apaixonadamente puro, em sua forma naturalmente espontanea. Toda a limpidez de que sao capazes as criancas, a maneira pura de ver as coisas, que distingue essa idade privilegiada, tudo isto encontrei nessas indias cheias de vontade, ricas de compreensao, de amor simples e de pureza.

E os leprosos da Ilha dos Pombos! Estes miseraveis forcados, atingidos por esta horrivel doenca, e que, mesmo assim, tiveram a coragem de encontrar em seu coracao a nobreza necessaria para nos ajudar!

Tambem o consul belga, com sua bondade espontanea, tambem Joseph Dega, que, mesmo sem me conhecer, se expos tanto por minha causa! Por esta gente, por estes seres, que conheci, a evasao valeu a pena. Mesmo fracassada, ela e uma vitoria, nem que seja por ter enriquecido minha alma com o conhecimento dessas pessoas excepcionais. Nao. de modo algum, nao lamento tudo o que fiz.

Eis o Maroni e suas aguas lamacentas. A gente esta em cima da coberta do Mana. O sol dos tropicos ja comecou a queimar esta terra. Sao 9 horas da manha. Revejo o estuario e torno a entrar lentamente por onde sai tao depressa. Meus camaradas nao falam. Os guardas estao contentes de chegar. O mar foi ruim durante a viagem e muitos entre eles se sentem agora aliviados.

16 DE NOVEMBRO DE 1934

No cais, um mundo louco. A gente sente que sao esperados com curiosidade os homens que nao tiveram medo de ir tao longe. Como chegamos num domingo, isto constitui uma distracao para esta sociedade, que dispoe de tao poucas. Ouco dizerem:

– O ferido e Papillon. Aquele ali e Clousiot. O outro la, Maturette… – e assim por diante.

No campo da penitenciaria, seiscentos homens se acham reunidos em grupos na frente de seus barracoes. Junto de cada grupo, vigilantes. O primeiro que reconheco e Francois Sierra. Chora abertamente, sem se esconder dos outros. Esta empoleirado numa janela da enfermaria e me olha. A gente sente que seu sofrimento e verdadeiro. Paramos no meio do campo. O comandante da penitenciaria pega um megafone:

– Deportados, voces puderam constatar a inutilidade das tentativas de fuga. Todos os paises prendem voces para entrega-los a Franca. Ninguem quer voces. E melhor, portanto, ficar sossegado e se conduzir bem. O que espera estes cinco homens? Uma forte condenacao adicional, que deverao cumprir na Reclusao Disciplinar da Ilha de Saint-Joseph e, quanto ao restante de sua pena, o internamento para toda a vida nas Ilhas da Salvacao. Ai esta o que lucraram com sua fuga. Espero que tenham compreendido. Vigilantes, levem estes homens para o quartel disciplinar.

Alguns minutos depois, estamos numa cela especial no quartel de alta vigilancia. Assim que chego, reclamo que tratem dos meus pes, ainda bem intumescidos e muito inflamados. Clousiot diz que o gesso de sua perna lhe faz mal. A gente tenta o golpe… Ah, se «les nos mandassem para o hospital! Francois Sierra chega com um guarda.

– Aqui esta o enfermeiro – diz o guarda.

– Como vai voce, Papi?

– Estou doente, quero ir para o hospital.

– Vou tentar mandar voce para la, mas, depois do que fez la, acho que isto sera quase impossivel. Clousiot, a mesma coisa.

Ele faz uma massagem nos pes, bota uma pomada, verifica o gesso de Clousiot e vai embora. A gente nao pode falar, porque os guardas estavam ai, mas os olhos dele exprimiam tanta bondade, que fiquei profundamente comovido.

– Nao, nao resta nada a fazer – me diz ele no dia seguinte, fazendo outra massagem. – Quer que mande voce passar para uma sala comum? Sera que botam a barra nos seus pes de noite?

– Sim.

– Entao e melhor que voce va para a sala comum. Continuara, mesmo assim, com a barra, mas nao estara sozinho. Neste momento, ficar no isolamento deve ser horrivel para voce.

– Combinado.

Sim, o isolamento e, neste momento, ainda mais dificil de suportar do que antes. Eu me sinto num tal estado de espirito, que nao tenho sequer necessidade de fechar os olhos para vagabundear, tanto pelo passado, como pelo presente. E como nao posso andar, o calabouco e para mim ainda pior do que tinha sido.

Ah! Ai estou eu, de volta ao caminho da podridao. No entanto, consegui me livrar bem rapidamente e voo sobre o mar, para a liberdade, para a alegria de poder voltar a ser um homem, para a vinganca tambem. E preciso nao esquecer a divida que o trio tem de me pagar: Polein, os tiras e o promotor. Quanto a mala, nao tenho necessidade de entrega-la aos tiras da porta da policia judiciaria. Chegarei vestido como empregado dos carros-leitos Cook, um bonito bone da companhia na cabeca. Sobre a mala, uma grande etiqueta: Comissario Divisionario Benoit, 36, Qual des Orfevres, Paris (Seine). Eu proprio levarei a mala para a sala de informacoes e, como terei calculado que o despertador so funcionara quando eu tiver saido, a coisa nao pode falhar. Fico aliviado de um grande peso, por ter encontrado a solucao. Quanto ao promotor, tenho tempo para lhe arrancar a lingua. A maneira ainda nao esta resolvida, mas e como se estivesse. Eu lhe arrancarei a lingua aos pedacos, esta lingua prostituida.

Na situacao imediata, primeiro objetivo: tratar dos meus pes. E preciso que eu volte a andar o mais depressa possivel. Nao vou comparecer ao tribunal antes de tres meses e, em tres meses, muita coisa acontece. Um mes para andar, um mes para acertar as coisas e “ate logo, senhores”. Destino: Honduras britanica. Mas, desta vez, ninguem bota a mao em cima de mim.

Ontem, tres dias apos o nosso regresso, me levaram para a sala comum. Quarenta homens aguardam ai o conselho de guerra. Uns acusados de roubo, outros de saque, de incendio premeditado, de homicidio, de tentativa de homicidio, de assassinato, de tentativa de evasao e ate de antropofagia. Somos vinte de cada lado do tabique de madeira, acorrentados a mesma barra de ferro de mais de 15 metros de comprimento. As 6 horas da tarde, o pe esquerdo de cada homem e ligado a barra comum por uma argola de ferro. As 6 horas da manha, tiram-nos estes grossos aneis e, durante todo o dia, a gente pode se sentar, passear, jogar damas, conversar no que a gente chama de passeio, uma especie de aleia de 2 metros de largura, que atravessa a sala. Durante o dia, nao tenho tempo para me chatear. Todo mundo vem me ver, aos grupinhos, para que eu conte a evasao. Ficam todos gritando como possessos, quando digo que abandonei voluntariamente minha tribo de indios guajiros, Lali e Zoraima.

– Que e que voce procurava, meu camarada? – diz um parisiense, ouvindo a historia. – Bondes? Elevadores? Cinemas? A luz eletrica com sua corrente de alta tensao para acionar a cadeira eletrica? Ou queria tomar banho no tanque da Praca Pigalle? Mas, como e que pode, meu camarada! – continua o garotao. – Voce tem duas pequenas, cada uma mais bacana do que a outra, vive nu no meio da natureza com um bando de nudistas do barulho, come, bebe, vai a caca; tem o mar, o sol, a areia quente e ate as perolas das ostras sao suas, de graca… e voce nao acha nada melhor do que abandonar tudo isto para ir aonde? Diga? Para ter de atravessar as ruas na correria para nao ser atropelado pelos carros, ser obrigado a pagar aluguel, a pagar o alfaiate, a conta da eletricidade e do telefone e, se quiser um carango, ter de quebrar o galho ou trabalhar como uma besta para um patrao e ganhar salario so para nao morrer de fome? Nao compreendo, meu chapa! Voce estava no ceu e voluntariamente volta ao inferno onde, alem das preocupacoes com a vida, tem de estar de olho para escapar de todos os tiras do mundo, que correm atras de voce! E verdade que voce ainda esta com o sangue fresquinho da Franca e nao teve tempo para ver suas faculdades fisicas e morais decairem. Quanto a mim, com meus dez anos de forcado, nem consigo mais compreender voce. Enfim, de todo jeito, seja bem-vindo entre nos e, como certamente voce tem a intencao de recomecar, conte com a gente para ajudar. E ou nao e, meus chapas? Estao de acordo?

Os caras concordaram e eu agradeco a todos.

Sao, bem vejo, homens perigosos. Em virtude de nossa promiscuidade, e muito dificil que um ou outro nao perceba quem esta com um canudo. De noite, como todo mundo esta preso a barra da justica comum, nao e dificil matar alguem impunemente. Basta que, de dia, em troca de certa quantidade de gaita, o guarda-chaves arabe aceite nao fechar bem a argola. Assim, de noite, o homem interessado se solta, faz o que decidiu fazer e tranquilamente volta a se deitar em seu lugar, tomando o cuidado de fechar bem sua argola. Como e indiretamente cumplice, o arabe fica de boca calada.

Ja faz tres semanas que voltei. Passaram bem depressa. Comeco a andar um pouco, me segurando na barra do corredor, que separa as duas fileiras de tabiques. Faco as primeiras experiencias. Na semana passada, na instrucao, vi os tres guardas do hospital, que a gente moeu de pancada e desarmou. Estao muito contentes com a nossa volta e aguardam que, um dia, a gente caia num lugar onde eles estejam de servico. Porque, depois da nossa evasao, os tres sofreram sancoes graves: suspensao de seis meses de licenca na Europa; suspensao do suplemento colonial do ordenado deles durante um ano. Nao e preciso dizer que nosso reencontro nao foi muito cordial. Contamos estas ameacas na instrucao, a fim de que sejam registradas.

O arabe esta mais bem comportado. So disse a verdade, sem exagerar e omitindo o papel desempenhado por Maturette. O capitao-juiz de instrucao insistiu muito para saber quem nos arranjou o barco. Ficamos em dificuldade para lhe contar estorias inverossimeis, como, por exemplo, a confeccao de jangadas por nossos proprios meios, etc.

Por causa da agressao aos vigilantes, ele nos diz que fara tudo que puder para conseguir cinco anos para mim e Clousiot e tres para Maturette.

– E, uma vez que o senhor e o conhecido Papillon (borboleta), nao perde por esperar, eu lhe cortarei as asas de modo que nao possa mais voar.

Fico com medo de que ele tenha razao.

Mais de dois meses esperando para comparecer ao tribunal. Lamento muito nao ter colocado no meu canudo uma ou duas pontas de flechinhas envenenadas. Se as tivesse, poderia talvez jogar no tudo ou nada no quartel disciplinar. Agora faco progresso dia a dia. Caminho cada vez melhor. Francois Sierra nao falta nunca: pela manha e a tarde, vem me fazer massagem com oleo canforado. Estas massagens-visitas me fazem um bem enorme, aos pes e ao moral. E tao bom ter um amigo na vida!

Observei que esta longa evasao nos deu um prestigio indiscutivel junto a todos os forcados. Estou certo de que nos encontramos em seguranca completa no meio destes homens. Nao corremos o risco de ser assassinados por motivo de roubo. A grande maioria nao aceitaria isso e e seguro que os culpados seriam liquidados. Todos. sem excecao, nos respeitam e tem mesmo certa admiracao por nos. E as porradas que demos nos guardas levam os outros a pensar que estamos dispostos a fazer o diabo. E muito interessante se sentir em seguranca.

Dia a dia, caminho um pouco mais e, com frequencia, gracas a uma garrafinha que Sierra me deixa, tem gente que se oferece para me fazer massagem nao so nos pes, mas tambem nos musculos das pernas, que esta longa imobilidade atrofiou.

UM ARABE ENTREGUE AS FORMIGAS

Nesta sala, ha dois homens taciturnos, que nao falam com ninguem. Sempre colados um com o outro, so falam entre si, numa voz tao baixa, que pessoa alguma consegue ouvir. Um dia, ofereco a um deles um cigarro americano de um maco que Sierra me trouxe. Ele me agradece e, a seguir, me diz:

– Francois Sierra e seu amigo?

– Sim, e meu melhor amigo.

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