massa, no momento em que me passava a bacia na qual pusera o coquinho e os cinco cigarros.
O incidente era tao grave, que durante alguns minutos a regra do silencio foi esquecida. As pancadas recebidas pelo desgracado foram claramente ouvidas e, em seguida, ouviu-se o ruido de um homem estertorando, como se estivesse morrendo. O visor da minha porta se abriu e a cabeca congestionada de um guarda me gritou:
– Voce nao perde nada por esperar!
– Pode vir, canalha! – respondi-lhe, tenso, por ter ouvido o tratamento dispensado ao infeliz que me ajudava.
Isso ocorrera as 7 horas. Foi somente as 11 que uma delegacao, chefiada pelo subcomandante, veio me buscar. Abriram a porta que ha vinte meses se fechara a minha passagem e desde entao nunca fora aberta. Fiquei no fundo da cela, empunhando o canecao, em atitude de defesa, decidido a brigar o quanto pudesse, por duas razoes: primeiro, para que alguns guardas nao batessem impunemente; depois, para ser morto mais depressa. Nao houve nada disso. Falaram:
– Prisioneiro, saia.
– Se e para me baterem, fiquem sabendo que vou me defender e que, portanto, nao vou sair daqui para ser atacado por todos os lados. Aqui, estou em melhores condicoes para arrebentar o primeiro que me tocar.
– Charriere, nos nao vamos bater em voce.
– Quem me garante?
– Garanto eu, o subcomandante da reclusao.
– E voce tem palavra?
– Nao insulte, que e inutil. Por minha honra, prometo que voce nao sera espancado. Agora saia.
Olho para o canecao, que continuo a empunhar.
– Pode guarda-lo, que nao vai ser utilizado.
– Va la.
Entre seis guardas e o subcomandante, saio e percorro todo o corredor. Chegando ao patio, a cabeca comeca a girar e os olhos, feridos pela luz, sao obrigados a se fechar. Finalmente percebo o aposento onde somos recebidos. Ha uma duzia de guardas nele. Sem me empurrar, fazem-me entrar na sala da administracao. No chao, ensanguentado, esta um homem que geme. Num relogio de parede vejo que sao 11 horas e penso: “Ha quatro horas que torturam esse desgracado”. O comandante esta sentado atras de sua escrivaninha, o subcomandante sentado a seu lado.
– Charriere, ha quanto tempo voce recebe comida e cigarros?
– Aquele ali ja lhes deve ter dito.
– Estou perguntando a voce.
– Sou amnesico, nao sei o que acontece na vespera.
– Esta brincando comigo?
– Nao. E estranho que isso nao conste da minha ficha. Sofro de amnesia desde que levei uma pancada na cabeca.
O comandante fica tao surpreendido com essa resposta, que diz:
– Perguntem a Royale se existe alguma referencia a isso na ficha dele.
Enquanto telefonam, ele continua:
– Mas voce se lembra de que se chama Charriere?
– Lembro.
E, rapido, para desconcerta-lo ainda mais, passo a falar como um automato:
– Meu nome e Charriere, nasci em 1906 em Ardeche e fui condenado a prisao perpetua em Paris, no distrito do Sena.
Ele abre os olhos de tal maneira, que ficam redondos como bolas de gude, sinto que o abalei.
– Voce recebeu cafe e pao hoje de manha?
– Recebi.
– Qual foi o legume que lhe deram ontem a noite?
– Nao sei.
– Entao, voce quer dizer que nao tem memoria nenhuma?
– Do que aconteceu, nao tenho nenhuma. Porem me lembro das fisionomias. Por exemplo, sei que foi o senhor quem me recebeu, um dia. Quando, nao sei.
– Entao, voce nao sabe quanto tempo ainda lhe resta por cumprir?
– Da prisao perpetua? Acho que ate eu morrer.
– Nao. Estou falando da sua pena de reclusao disciplinar”.
– E eu tenho uma pena de reclusao disciplinar? Por que?
– Ah, isso e o cumulo! Por Deus! Voce vai acabar me deixando fora de mim. Nao venha me dizer que voce nao sabe que esta aqui para cumprir uma pena de dois anos de reclusao por ter fugido, ora essa!
Agora e que acabo de liquida-lo:
– Por ter fugido? Eu? Comandante, sou um homem serio, capaz de assumir a responsabilidade pelo que faz. Venha comigo visitar minha cela e o senhor vera se fugi.
Nesse momento, um guarda lhe diz: “Estao falando de Royale, comandante”. Ele pega o telefone: “Nao ha nada? E estranho. Ele diz que sofre de amnesia, causada por uma pancada na cabeca. Claro, e um simulador. Quem pode saber? Bem, desculpe, comandante, vou verificar. Ate ja. Informarei logo ao senhor, nao ha duvida”.
– Venha ca, seu comediante, deixe eu ver a sua cabeca. Ah, de fato, aqui ha uma cicatriz bem grande. Como e que voce se lembra de que nao tem memoria alguma depois dessa pancada, hem? Explique isso.
– Nao explico, apenas constato que me lembro de ter levado essa pancada, que me chamo Charriere e algumas outras coisas.
– E o que e que voce pensa que vai acontecer com voce agora?
– E o que estamos discutindo aqui. O senhor me perguntou ha quanto tempo me dao comida e cigarros. Minha resposta definitiva e essa: nao sei. Pode ser a primeira vez, pode ser a milesima. Sofro de amnesia, nao posso responder. E tudo que eu posso lhe dizer. O senhor faca como quiser.
– O que vou querer fazer e simples. Voce comeu demais durante muito tempo, agora vai emagrecer um pouco: sua refeicao da noite fica suprimida ate o final da pena.
Neste mesmo dia recebo um bilhete pelo segundo varredor. Infelizmente nao consigo le-lo, porque nao esta escrito com tinta fosforescente. De noite acendo
Bem, ca estou eu, sem coquinho, sem cigarros e, de agora em diante, sem noticias dos amigos de Royale. Alem disso, sem jantar. Ja estava habituado a nao passar fome e os dez cigarros me ajudavam a encher o dia e uma parte da noite. Nao penso em mim, somente; penso no pobre-diabo que eles quase mataram de pancada por minha causa. Esperemos que nao lhe tenham dado um castigo cruel demais.
Um, dois, tres, quatro, cinco, meia volta… Um dois, tres, quatro, cinco, meia volta. Nao vai ser facil suportar esse novo regime monstruoso. Nao sera preciso mudares de tatica, ja que vais comer tao pouco? Por exemplo: ficar deitado o maximo possivel de tempo, para nao gastar energias. Quanto menos eu me mover, menos calorias queimarei. Ficar sentado muitas horas durante o dia. Devo aprender toda uma outra forma de vida. Quatro meses sao 120 dias que me faltam para passar aqui. No regime em que acabam de me por, em quanto tempo ficarei bastante anemico? Nao antes de dois meses, acredito. Portanto, tenho diante de mim dois meses cruciais. Quando eu estiver bem fraco, os medicos terao um terreno maravilhoso para atacar. Resolvo ficar deitado de 6 horas da tarde as 6 da manha. Da hora do cafe a da limpeza das bacias, poderei andar mais ou menos duas horas. Meio-dia, depois da sopa, mais duas horas, aproximadamente. Ao todo, quatro horas de caminhada. O resto do tempo, sentado ou deitado.
Sera dificil decolar para outras paragens sem estar cansado, mas vou tentar.
Hoje, depois de ter passado um bom pedaco pensando nos meus amigos e no infeliz que foi tao maltratado, comeco a treinar adaptando-me a nova disciplina. Tenho bons resultados, embora as horas me parecam mais longas e minhas pernas, que passam tantas horas quase sem funcionar, parecam completamente cheias de formigas.
Ja dura dez dias esse regime. Agora estou permanentemente com fome. Sinto um cansaco constante, que se apoderou endemicamente de mim. O coquinho me faz muita falta e os cigarros um pouco tambem. Deito-me cedo e logo fujo virtualmente da minha cela. Ontem estive em Paris, no Rat Mort, bebendo champanha com alguns amigos, entre os quais Antonio de Londres, nascido nas Ilhas Baleares, mas que fala frances como um parisiense e ingles como um autentico londrino. De manha, no Marronnier, Rua de Clichy, ele matara um de seus amigos. Sao coisas que acontecem no nosso meio, amizades que rapidamente se transformam em odio mortal. De fato, ontem eu estava em Paris, dancando ao som do acordeao que toca no baile do Petit Jardin, na Avenida Saint-Quen, para um publico inteiramente composto de corsos e marselheses. Todos os amigos desfilam nessa viagem imaginaria e com tamanha nitidez, que nao duvido nem da presenca deles nem da minha nos lugares onde passei noites tao boas.
Sem andar muito, portanto, com esse regime alimentar drastico, chego ao mesmo resultado a que chegava procurando cansar-me. As imagens do passado me tiram da cela com tamanho vigor, que acabo realmente vivendo mais horas de liberdade do que horas de reclusao.
Falta somente um mes. Ha tres meses que absorvo apenas uma bolota de pao e uma sopa quente ao meio-dia, sem legumes e com seu pedaco de carne cozida. O estado de fome permanente em que me acho faz com que, na propria hora em que me servem, eu examine o pedaco de carne, para ver se nao e pura pelanca, como ocorre com certa frequencia.
Emagreci bastante e percebo claramente como aquele coquinho que eu tive ocasiao de receber durante vinte meses foi essencial para a conservacao da saude e do equilibrio, nessa terrivel exclusao da vida.
Depois de ter bebido o meu cafe, hoje de manha, estou me sentindo muito nervoso. Comi, de uma so vez, metade do meu pao, o que nunca faco. Habitualmente, corto-o em quatro pedacos mais ou menos iguais, como um as 6 horas da manha, outro ao meio-dia, outro as 6 da tarde e o ultimo a noite. “Por que fizeste isso?”, recrimino-me, sozinho. “Quando ja estamos chegando ao final e que comecas a fraquejar tao seriamente?” “E que estou com fome e me sinto sem forcas.” “Nao sejas