– Ora, eu me meti numa historia suja. Estou com receio de pegar cinco anos por causa de uma simples evasao. Estou na fuga que foi apelidada de “fuga dos antropofagos”. O que voce ouve, as vezes, gritar de noite: “Eles comeram, etc.” ou “Um guisado, etc”, e para os irmaos Graville.
“Tinhamos saido as 6 do quilometro 42. Na fuga, estavam Dede e Jean Graville, dois irmaos de trinta e 35 anos, lioneses, um napolitano de Marselha e eu, de La Ciotat, mais um cara de Angers, com uma perna de pau, e um rapaz de 23 anos, que lhe servia de mulher. A saida do Maroni foi boa, mas, no mar, nunca conseguimos acertar as coisas e, dentro de poucas horas, estavamos jogados na costa, na Guiana Holandesa.
“Nao pudemos salvar nada do naufragio, nem comida, nem coisa alguma. Estavamos no mato, por sorte com roupa. E preciso que saiba que este lugar nao tem praia e que o mar penetra na floresta virgem. Esta e um emaranhado impossivel de atravessar, por causa das arvores abatidas, quebradas em sua base ou desenraizadas pelo mar, cruzadas umas com as outras.
“Depois de caminhar um dia inteiro, a gente encontrou a terra seca. Nos nos dividimos em tres grupos: os Graville, eu e Guesepi e o perna de pau com seu amiguinho. Para encurtar a historia, tendo partido em direcoes diferentes, doze dias depois nos reencontravamos, quase no lugar de onde saimos, os Graville, Guesepi e eu. O lugar estava cercado de pantanais e nos nao encontramos nenhuma passagem. Nem e bom falar na situacao do estomago. Passamos treze dias so comendo algumas raizes e brotinhos. Mortos de fome e de cansaco, arrasados, ficou decidido que eu e Guesepi, com o resto de nossas forcas, voltariamos para a beira do mar e amarrariamos uma camisa numa arvore, o mais alto possivel, para ficar visivel ao primeiro barco guarda-costa holandes, que nao deixaria de passar por ai. Os Graville deviam, depois de descansar algumas horas, procurar o rastro dos dois outros.
“Isto devia ser facil, porque a gente tinha combinado, no comeco, que cada grupo deixaria um rastro de sua passagem com os galhos quebrados.
“Ora, algumas horas depois, eles veem chegar o cara da perna de pau, sozinho.
“- Onde esta o garoto?
“- Deixei muito longe, porque ele nao podia mais caminhar.
“- E nojento de sua parte abandonar o garoto.
“- Foi ele quem quis que eu viesse de volta.
“A esta altura, Dede notou que o unico pe do perna de pau estava calcado com um sapato do rapaz.
“- E voce, ainda por cima, deixou o menino descalco para pegar o sapato dele? Meus parabens. E voce parece em forma, nao esta como a gente. Voce comeu, esta na cara.
“- Sim, achei um macaco grande ferido.
“- Tanto melhor para voce.
“E ai Dede se levanta, a faca na mao, porque julgou compreender, vendo tambem seu bornal cheio.
“- Abra seu bornal. Que tem ai dentro?
“Ele abre o bornal e aparece um pedaco de carne.
“- Que e isto ai?
“- Um pedaco de macaco.
“- Canalha, matou o garoto para come-lo!
“- Nao, Dede, juro. Ele morreu de cansaco e eu comi um pedacinho do seu corpo. Perdoa.
“Nem teve tempo de acabar de falar e ja tinha a faca enfiada na barriga. Foi entao, que, revistando-o, Dede achou uma sacola de couro com fosforos e o respectivo acendedor.
“Imagine a raiva pelo fato de o homem, antes de se separar, nao ter partilhado os fosforos! Imagine a fome dos caras. Bem, o fato e que nao demorou para acenderem um fogo e digerirem o sujeito.
“Guesepi chega em pleno festim. Eles o convidam. Guesepi recusa. Na beira do mar, tinha comido caranguejos e peixes crus. E ele assiste, sem tomar parte, ao espetaculo dos Graville colocando sobre a brasa outros pedacos de carne e mesmo se servindo da perna de pau para alimentar o fogo. Portanto, Guesepi viu naquele dia e no seguinte os Graville comerem o homem e observou tambem as partes que devoraram: a barriga da perna, a coxa, as duas nadegas.
“Eu”, prossegue Marius, “estava na borda do mar, quando Guesepi veio me procurar. A gente encheu um chapeu com peixinhos e caranguejos e fomos cozinhar no fogo dos Graville. Nao vi o cadaver, eles o arrastaram para longe. Mas vi varios bocados de carne ainda a margem do fogo, sobre a cinza.
“Tres dias depois, um guarda-costas apanhou a gente e devolveu a penitenciaria de Saint-Laurent-du-Maroni.
“Guesepi acabou abrindo o bico. Todo mundo nesta sala sabe do caso, mesmo os guardas. Estou contando a voce porque e sabido de todos. E, como os Graville sao elementos de mau carater, aparecem as piadas que voce ouve de noite.
“Oficialmente, somos acusados de evasao agravada por antropofagia. A desgraca e que, para me defender, precisaria acusar e isso nao e possivel. Todo mundo, inclusive Guesepi, nega na instrucao. A gente diz que eles desapareceram no mato. Essa e minha situacao, Papillon.”
– Lamento, meu chapa, porque, de fato, voce nao pode se defender senao acusando os outros.
Um mes depois, Guesepi foi assassinado por uma facada em pleno coracao, durante a noite. Nao foi sequer preciso perguntar quem deu a facada.
Esta a historia autentica dos antropofagos, que comeram o homem, assando-o com sua propria perna de pau, enquanto este mesmo homem havia deglutido o rapazinho que o acompanhava.
Nesta noite, deito-me num outro lugar da barra da justica. Tomei o lugar de um homem que foi embora e, pedindo a todo mundo para dar uma chegadinha, Clousiot esta junto de mim.
Do lugar onde estou deitado, mesmo com meu pe esquerdo preso a barra por uma argola, posso, ficando sentado, ver o que acontece no patio.
A vigilancia e cerrada; chegou a um ponto em que as rondas nao tem ritmo. Sucedem-se sem cessar e outras chegam em sentido contrario a todo momento.
Meus pes ja me aguentam muito bem e somente quando chove eu sinto dor. Logo, estou em condicoes de empreender uma nova acao, mas como? Esta sala nao tem janelas, so uma imensa grade continua, que cobre toda a largura dela e vai ate o teto. Esta situada de modo que o vento do nordeste penetra livremente Apesar de uma semana de observacao, nao consigo achar uma falha na vigilancia dos guardas. Pela primeira vez, chego quase a admitir que eles conseguirao me botar na reclusao da Ilha de Saint-Joseph.
Disseram-me que ela e terrivel. E chamada de “devoradora de homens”. Outra informacao: jamais um homem conseguiu se evadir dela, nos 24 anos de sua existencia.
Naturalmente, esta meia aceitacao de ter perdido a partida me impele a olhar para o futuro. Tenho 28 anos e o capitao instrutor reclama cinco anos de reclusao. Vai ser dificil eu escapar com menos. Terei, por conseguinte, 33 anos quando sair da reclusao.
Ainda tenho muito dinheiro no meu canudo. Logo, se nao caio fora, o que e provavel, pelo que vejo, ao menos precisarei me manter com boa saude. Cinco anos de isolamento completo e coisa dificil de suportar sem enlouquecer. Espero, portanto, me alimentar bem e disciplinar, desde o primeiro dia de minha pena, o meu cerebro, segundo um programa bem estabelecido e variado. Evitar o mais possivel os sonhos fantasiosos e, sobretudo, os sonhos referentes a minha vinganca. Eu me preparo, por conseguinte, desde agora, para atravessar como vencedor a terrivel punicao que me aguarda. Sim, eles e que acabarao perdendo. Sairei da reclusao fisicamente forte e sempre na plena posse de minhas faculdades fisicas e mentais.
Fez-me bem estabelecer este plano de conduta e aceitar serenamente o que vem pela frente. A brisa que penetra na sala me acaricia antes de todos e me faz verdadeiro bem.
Clousiot sabe quando nao quero falar. Dai que nao tenha perturbado meu silencio e tenha ficado fumando muito, simplesmente. Percebem-se algumas estrelas, eu lhe digo:
– Ve as estrelas do seu lugar?
– Sim – diz ele, se inclinando um pouco. – Prefiro nao olhar para elas, porque me lembram demais as estrelas da fuga.
– Deixa estar, nao se preocupe, a gente revera milhares de estrelas numa outra fuga.
– Quando? Daqui a cinco anos?
– Clousiot, o ano que acabamos de viver, todas estas aventuras, que nos aconteceram, as pessoas que conhecemos, sera que isso tudo nao vale cinco anos de reclusao? Voce preferiria nao ter fugido e ter continuado nas ilhas desde sua chegada? Por causa do que esta a nossa frente e que nao vai ser mole, voce lamenta ter participado dessa evasao? Responda sinceramente, lamenta ou nao?
– Papi, voce esquece uma coisa que eu nao tive: os sete meses que voce passou com os indios. Se tivesse estado com voce, pensaria do mesmo modo, mas eu estava na prisao.
– Desculpe, esqueci, estou divagando.
– Nao, voce nao divaga, nao. E eu, apesar de tudo, estou muito contente com a nossa fuga, porque tambem tive momentos inesqueciveis. So que sinto angustia quanto ao que me espera na “devoradora de homens”. Cinco anos e quase impossivel de aguentar.
Eu lhe explico, entao, o que decidi fazer e sinto que ele reage de modo muito positivo. Fico satisfeito em ver meu amigo reanimado, junto de mim. Estamos a quinze dias do comparecimento diante do tribunal. Conforme certos boatos, o comandante, que vem presidir o conselho de guerra, e conhecido por ser um homem severo, mas, ao que parece, muito correto. Nao aceita com facilidade as invencionices da administracao. Ai esta uma boa noticia.
Clousiot e eu, porque Maturette esta na cela desde a nossa chegada, recusamos aceitar um vigilante como advogado. A gente resolveu que eu fale pelos tres e vou expor, por mim mesmo, nossa defesa.
Esta manha, barbeados e com o cabelo cortadinho ha pouco, metidos de novo num macacao de listras vermelhas, calcados, esperamos no patio o momento de passar pelo tribunal. Ja ha quinze dias que tiraram o gesso de Clousiot. Caminha normalmente, nao ficou manco.
O conselho de guerra comecou na segunda-feira. Estamos no sabado de manha. Ja houve, portanto, cinco dias de processos diversos: o processo dos homens das formigas levou um dia inteiro. Condenados ambos a morte, nunca mais voltei a ve-los. Os irmaos Graville pegam quatro anos somente (falta de prova do ato de antropofagia). O processo deles levou mais da metade de um dia. O restante dos homicidios pegou cinco ou quatro anos.
Em geral, contando os catorze que compareceram, as penas impostas sao um tanto severas, mas aceitaveis, sem exagero.
Nosso julgamento comeca as 7 e meia. Estamos na sala, quando um comandante, em uniforme especial, entra acompanhado de um velho capitao de infantaria e de um tenente, que servirao de assessores.