas do pai.
– Voce fez bem matando essa gente. O que e que os juizes vao lhe arranjar?
– Vinte anos no maximo.
– Por que esta no calabouco?
– Meti o braco num policial que era da familia deles. Estava aqui, na prisao. Ja foi tirado. Ele nao esta mais e eu fico sossegado.
A porta do corredor e aberta. Entra um guarda com dois prisioneiros que carregam um barril de madeira dependurado em duas barras de madeira.
Atras deles, no fundo, percebemos dois outros guardas de fuzil na mao. Calabouco por calabouco, tiram os baldes que servem de latrina e os esvaziam no barril. Um fedor de mijo, de merda, envenena o ar e deixa a gente sufocada. Quando chegam junto de mim, o cara que pega o meu balde deixa cair um pacotinho no chao. Sem perda de tempo, chuto o pacotinho para mais longe, no escuro. Quando vao embora, apanho no embrulho dois macos de cigarro, um isqueiro e um papel escrito em frances. Em primeiro lugar, acendo dois cigarros e os jogo aos dois caras que estao a minha frente. Depois chamo meu vizinho que, estendendo o braco, apanha os cigarros para faze-los passar aos outros prisioneiros. Apos a distribuicao, acendo o meu cigarro e procuro ler a luz do corredor. Mas nao consigo. Entao, com o papel que envolvia o embrulho, faco um rolo afinado e, depois de muito esforco, meu isqueiro consegue botar fogo no papel. Leio depressa:
“Papillon, coragem, conte com a gente. Preste atencao. Amanha, vamos lhe mandar papel e lapis para que voce nos escreva. Estamos com voce ate a morte”.
Isto me aquece o coracao. Estas palavrinhas sao para mim tao reconfortantes! Nao estou mais sozinho e posso contar com meus amigos.
Ninguem fala. Todo mundo fuma. A distribuicao dos cigarros me mostra que somos dezenove nas celas da morte. Estou, entao, de novo no caminho da podridao, desta vez enterrado ate o pescoco! Estas freirinhas do bom Deus eram irmas do diabo. No entanto, nao pode ter sido a irlandesa quem me denunciou, nem a espanhola. Ah, que besteira a minha de acreditar naquelas freirinhas! Nao, nao foram elas. Talvez o carroceiro? Duas ou tres vezes, fomos imprudentes, falando em frances. Sera que ele ouviu? Voce se danou desta vez e de verdade. Irmas, carroceiro, madre superiora, o resultado e o mesmo.
Estou estrepado, neste calabouco nojento que, parece, e inundado duas vezes por dia. O calor e tao abafado, que tiro primeiro a camisa, depois as calcas. Tiro os sapatos e dependuro tudo nas grades.
Dizer que andei 2 500 quilometros para chegar a isto! Na verdade, que magnifico resultado! Meu Deus! Sera que voce vai me abandonar depois de ter sido tao generoso comigo? E possivel que voce, meu Deus, esteja aborrecido, porque, afinal, me deu a liberdade, a mais segura, a mais bonita. Me deu uma comunidade que me adotou inteiramente. Me deu, nao uma, mas ate duas mulheres fabulosas. E o sol e o mar. E uma palhoca onde eu era o chefe incontestado. Esta vida na natureza, esta existencia primitiva, como era doce e tranquila! Este presente unico, que voce me deu, de ser livre, sem policia, sem juiz, sem invejosos nem malvados em torno de mim! E eu nao soube dar o valor justo a este presente. Este mar tao azul, ora verde e quase negro, estas alvoradas e crepusculos que banhavam de paz tao serenamente suave, este modo de viver sem dinheiro, onde nao me faltava nada de essencial a vida de um homem, tudo isso eu calquei com os pes, tudo isso desprezei. Para ir aonde? Para sociedades que nao querem me aceitar. Para seres que nao se dao sequer ao trabalho de saber o que existe em mim de recuperavel. Para um mundo que me repele, que me joga longe de toda esperanca. Para coletividades que nao pensam senao numa coisa: me aniquilar de qualquer maneira.
Quando receberem a noticia de minha captura, bem que vao gozar os doze patetas do juri, o podre do Polein, os tiras e o procurador. Porque certamente vai haver um jornalista para mandar a noticia a Franca.
E o meu pessoal? Eles que, quando tiveram de receber a visita dos guardas lhes anunciando minha evasao, devem ter ficado tao felizes com o fato de que seu filho ou seu irmao haja escapado dos carrascos! Agora, ao saberem que fui recapturado, vao sofrer outra vez.
Fiz mal em renegar minha tribo. Sim, posso dizer “minha tribo”, porque todos eles me adotaram. Fiz mal e mereco o que me acontece. E no entanto… Nao fugi da cadeia para aumentar a populacao de indios da America do Sul. Bom Deus, compreenda que devo viver outra vez numa sociedade normalmente civilizada e demonstrar que posso fazer parte dela sem ser um perigo para ela. E o meu verdadeiro destino, com voce ou sem a sua ajuda.
Preciso chegar a provar que posso ser, que sou – e que serei – um ser normal, ou ate melhor do que os outros individuos de qualquer coletividade de qualquer pais.
Estou fumando. A agua comeca a subir. Ja chega aos tornozelos. Chamo:
– Negro, quanto tempo a agua fica na cela?
– Isso depende da forca da mare. Uma hora, no maximo duas.
Ouco varios prisioneiros gritarem:
Devagar, bem devagar, a agua sobe. Os mesticos e o preto estao empoleirados na grade. As pernas deles pendem para o corredor e seus bracos se agarram a duas barras. Ouco ruido na agua: e um rato de esgoto, grande como um gato, que vem nadando. Ele procura subir pela grade. Apanho um dos meus sapatos e, quando vem para o meu lado, lhe dou um golpe violento na cabeca. O rato sai guinchando pelo corredor. O negro me diz:
– Frances, voce esta dando murro a toa. Nao vai acabar, se quiser matar todos. Suba na grade, agarre-se nas barras e fique sossegado.
Sigo o seu conselho, mas as barras me cortam as coxas, nao consigo resistir por muito tempo nesta posicao. Destampo meu balde-latrina, tirando meu paleto, e o amarro nas barras, escorregando, depois, por cima dele. Tenho, assim, uma especie de cadeira, que me permite suportar melhor a posicao, porque agora estou quase sentado.
Esta invasao da agua, de ratos, de centopeias, de caranguejos minusculos, trazidos pela agua, e a coisa mais repugnante, mais deprimente que um ser humano possa ser obrigado a suportar. Quando a agua se retira, uma hora depois, fica uma lama viscosa de mais de 1 centimetro de espessura. Calco os sapatos para nao chafurdar neste lodo. O negro me joga um pedaco de tabua de 10 centimetros de comprimento e me diz para empurrar a lama para o corredor, comecando pela tabua, onde devo dormir, e, depois, pegando do fundo de minha cela em direcao a entrada. Esta ocupacao me toma uma boa meia hora e me obriga a pensar somente nela. Ja e alguma coisa. Antes da mare seguinte, nao terei agua, isto e, durante onze horas exatamente, uma vez que a ultima hora e a da inundacao. Para ter agua de novo, e preciso contar as seis horas em que o mar baixa e as cinco horas em que sobe. Faco esta reflexao um pouco ridicula: “Papillon, voce esta destinado a viver em funcao das mares. A lua, quer voce queira ou nao, tem para voce muita importancia, para voce e para a sua vida. Foi gracas as mares, enchentes e vazantes, que voce pode sair facilmente do Maroni, quando fugiu da prisao de forcados. Foi calculando a hora da mare que saiu de Trinidad e de Curacau. Se parou em Rio Hacha, foi porque a mare nao estava bastante forte para que voce se afastasse mais depressa e, agora, ai esta voce na dependencia permanente desta mare”.
Entre os que lerao estas paginas, se um dia forem publicadas, alguns talvez sintam diante da narracao do que tive de suportar nos calaboucos colombianos um pouco de piedade por mim. Serao os bons. Os outros, os primos-irmaos dos doze imbecis que me condenaram, ou os irmaos do procurador, dirao: “Foi bem feito para ele; se ficasse na prisao, isso nao lhe aconteceria”. Mas, va la, querem que lhes diga uma coisa, tanto a voces, os bons, quanto a voces, os idiotas? Nao estou desesperado, de maneira nenhuma, e lhes direi ainda melhor: prefiro estar nestes calaboucos da velha fortaleza colombiana, construida pela inquisicao espanhola, do que nas Ilhas da Salvacao, onde devia estar agora. Aqui, ainda me resta muita coisa para tentar a fuga; e, neste buraco fedorento, apesar de tudo, estou a 2 500 quilometros da prisao de forcados. Vai ser preciso tomarem realmente muitas precaucoes para me obrigarem a fazer o caminho de volta. So sinto falta de uma coisa: minha tribo guajira, Lali e Zoraima, aquela liberdade na natureza, sem o conforto de um civilizado, mas tambem sem policia, sem prisao, sem calaboucos. Penso que nunca passaria pela cabeca dos meus selvagens a ideia de aplicar suplicio semelhante a um inimigo e, menos ainda, a um homem como eu, que nao cometeu nenhum delito contra os colombianos.
Deito-me sobre a tabua e fumo dois ou tres cigarros, no fundo de minha cela, para que os outros nao me vejam fumar. Ao entregar a tabuazinha ao negro, joguei-lhe um cigarro aceso e ele, por pudor diante dos demais, fez como eu. Esses detalhes, que parecem um nada, tem, na minha opiniao, muito valor. Isso prova que nos, os parias da sociedade, temos, pelo menos, um resto de
Aqui, nao estou como na Conciergerie. Posso sonhar e vagabundear pelo espaco, sem ter de botar um lenco para proteger meus olhos de uma luz muito forte.
Quem pode ter avisado a policia de que eu estava no convento? Ah, se eu souber um dia, a pessoa me pagara! E entao digo para mim mesmo: “Deixe de bobagem, Papillon! Com o que voce tem a fazer na Franca para se vingar, esqueca o resto; voce nao veio a este pais perdido para fazer mal! Esta pessoa sera certamente punida pela propria vida e, se voce tiver de voltar um dia, nao sera para se vingar, mas para dar felicidade a Lali e Zoraima e, talvez, aos filhos que elas tiverem de voce. Se voltar a este buraco, voltara para elas e para todos os guajiros, que lhes deram a honra de acolhe-lo entre eles como se
Recebi papel, um lapis, dois macos de cigarros. Ja la vao tres dias que estou aqui. Deveria dizer tres noites, porque aqui faz sempre noite. Enquanto acendo um cigarro Piel Roja, nao posso deixar de admirar a dedicacao mutua dos prisioneiros. O colombiano que me passa o pacote corre um grande risco. Se for surpreendido, tera de passar, sem duvida, uma temporada nestes mesmos calaboucos. Ele sabe disso e, quando topa me ajudar no meu calvario, mostra-se nao so corajoso, mas de uma nobreza pouco comum. Sempre pelo mesmo sistema do papel em chamas, leio: “Papillon, a gente sabe que voce esta aguentando bem. Viva! Mande noticias. De nossa parte, estamos sempre na mesma. Uma boa irma, que fala frances, veio ver voce, nao deixaram que falasse conosco, mas um colombiano nos disse que teve tempo de lhe dizer que o frances esta nos calaboucos da morte. Ela disse: voltarei. E tudo. Os amigos o abracam”.
Nao foi facil responder, mas eu consegui, ainda assim, escrever: “Obrigado por tudo. A coisa vai, eu aguento. Escrevam ao consul frances, a gente nunca sabe. Mandem as coisas sempre pelo mesmo cara, para que, em caso de acidente, so um seja punido. Nao toquem nas pontas das flechas. Viva a fuga!”
Somente 28 dias depois, com a intervencao do consul belga (um homem chamado Klausen), foi que sai deste antro imundo. O negro, que se chamava Palacios e