que, no escuro, eu mais adivinho do que vejo – comeca a se mexer e se desloca rapidamente na direcao da parede. Quando ela se mexeu, tive um movimento de recuo. Chegando ao muro, ela comeca a subir, mas logo cai por terra. A parede e tao lisa, que a coisa nao consegue subir por ela. Deixo-a tentar tres vezes a subida; quando ela tenta pela quarta vez e cai, esmago-a com o pe. Sinto algo mole sob a meia grossa. O que podera ser? Ponho-me de joelhos e olho-a o mais de perto que posso. Por fim, consigo distinguir: e uma enorme centopeia de mais de 20 centimetros de comprimento e dois dedos de largura. Sinto-me tao repugnado, que nao a apanho para por na bacia; empurro-a com o pe para baixo da cama. Amanha, durante o dia, verei. Alias, tive ocasiao de ver muitas centopeias: elas caem do teto do predio, la de fora. Aprendi a deixa-las caminharem sobre o meu corpo nu, quando estou deitado, sem pega-las e sem fazer-lhes mal. Tive ocasiao de aprender quanto sofrimento pode custar um erro tatico quando uma centopeia esta em cima da gente. Uma picada desse bicho nojento queima horrivelmente durante seis dias e deixa uma febre de cavalo que dura mais de doze dias na pessoa.
De qualquer maneira, sera uma distracao, um derivativo para os meus pensamentos. Quando eu estiver acordado e cair uma centopeia, tortura-la-ei com a vassoura durante o maximo de tempo que me for possivel, ou entao me divertirei com ela, deixando-a esconder-se e tentando encontra-la depois.
Um, dois, tres, quatro, cinco… Um silencio total. Ninguem ronca aqui? Ninguem tosse? E verdade que esta fazendo um calor de abafar tudo. E estamos de noite! Como nao deve ser de dia… Meu destino e o de viver com as centopeias. Quando a agua subia no calabouco de Santa Marta, chegava uma grande quantidade delas; eram menores, mas da mesma familia destas. Em Santa Marta havia inundacao todos os dias, e verdade, mas a gente falava, gritava, escutava os cantos, as vozes e as divagacoes dos loucos temporarios ou definitivos. Nao e a mesma coisa. Se eu tivesse que escolher, escolheria Santa Marta. O que estas dizendo e ilogico, Papillon. A opiniao unanime e a de que o maximo que um homem poderia resistir la embaixo seriam seis meses. Ora, aqui, ha muitos que tem penas de quatro, cinco anos, ou ate mais, por cumprir. Que eles tenham sido condenados a essas penas e uma coisa; mas que as cumpram e outra. Quantos se suicidam? Nao vejo como alguem possa se suicidar. No entanto, e possivel. Nao e facil, porem a gente pode se enforcar. Fabricando uma corda com as calcas, utilizando a vassourinha para passar a ponta da corda por uma das barras de ferro da janela, trepado na cama. Fazendo essa operacao bem junto ao chao do caminho da ronda, e provavel que o guarda nao veja a corda. Quando o guarda tiver acabado de passar, voce se balanca no vazio; e, quando ele voltar, voce ja esta frito. Alias, ele nao tera muita pressa em descer e abrir a cela para soltar da corda o corpo do enforcado. Abrir a cela? Ele nao pode. Esta escrito na porta: “E proibido abrir essa porta sem ordem superior”. Entao, nao precisa se preocupar, quem quiser se suicidar tem muito tempo para isso, antes que venham tira-lo da corda “por ordem superior”.
Toda essa minha descricao talvez nao seja muito movimentada e interessante para as pessoas que gostam da acao e dos incidentes. Se eu as estiver aborrecendo, essas pessoas podem pular as paginas. No entanto, creio que devo descrever com a maior fidelidade possivel essas primeiras impressoes, esses primeiros pensamentos, que me apareceram no primeiro contato com a nova cela, essa reacao das minhas primeiras horas de enterrado vivo.
Estou caminhando ha muito tempo. Ouco um murmurio no meio da noite, e a mudanca da guarda. O guarda anterior era grande e magro, este de agora e gordo e baixo. Arrasta um pouco os pes.
O barulho dos pes se arrastando se percebe duas celas antes e permanece ate duas ceias depois. Nao e cem por cento silencioso, como o outro. Continuo a andar. Deve ser tarde. Que horas devem ser? Amanha terei certo controle do tempo. Gracas as quatro vezes por dia em que se deve abrir a janelinha da porta, saberei aproximadamente as horas. Para a noite, sabendo a hora do comeco do primeiro turno da guarda e a duracao dele, terei uma boa medida de tempo: primeiro turno, segundo, terceiro, etc.
Um, dois, tres, quatro, cinco… Automaticamente, continuo nessa caminhada interminavel e, com a ajuda do cansaco, consigo facilmente sair do presente e mergulhar no passado. Por contraste com a escuridao da cela, com certeza, sinto-me em pleno sol, sentado na praia da minha tribo. O barco em que Lali esta pescando oscila a 200 metros de mim, nesse mar verde-opala, incomparavel. Mexo na areia com os pes. Zoraima me traz um peixe grande assado na brasa, enrolado carinhosamente numa folha de bananeira, para conservar o calor. Como com a mao, naturalmente; e ela, sentada de pernas cruzadas diante de mim, me observa. Fica feliz de ver como grandes pedacos vao sendo facilmente suprimidos do peixe e le no meu rosto a satisfacao de saborear uma comida tao deliciosa.
Nao estou mais na cela. Nem mesmo sei se existe a reclusao, se existem Saint-Joseph e as ilhas. Rolo na areia, limpando as maos nestes graos tao finos, que ate parecem de farinha. Depois vou ate o mar, para bochechar com essa agua tao limpida e tambem tao salgada. Pego a agua com as maos e passo-a na cara. Esfregando o pescoco, percebo que meus cabelos estao muito compridos. Quando Lali voltar, vou pedir a ela para corta-los. Passo a noite toda com minha tribo. Tiro o
A luz se apaga e percebe-se que esta chegando o dia, invadindo a escuridao da cela, expulsando essa especie de neblina negra que me impede de ver o que esta por baixo, a meu redor. Um sinal de apito. Escuto o barulho das camas que se recolhem as paredes e o ruido do meu vizinho que ajeita seu leito embutido. Meu vizinho tosse e ouco um pouco de agua caindo. Como e que a gente se lava aqui?
– Senhor guarda, como e que a gente se lava aqui?
– Prisioneiro, voce esta perdoado porque nao sabia, mas nao tem o direito de falar com o guarda, senao pega um castigo duro. Para se lavar, voce deve se colocar embaixo da bacia, pegar a agua com o canecao, derrama-la com uma das maos e se lavar com a outra. Voce nao desdobrou a coberta?
– Nao.
– Dentro dela ha uma toalha, pode verificar.
Essa agora! Nao se pode falar com a sentinela? Por motivo nenhum? E se a gente esta sofrendo muito por alguma razao? Se a sente esta morrendo? Uma crise cardiaca, uma crise de apendicite ou uma crise de asma muito forte? E proibido gritar por socorro aqui, mesmo em caso de risco de vida? E o cumulo! Mas nao e, nao. E normal. Seria muito facil armar um escandalo quando a resistencia acaba e os nervos explodem. Seria facil faze-lo para ouvir vozes, para ouvir falarem, ainda que fosse para te dizerem: “Morre, mas fica quieto”. Vinte vezes por dia, duas dezenas destes 250 homens que devem estar aqui provocariam uma discussao qualquer para se desfazer, como se fosse num estrondo, da excessiva pressao do gas existente dentro da cabeca deles.
Quem teve a ideia de construir estas jaulas para leoes nao pode ter sido um psiquiatra: um medico nao se desonraria a esse ponto. Tambem nao ha de ter sido um medico quem estabeleceu o regulamento. As duas pessoas que fizeram o conjunto, no entanto, o arquiteto e o funcionario que estudou os pormenores da execucao da pena, ambos sao dois monstros repugnantes, dois psicologos viciados e crueis, cheios de odio sadico pelos condenados.
Dos carceres da central de Beaulieu, em Caen, por mais fundos que fossem, com dois andares de poroes metidos terra adentro, ainda podia se filtrar e um dia chegar ao publico o eco das torturas e dos maus-tratos sofridos por alguns dos presos.
A prova e que, quando tiveram de me tirar as algemas e as correntes que prendiam ate meus polegares, vi no rosto dos guardas sinais de medo; sem duvida eles estavam com medo de ter aborrecimentos.
Aqui, nesta reclusao, onde so entram os funcionarios da administracao, eles ficam todos muito tranquilos, nada lhes pode acontecer.
Clac, clac, clac, todas as janelinhas das portas sao abertas. Chego perto da minha, arrisco uma olhada e depois meto uma parte da cabeca e logo toda a cabeca para fora. Olho a esquerda e a direita, vejo uma porcao de cabecas no corredor. Compreendo imediatamente que, assim que as janelinhas se abrem, todas as cabecas se esticam para fora. O vizinho da direita me olha, sem exprimir absolutamente nada no olhar. Sem duvida esta embrutecido pela masturbacao. E palido e flacido, com uma pobre fisionomia opaca de idiota. O vizinho da esquerda me diz, rapidamente:
– A quanto tempo?
– Dois anos.
– Eu a quatro. Ja completei um. Seu nome?
– Papillon.
– O meu e Georges, Jojo de Auvergne. Onde te prenderam?
– Em Paris. E voce?
Nao teve tempo de responder: o cafe, com a bolota de pao, estava chegando duas celas antes. Recolheu a cabeca e eu fiz o mesmo. Estendo o canecao, enchem-no de cafe e depois me dao uma bolota de pao. Como nao apanho o pao com suficiente rapidez, fecham a janelinha e o pao rola pelo chao. Dali a menos de quinze minutos, o silencio ja voltou. Deve haver duas distribuicoes, uma em cada corredor, porque a coisa e feita depressa demais. Meio-dia, chega uma sopa com um pedaco de carne cozida. A noite, um prato de lentilhas. Durante dois anos, esse cardapio so varia de noite: lentilhas, feijao-mulatinho, ervilhas, creme de ervilhas, feijao branco ou arroz. A refeicao do meio-dia e sempre a mesma.
De quinze em quinze dias, tambem, a gente mete a cabeca pela janelinha e um preso, com uma maquina de cortar cabelo, nos corta a barba.
Ha tres dias que estou aqui. Ha uma coisa que me preocupa. Em Royale, meus amigos disseram que me mandariam algo para comer e cigarros. Nao recebi coisa alguma. Gostaria de saber, alias, como eles poderiam fazer tamanho milagre. Por isso, nao me surpreendo muito de nada ter recebido. Deve ser muito perigoso fumar; e, de qualquer maneira, seria um luxo. Comer, sim, deve ser considerado vital, porque a sopa do meio-dia e agua quente com dois ou tres fiapos de folhas de verdura e um pedaco de mais ou menos 100 gramas de carne cozida. De noite, sao os feijoes w alguns legumes secos que aparecem nadando na agua. Para ser franco, desconfio que nao e a administracao que deixa de nos dar uma refeicao razoavel e sim os presos que distribuem ou preparam a comida, Essa ideia me ocorre numa noite em que e um sujeito pequeno de Marselha quem esta distribuindo os legumes: a concha vai ate o fundo do caldeirao e, quando e ele, recebo mais legumes do que agua. Com os outros da-se o contrario: mexem um pouco a mistura, mas enchem a concha na superficie, com pouco legume e muita agua. Essa subalimentacao e extremamente perigosa. Para ter firmeza de vontade moral e necessaria certa forca fisica.
Estao varrendo o corredor, acho que estao varrendo tempo demais diante da minha cela. A vassoura passa insistentemente na base da porta e percebo um pedaco de papel branco aparecendo. Entendo logo que me passaram algo pela soleira mas nao puderam passa-lo direito e estao esperando que eu puxe a coisa antes de ir varrer outros lugares. Puxo o papel, abro-o, e um bilhete escrito com tinta fosforescente. Espero que o guarda passe e leio as pressas:
“Papi, todos os dias, a partir de amanha, voce recebera na bacia cinco cigarros e um coquinho. Quando comer o coquinho, mastigue bem para aproveitar e engula o caroco. Fume de manha, na hora da limpeza das bacias.