tinha saido tres semanas apos minha chegada, teve a ideia de dizer a sua mae, por ocasiao de uma visita para avisar ao consul belga que havia um cidadao belga naqueles calaboucos. Esta ideia lhe veio quando viu, num domingo, um prisioneiro belga recebendo a visita do consul.
Um dia, portanto, me levaram ao escritorio do comandante, que me disse:
– O senhor e frances, por que faz reclamacoes ao consul belga?
No escritorio, um senhor vestido de branco, de uns cinquenta anos, os cabelos louros quase brancos por cima de uma cara redonda, fresca e rosada, estava sentado numa poltrona, com uma pasta de couro sobre os joelhos. Imediatamente compreendi a situacao:
– E o senhor quem diz que sou frances. Reconheco que fugi da justica francesa, mas sou belga.
– Ah! O senhor esta vendo? – diz o homenzinho com cara de padre.
– Por que o senhor nao me disse?
Pensei que isto nao tinha importancia alguma para o senhor, porque realmente nao cometi nenhum delito serio na sua terra, a nao ser o de fugir da prisao, o que e normal para todo prisioneiro.
– Bueno, vou botar o senhor com os seus camaradas. Mas, senhor consul, eu lhe aviso que, na primeira tentativa de evasao, o remeterei para o lugar donde veio. Levem-no ao barbeiro, depois ponham-no com os seus cumplices.
– Obrigado, senhor consul – digo em frances -, muito obrigado por se ter incomodado por minha causa.
– Deus do ceu! Como o senhor deve ter sofrido nestes horriveis calaboucos! Depressa, va embora. E preciso que ele nao mude de opiniao, este animal. Voltarei para ver o senhor. Ate logo.
O barbeiro nao estava e me botaram com meus amigos. Eu devia estar com uma cara dos diabos, porque eles nao paravam de falar:
– Mas nao e voce! Nao pode ser! Que e que esses canalhas lhe fizeram para deixar voce deste jeito? Fale para a gente, diga alguma coisa. Sera que voce esta cego? Que tem nos olhos? Por que fecha e abre os olhos sem parar?
– E que nao consigo me acostumar com esta luz. Ela e luminosa demais para mim, fere meus olhos habituados a escuridao.
Sento-me, olhando o interior da cela.
– Por aqui, a coisa e melhor.
– Voce cheira a podre, e incrivel! Mesmo seu corpo cheira a podre!
Fiquei nu e eles colocaram meus trocos perto da porta. Meus bracos, minhas costas, minhas coxas, minhas pernas estavam cheios de picadas vermelhas, como a dos percevejos na Franca, e de mordidas de caranguejos minusculos, que flutuavam com a mare. Eu estava horroroso, nao precisava de um espelho para saber disso. Os cinco forcados, que tanta coisa ja tinham visto, pararam de falar, comovidos por me verem nesse estado. Clousiot chama um policial e lhe diz que, se nao tem barbeiro, tem agua no patio. O outro lhe responde para esperar a hora da saida.
Saio nu. Clousiot leva as roupas limpas que vou vestir. Ajudado por Maturette, eu me lavo e torno a me lavar com o sabao preto do pais. Quanto mais me lavo, mais imundicie sai. Por fim, depois de me ensaboar e enxaguar muitas vezes, sinto que estou limpo. Enxugo-me em cinco minutos no sol e visto minha roupa. Chega o barbeiro. Ele quer pelar minha cabeca, mas eu lhe digo:
– Nao. Corte meus cabelos do jeito normal e faca minha barba.
Eu lhe pagarei.
– Quanto?
– Um peso.
– Faca bem o servico – diz Clousiot – e eu lhe dou 2 pesos.
Banhado, barbeado, os cabelos bem cortados, roupa limpa, sinto que volto a viver. Meus amigos nao param de me interrogar:
– E a agua, subia a que altura? E os ratos? E as centopeias? E a lama? E os caranguejos? E a merda dos barris? E os mortos que saem? Eram de morte natural ou suicidas enforcados? Ou tinham sido “suicidados” pelos policiais?
As perguntas nao paravam e, de tanto falar, acabei com sede. No patio havia um vendedor de cafe. Durante as tres horas que a gente passou no patio, bebi, no minimo, uns dez cafes fortes, adocados com
Tenho a impressao de que a cela de meus amigos e um palacio. Clousiot tem uma rede, que lhe pertence, que comprou com dinheiro seu. Ele me obriga a dormir nela. Eu me estico, atravessado. Ele se espanta e eu lhe explico que se deita no sentido do comprimento quem nao sabe se servir de uma rede.
Comer, beber, dormir, jogar damas ou baralho, com cartas espanholas, falar espanhol uns com os outros ou com os policiais e prisioneiros colombianos, para aprender bem a lingua do pais, todas essas atividades enchiam nosso dia e mesmo uma parte da noite. E duro ficar deitado nove horas por noite. Recordo, entao, com muita intensidade, os detalhes da fuga do hospital de Saint-Laurent para Santa Marta; eles chegam, desfilam diante de mim e reclamam uma continuacao. O filme nao pode parar ai, e preciso que continue e ele continuara, meu caro. Deixe que eu recupere as forcas e virao novos episodios, tenha confianca em mim! Achei minhas flechinhas e duas folhas de coca, uma completamente seca, a outra ainda um pouco verde. Fico mascando a folha verde. Todos me olham assombrados. Explico aos meus amigos que sao as folhas com as quais se fabrica a cocaina.
– Nao brinca!
– Experimente.
– Sim, e verdade, o negocio insensibiliza a lingua e os labios.
– Vendem isto por aqui?
– Nao sei. Clousiot, como e que voce se arruma para fazer aparecer a gaita de tempos em tempos?
– Troquei em Rio Hacha e, desde entao, tenho sempre dinheiro na vista de todo mundo.
– Tenho trinta e seis moedas de ouro de 100 pesos com o comandante. Cada moeda vale 300 pesos. Um dia desses, vou levantar o problema.
– Este pessoal e fominha, e melhor oferecer a ele um negocio qualquer.
– Boa ideia.
Domingo, falei com o consul belga e o prisioneiro belga. Este prisioneiro cometeu um abuso de confianca com relacao a uma companhia bananeira americana. O consul se pos a minha disposicao para nos proteger. Preencho uma ficha, onde declaro que sou filho de pais belgas, nascido em Bruxelas. Eu lhe falei das irmas e das perolas. Mas ele e protestante e nao conhece nem as irmas, nem os padres. Conhece um pouquinho o bispo. Quanto as moedas, seu conselho e nao reclamar. Muito arriscado. Ele devera ser avisado, com 24 horas de antecedencia, a respeito de nossa partida para Barranquilla.
– E o senhor – diz o consul – podera reclamar as moedas em minha presenca, uma vez que, se bem compreendi, existem testemunhas.
– Existem, sim.
– Mas, por enquanto, nao reclame nada, ele seria capaz de colocar o senhor de novo naqueles horriveis calaboucos e talvez mesmo de mandar mata-lo. Essas moedas de 100 pesos sao uma verdadeira fortuna. Elas nao valem 300 pesos, como o senhor pensa, mas 500 cada uma. E um dinheirao. E bom nao cutucar o diabo com vara curta. Quanto as perolas, e outra coisa. O senhor me de tempo para refletir.
Pergunto ao negro se nao gostaria de fugir comigo e como, em sua opiniao, a gente deve agir. Sua pele de tom claro ficou cinza quando ele ouviu falar de fuga.
– Pelo amor de Deus, homem. Nem pense nisso. Se fracassa, vai ter a morte lenta mais horrorosa. Voce ja teve um gostinho. Espere para chegar a outro lugar, a Barranquilla. Aqui seria um suicidio. Quer mesmo morrer? Entao fique sossegado. Em toda a Colombia, nao tem um calabouco como este em que esteve. Entao, por que nos arriscarmos aqui?
– Sim, mas aqui o muro nao e alto demais, isso deve ser relativamente facil.
– Homem, facil ou nao, nao conte comigo. Nem para cair fora, nem para lhe ajudar. Nem mesmo para falar nesta coisa.
E, ao me deixar, apavorado, ainda me diz:
– Frances, voce nao e um homem normal, esta louco pensando coisas destas, aqui, em Santa Marta.
Todas as manhas e todas as tardes, fico olhando os prisioneiros colombianos que estao aqui por causa de complicacoes grossas. Tem todos caras de assassinos, mas a gente sente que estao dominados. O terror de ser enviado aos calaboucos os paralisa completamente. Ha uns quatro ou cinco dias, vimos sair do calabouco um diabo grandalhao, uma cabeca mais alto do que eu, chamado “El Caiman”. Goza da reputacao de ser um homem extremamente perigoso. Falo com ele e, depois de tres ou quatro passeios, lhe digo:
–
Ele me olha como se eu fosse o demonio e me diz:
– Para voltar ao mesmo lugar, se a gente fracassa? Nao, obrigado. Prefiro matar minha mae do que voltar para la.
Esta foi minha ultima tentativa. Nunca mais falarei com alguem de fuga,
De tarde, vejo passar o comandante da prisao. Ele para, me olha, depois me diz:
– Como vai tudo?
– Vai andando, mas iria melhor se eu tivesse minhas moedas de ouro.
– Por que?
– Porque poderia pagar um advogado para mim.
– Venha comigo.
Ele me leva ao seu escritorio. Estamos sozinhos. Ele me estende um charuto – nada mal – e o acende – cada vez melhor.
– Voce sabe falar o espanhol bastante para compreender e responder, falando devagar?
– Sim.
– Bem. Voce me diz que gostaria de vender as suas 26 moedas.
– Nao, minhas 36 moedas.
– Ah! sim, sim! E com este dinheiro pagar um advogado? Mas so nos dois sabemos que voce tem estas moedas.
– Nao, ha o sargento e os cinco homens, que me prenderam, e o subcomandante, que recebeu as moedas antes de entregar ao senhor. E ainda ha o meu consul.