acompanhar esses malandros.

Como estou no grupo detras, e perto da gente que viajam os dois chefes do comboio. Um deles me olha e diz:

– Voce e o Papillon, aquele que esta voltando da Colombia?

– Son.

– Nao me espanta que voce tenha ido tao longe, parece que entende de marinha.

Pretensiosamente, respondo:

– Sim, muito.

A resposta gela os caras. Alem disso, o comandante desce do passadico, pois acabamos de sair do estuario do Maroni, e, como e o trecho mais perigoso, ele mesmo pega o timao. Agora, entrega-o para outro. Entao, esse comandante, um preto do Sudao, baixote e gordinho, de cara ainda jovem, pergunta onde estao os caras que foram ate a Colombia num pedaco de pau.

– Este, este e aquele la, ao lado – responde o chefe do comboio.

– Quem era o capitao? – pergunta o anao.

– Eu, senhor.

– Pois olha, meu chapa, como marinheiro, lhe dou os parabens. Voce nao e um qualquer. Olhe!

Bota a mao no bolso da japona:

– Pegue este pacote de fumo e o papel. Fume a minha saude.

– Obrigado, meu comandante. Mas eu tambem devo dar os parabens ao senhor pela coragem de navegar com este rabecao, uma ou duas vezes por semana, ao que parece.

Estoura numa gargalhada, para completar a irritacao daqueles que eu queria chatear. Diz:

– Ah! esta certo! Faz tempo que eles deviam ter jogado esse bote no cemiterio, mas a companhia aguarda que ele afunde para receber o seguro.

Ai corto a conversa com uma observacao que e como um soco no estomago:

– Ainda bem que tem um bote salva-vidas para o senhor e a tripulacao.

– Sim, ainda bem – responde o comandante sem pensar, sumindo logo em seguida pela escada.

Esta conversa, que eu tinha provocado deliberadamente, distraiu a minha viagem durante mais de quatro horas. Cada um queria acrescentar alguma coisa e o papo se estendeu, nao sei como, ate a frente do barco.

O mar, hoje, la pelas 10 da manha, nao esta agitado, mas o vento nao favorece a viagem. Estamos indo em direcao nordeste, isto e, contra as ondas e o vento, o que naturalmente faz balancar e jogar o barco mais que de costume. Alguns guardas e forcados estao doentes. Por sorte, aquele que esta acorrentado comigo aguenta o balanco, pois nao ha nada mais desagradavel que um sujeito vomitando perto da gente. Este rapaz e um verdadeiro moleque parisiense. Foi para os trabalhos forcados em 1927. Faz, entao, sete anos que esta nas ilhas. E relativamente jovem, tem 38 anos.

– Me chamam de Titi la Belote, vou te dizer, meu chapa, porque a belote (jogo de cartas) para mim nao tem segredos. Alias, nas ilhas, e disso que vivo. Vou de belote a noite inteira, a 2 francos o ponto. Com as paradas, isso vai longe. Se voce ganha com um duzentos de valete, o cara te paga quatrocentos pacotes e umas ninharias para os outros pontos.

– Quer dizer que tem grana as pampas nas ilhas?

– E sim, meu velho Papillon! Nas ilhas esta assim de canudos que tem tutu para valer. Alguns sobem com ele, os outros conseguem atraves de guardas ladinos que recebem 50 por cento. Estou vendo que voce e calouro, meu chapa. Parece que voce nao esta por dentro de nada!

– Nao, nao sei nada de nada sobre as ilhas. So sei que e muito dificil fugir.

– Fugir? – diz Titi. – Nem vale a pena falar. Faz sete anos que estou aqui, houve duas tentativas, resultado: tres mortos e dois presos. Ninguem conseguiu. Por isso, nao tem muitos candidatos para tentar a sorte.

– Por que e que voce foi ao continente?

– Fui tirar uma chapa para ver se tenho ulcera.

– E nao conseguiu fugir do hospital?

– Por sua causa. Foi voce, Papillon, que estragou tudo. E, alem do mais, tive a falta de sorte de eles me botarem na mesma sala da qual voce fugiu. Ja viu a vigilancia! Cada vez que a gente se aproximava de uma janela para respirar um pouco, os guardas bronqueavam. E, se a gente queria saber por que, eles respondiam: “Voce pode estar pensando em imitar o Papillon”.

– Diga, Titi, este sujeito sentado ao lado do chefe do comboio, quem e? Dedo-duro?

– Esta louco! Este sujeito e muito estimado pelo pessoal todo. E um gajo bem nascido, mas sabe ter o jeito de um verdadeiro malandro: nao da trela aos guardas, nao pede favores, fica no seu papel de forcado, com distincao. Sabe dar um bom conselho, e um otimo colega e nao quer saber de intimidade com os tiras. Nem o padre e o medico conseguiram usar ele. Este gajo gra-fino, que tem o jeito de um verdadeiro malandro, e descendente de Luis XV. No duro, meu chapa, e um conde, um conde de verdade, o nome dele e Conde Jean de Berac. Apesar de ser grande praca, quando chegou, levou tempo para conquistar a confianca dos homens. Mandaram ele para a cadeia por causa de um troco nojento.

– Que foi que ele fez?

– Bom, chutou o proprio filho por cima de uma ponte, num rio; e, como o guri caiu num lugar com pouca agua, teve a coragem de descer, pegar e jogar ele num lugar mais fundo.

– Nao diga! Entao e como se tivesse matado duas vezes o proprio filho?

– Diz um amigo meu, que e contador e viu o processo, que o sujeito ficou aterrorizado por seu ambiente de nobre. A mae dele tinha botado a mae do guri no olho da rua, como uma cadela, era uma criadinha do castelo. Conta o meu amigo que o sujeito era dominado por uma mae orgulhosa, pedante; ela o humilhou tanto, ele, um conde, por ter ido para a cama com uma criadinha, que o cara nao sabia mais o que estava fazendo quando jogou o guri no rio, depois de ter dito a mae que o tinha levado a assistencia publica.

– A quanto o condenaram?

– So a dez anos. Pense bem, Papillon, nao e um cara como a gente. A condessa, esteio da familia, deve ter explicado aos magistrados que matar o rebento de uma empregada nao e um delito tao grave assim, quando e cometido por um conde que procura salvar o bom nome de sua estirpe.

– Conclusao?

– Pois a minha conclusao (eu, que sou um merda de um jogador Parisiense) e a seguinte: livre e sem problemas, este Conde Jean de Berac era um fidalgo educado de tal modo, que nada importava para ele, so o sangue azul, o resto era insignificante e nao merecia a menor preocupacao. Talvez os outros nao fossem realmente escravos, mas eram pelo menos seres sem maior importancia. Esse monstro de egoismo e pretensao que era a sua mae o massacrou e aterrorizou a tal ponto, que ele virou um monstro tambem. Foi na prisao que este grande senhor, que antes pensava ter o direito da primeira noite, se tornou um verdadeiro nobre, na plena significacao da palavra. Parece engracado, mas so agora ele realmente e o Conde Jean de Berac.

As Ilhas da Salvacao, um “desconhecido” para mim, vao deixar de se-lo daqui a poucas horas. Sei que e muito dificil fugir. Mas nao e impossivel. E, aspirando o delicioso vento do alto-mar, penso: “Quando e que este vento de proa sera transformado em vento de popa, numa evasao?”

Chegamos. Aqui estao as ilhas! Desenham um triangulo. Royale e Saint-Joseph formam a base. A Ilha do Diabo, o vertice. O sol, ja declinando, ilumina-as com todos os seus raios, que so nos tropicos tem tal intensidade. Assim, da para ve-las a vontade. Primeiro Royale, com uma borda plana e baixa que faz a volta de um espigao de mais de 200 metros de altura, o cimo e achatado. O conjunto da a impressao de um chapeu mexicano colocado sobre o mar e do qual se teria cortado a ponta. Muitos coqueiros altos, bem verdes tambem. Casinhas de telhado vermelho dao a ilha uma atracao enorme e aqueles que nao sabem o que e que ha la desejariam viver ai a vida toda. Um farol no planalto deve iluminar a noite, para que, nas tempestades, os barcos nao venham se espatifar nos rochedos. Agora, que estamos mais perto, enxergo cinco edificios grandes e compridos. Titi me diz que primeiro vem duas imensas salas onde vivem quatrocentos forcados. Depois e o bloco da repressao, com suas celas e masmorras, cercado por um alto muro branco. O quarto edificio e o hospital dos forcados e o quinto e o dos guardas. E, por toda parte, espalhadas pelas encostas, casinhas com telhas cor-de-rosa, onde moram os guardas. Mais longe, mas muito perto da ponta de Royale, Saint-Joseph. Menos coqueiros, menos folhagem e, bem em cima do planalto, um imenso casarao que se enxerga muito bem do mar. Entendo imediatamente: e a reclusao e Titi la Belote confirma. Ele me mostra, mais abaixo, os predios onde vivem os forcados que estao cumprindo penas comuns. Estes predios sao perto do mar. As torres de vigilancia, com suas ameias, destacam-se com muita nitidez. E mais algumas casinholas, graciosas, com paredes pintadas de branco e telhados vermelhos.

Como o barco pega a entrada da Ilha Royale pelo sul, nao da mais para ver agora a pequena Ilha do Diabo. Pela rapida visao que tive dela, e um enorme rochedo, coberto de coqueiros, sem edificacoes de importancia. Algumas casas a beira-mar, pintadas de amarelo com telhados enegrecidos. Saberei mais tarde que sao as casas onde vivem os deportados politicos.

Estamos entrando no porto de Royale, abrigado por um molhe imenso, feito de grandes blocos. Obra cuja construcao deve ter custado muitas vidas de forcados.

Apos tres apitos da sirene, o Tanon lanca a ancora a mais ou menos 250 metros do cais. Este cais, solidamente construido com cimento e cascalho grosso, e muito comprido e tem mais de 3 metros de altura. Edificios pintados de branco, com um certo recuo, sao dispostos paralelamente a ele. Leio, em letras pretas sobre fundo branco: “Posto de Guarda” – “Servico de barcos” – “Padaria” – “Administracao do Porto”.

Vemos forcados que olham para o barco. Nao estao de uniforme, mas todos de calcas e com uma especie de blusao branco. Titi la Belote me explica que, nas ilhas, os que tem dinheiro encomendam aos alfaiates roupas leves, “sob medida”, feitas com sacos de farinha cujas letras foram apagadas, e que chegam mesmo a ter uma certa elegancia. Quase ninguem, diz, esta usando o uniforme de forcado.

Uma canoa se aproxima do Tanon. Um guarda no leme, dois guardas armados de mosquetao a esquerda e a direita; atras, perto do que esta no leme, seis forcados em pe, de peito nu, calcas brancas, remam com remos imensos. Percorrem rapidamente a distancia. Puxam atras deles, rebocada, uma grande canoa, do tipo salva-vidas, vazia. Encostam. Descem primeiro os chefes do comboio, que vao se instalar atras. Em seguida, dois guardas, com os mosquetoes, ficam na frente. Com os pes desamarrados, mas sempre algemados, vamos descendo na canoa, de dois em dois; os dez do meu grupo, depois os oito do grupo da frente. Os remadores dao a partida. Terao que fazer mais uma viagem para o resto. Desembarcamos no cais e, enfileirados diante do edificio da administracao do porto, ficamos esperando. Nenhum de nos tem embrulhos. Sem tomar conhecimento dos guardas, os transportados falam conosco em voz alta, a distancia prudente de 5 ou 6 metros. Varios transportados do meu comboio me fazem sinais amistosos. Cesari e Essari, dois bandidos corsos que conheci em Saint-Martin, me dizem que sao remadores, no servico do porto. Neste momento chega Chapar, do caso da Bolsa de Marselha, que conheci em liberdade na Franca. Sem se preocupar, na frente

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