A direita do tribunal, um vigilante cheio de galoes, um capitao, representa a administracao, a acusacao.
– Caso Charriere, Clousiot, Maturette.
Estamos a cerca de 4 metros do tribunal. Disponho de tempo Para estudar a cabeca burilada pelo deserto deste comandante de quarenta a 45 anos, os cabelos embranquecidos nas temporas. Sobrancelhas grossas encimam olhos negros, enormes, que nos fitam direto nos olhos. E um verdadeiro militar. Seu olhar nao tem nada de mau. Ele nos examina, nos avalia em poucos segundos. Meus olhos se fixam nos seus e, a seguir, voluntariamente, os desvio.
O capitao da administracao ataca de modo exagerado e isso vai fazer com que perca a partida. Chama de tentativa de assassinato o golpe circunstancial nos vigilantes. Quanto ao arabe, afirma que foi um milagre nao ter morrido com as nossas numerosas cacetadas. Comete outra falta, dizendo que somos os forcados que, desde que o degredo existe, levaram mais longe, em pais estrangeiro, a desonra da Franca: “Ate a Colombia! Dois mil e quinhentos quilometros, senhor presidente, percorreram estes homens. Trinidad, Curacau, Colombia, todos estes paises ouviram certamente as tagarelices mais mentirosas sobre a administracao penitenciaria francesa.
“Peco duas condenacoes sem confusao de pena, ou seja, um total de oito anos: cinco anos por tentativa de homicidio, por um lado, e tres anos por evasao, por outro lado. Isso, para Charriere e Clousiot. Para Maturette, peco somente tres anos por evasao, uma vez que se infere do inquerito que ele nao participou da tentativa de assassinato.”
O presidente: “O tribunal estaria interessado na narracao mais breve possivel desta muito dilatada odisseia”.
Conto, omitindo a parte do Maroni, nossa viagem por mar ate Trinidad. Descrevo a familia Bowen e suas bondades. Cito o que disse o chefe de policia de Trinidad: “Nao nos cabe julgar a justica francesa, mas nao concordamos com o envio de seus prisioneiros para a Guiana e e por isso que ajudamos voces”. Curacau, o Padre Irenee de Bruyne, o incidente do saco de florins, depois a Colombia, por que e como fomos parar ali. Muito abreviado, uma pequena exposicao de minha vida com os indios. O comandante me ouve sem interromper. So me pede alguns detalhes a mais acerca da minha vida com os indios, passagem que o interessa enormemente. A seguir, as prisoes colombianas, particularmente o calabouco submarino de Santa Marta.
– Obrigado, sua narrativa esclareceu a corte e, ao mesmo tempo, a interessou. Vamos fazer um intervalo de quinze minutos. Nao vejo os defensores dos senhores, onde estao?
– Nao os temos. Eu pediria ao senhor para aceitar que eu mesmo apresente a defesa de meus camaradas e a minha.
– O senhor pode faze-lo, os regulamentos o admitem.
– Obrigado.
Um quarto de hora depois, a sessao recomeca.
O presidente: “Charriere, o tribunal o autoriza a apresentar a defesa dos seus camaradas e a sua propria. Nao obstante, nos o advertimos de que este tribunal lhe retirara a palavra se o senhor faltar com o respeito ao representante da administracao. O senhor pode se defender com toda a liberdade, porem com expressoes convenientes. O senhor tem a palavra”.
“Peco ao tribunal para afastar pura e simplesmente o delito de tentativa de assassinato. Ele e inverossimil e vou prova-lo: eu tinha, no ano passado, 27 anos e Clousiot trinta. Estavamos com forca total, recem-chegados da Franca. Temos 1 metro e 74 e 1 metro e 75 de altura. Batemos no arabe e nos vigilantes com as pernas de ferro de nossa cama. Nenhum dos quatro foi seriamente ferido. Eles foram, portanto, golpeados com muita precaucao, tendo em vista o objetivo, que alcancamos, de os por fora de combate causando-lhes o menor mal possivel. O vigilante acusador esqueceu de dizer, ou o ignora, que as barras de ferro estavam envolvidas com trapos de pano, a fim de evitar o risco de matar alguem. O tribunal, formado de soldados de carreira, sabe muito bem o que um homem forte pode fazer batendo na cabeca de uma pessoa simplesmente com a lamina de uma baioneta. Imaginem, entao, o que nao se pode fazer com uma perna de ferro de uma cama. Devo observar ao tribunal que nenhuma das quatro pessoas atacadas foi hospitalizada.
“Num caso de condenacao a prisao perpetua, creio que o delito de evasao e menos grave do que para um homem condenado a uma pena minima. E bem dificil aceitar, em nossa idade, que nunca mais vamos reviver. Peco para nos tres a indulgencia do tribunal.”
O comandante fala baixinho com os dois assessores, depois bate na mesa com um martelo.
– Acusados, levantem-se!
Nos tres, duros como estacas, ficamos na expectativa.
O presidente: “O tribunal, afastando a acusacao de tentativa de assassinato, nao tem por que ditar uma sentenca, mesmo de absolvicao, por este fato.
“Quanto ao delito de evasao, nos reconhecemos os senhores culpados em segundo grau. Por este delito, o tribunal os condena a dois anos de reclusao”.
Dizemos a uma voz: “Obrigado, comandante”. Eu acrescento: “Obrigado ao tribunal”.
Na sala, os guardas, que assistiam ao processo, nao voltam mais.
Quando tornamos a entrar no edificio onde estao nossos companheiros, todo mundo fica contente com a noticia, ninguem esta invejoso. Pelo contrario. Mesmo os que sofreram condenacoes pesadas nos felicitam sinceramente pela nossa sorte.
Francois Sierra veio me abracar. Esta louco de alegria.
6 AS ILHAS DA SALVACAO
E
Perdi o
Posso me dar por muito feliz de ter so dois anos a cumprir nessa cadeia de outra cadeia. Conforme prometi a mim mesmo, nao vou me deixar levar facilmente pelas divagacoes a que leva o isolamento completo. Para me livrar disso, tenho um esquema: tenho, acima de tudo, de me imaginar livre, saudavel e bem disposto, como um forcado normal das ilhas. Estarei com trinta anos na saida.
Nas ilhas, as evasoes sao muito raras, bem sei. Mas, mesmo que contados nos dedos de uma mao, alguns homens escaparam. Pois bem, quanto a mim, escaparei, tenho certeza. Daqui a dois anos. escaparei das ilhas vou repetindo eu a Clousiot, que viaja a meu lado.
– Meu velho Papillon, nada consegue abala-lo, e essa sua fe de um dia ser livre me da inveja. Ha um ano que voce nao para de preparar tentativas e nunca desistiu. Mal fracassou uma fuga e voce ja esta preparando outra. Fico ate espantado de voce nao ter tentado nada aqui.
– Aqui, velho, so tem um jeito: fomentar uma revolta. So que, para mim, nao da tempo de arregimentar todos estes homens. Quase provoquei uma revolta, mas tive medo de ela acabar tambem comigo. Estes quarenta homens que estao aqui sao todos forcados antigos. O caminho da podridao os engoliu, eles reagem diferente da gente. Por exemplo: os antropofagos, os caras das formigas, aquele que botou veneno na sopa e, para matar um homem, nao hesitou em envenenar sete outros que nunca lhe tinham feito nada.
– Mas nas ilhas os caras vao ser assim tambem.
– Certo, mas escaparei das ilhas sem precisar de ninguem. Vou partir sozinho ou, no maximo, com um cara. Esta rindo, Clousiot, por que?
– Estou rindo porque voce nunca abandona o jogo. Esse fogo que lhe queima as tripas, de estar em Paris para acertar as contas com seus tres amigos, lhe da uma tal forca, que voce nem admite que o que mais deseja possa fracassar.
– Tchau, Clousiot. Ate amanha. Pois e, vamos ver essas famosas Ilhas da Salvacao. Uma primeira coisa para se perguntar: por que essas ilhas da perdicao sao chamadas de Ilhas da Salvacao?
E, voltando as costas para Clousiot, volto um pouco mais a cara para o vento da noite.
No dia seguinte, bem cedo, embarcamos para as ilhas. Vinte e seis homens num barco de 400 toneladas, o
Decidi nao pensar durante esta viagem, estou querendo me distrair. Por isso, so para chatear, grito para o vigia perto de mim, com a sua cara de coveiro:
– Com as correntes que voces nos botaram, e certo que nao escaparemos se este bote podre afundar, o que e bem possivel, no estado em que esta, se o mar engrossar.
Ainda sonolento, o guarda reage como o previsto.
– Pode se afogar, tanto faz. A ordem e botar as correntes e pronto. A responsabilidade e daqueles que dao as ordens. Nos, que cumprimos, estamos garantidos.
– De qualquer modo, esta certo, seu vigia, com correntes ou sem correntes, se este caixao abrir iremos todos para o fundo.
– Sabe, ha muito tempo – diz o estupido – que este barco faz o percurso e nunca aconteceu nada.
– Exato, mas e justamente porque ha tempo demais que ele existe que, na certa, agora pode acontecer alguma coisa de um momento para outro.
Tinha conseguido o que queria: abalar o silencio geral que me irritava. Logo o assunto foi retomado por vigilantes e forcados.
– Pois e, este barco e um perigo e, alem do mais, estamos acorrentados. Sem as correntes, a gente tinha uma chance.
– Oh! da na mesma. A gente, com a farda, as botas e o mosquetao, tambem nao boia.
– O mosquetao nao importa; se o barco afundar, a gente joga fora – diz outro.
A isca pegou, dou o segundo lance:
– Onde estao os botes salva-vidas? Estou vendo so esse pequenininho aqui, para oito homens no maximo. So o comandante e a tripulacao vao encher ele. Para os outros, banana!
Entao o troco pega, papo aceso.
– E mesmo, nao tem nada e o barco esta num estado tal, que e uma irresponsabilidade inaceitavel que pais de familia tenham que correr um perigo para