metros de largura, a “avenida”. Aqui, tambem, os homens vivem em pequenas organizacoes, as patotas. Ha patotas de dois homens, mas tambem de dez.

Assim que chegamos, de todos os lados chegam forcados vestidos de branco: “Papi, venha para ca”. “Nao, venha com a gente.” Grandet pega a minha sacola e diz:

– Ele vai ficar de patota comigo.

Vou seguindo Grandet. Instalam a lona, bem esticada, que me servira de cama.

– Tome um travesseiro de penas, meu chapa – diz Grandet.

Reencontro uma porcao de amigos. Muitos corsos e marselheses, alguns parisienses, todos amigos da Franca ou sujeitos encontrados na Sante, na Conciergerie ou no comboio. Mas, espantado por encontra-los aqui, pergunto:

– Voces nao estao trabalhando numa hora dessas?

Ai e uma gargalhada geral.

– Ah! essa e boa! Neste predio, quem trabalha nao trabalha mais de uma hora por dia. Depois, a gente volta logo para ca.

Esta recepcao e realmente calorosa. E de se desejar que continue assim. Mas logo entendo alguma coisa que nao tinha previsto: apesar dos dias passados no hospital, preciso aprender de novo a viver numa comunidade.

Vejo algo que eu nunca teria imaginado. Um sujeito entra, vestido de branco, com uma bandeja encoberta por um pano branco limpissimo e grita:

– Bife, bife, quem quer bife?

Pouco a pouco vem se aproximando da gente, para, levanta o pano branco e aparece, como num acougue da Franca, uma bandeja cheia de bifes cuidadosamente empilhados. Percebo que Grandet e fregues constante, pois o rapaz nem pergunta se ele quer bifes, pergunta apenas quantos quer que deixe.

– Cinco.

– Contrafile ou alcatra?

– Contrafile. Quanto e? Me de as contas, porque agora temos um a mais, entao vai mudar.

O comerciante de bifes puxa uma caderneta e comeca a calcular:

– Da 135 francos, tudo incluido.

– Cobre e agora recomecamos de zero.

Depois de o homem ter ido embora, Grandet me diz:

– Aqui, sem tutu voce se arrebenta. Mas tem um sistema para ter sempre tutu: a viracao.

Para os duros, a viracao e o modo de cada um se virar para conseguir dinheiro. O cozinheiro do campo vende bifes feitos com a propria carne destinada aos prisioneiros. Quando ele recebe a carne na cozinha tira mais ou menos a metade. Conforme os pedacos, prepara bifes, carne para ensopado ou para cozinhar. Uma parte e vendida aos guardas, atraves das esposas, a outra aos forcados que tem meios para comprar. Claro que o cozinheiro da uma parte do que ganha ao guarda encarregado da cozinha. O primeiro predio onde se apresenta com a mercadoria e sempre o do grupo especial, bloco A: o nosso.

Entao, a viracao e o cozinheiro que vende a carne e a gordura; o padeiro que vende pao fino ou pao de metro bem branco, destinado aos guardas; o acougueiro que, por sua vez, vende carne; o enfermeiro que vende injecoes; o contador que recebe dinheiro para fazer com que a gente seja designado para tal ou tal cargo, ou entao simplesmente para nos dispensar de uma tarefa; o jardineiro que vende hortalicas frescas e frutas; o forcado empregado no laboratorio que vende resultados de analises e chega ate a inventar tuberculosos, leprosos, enterites, etc; os especialistas do roubo no patio das casas dos guardas, que vendem ovos, frangos; os mocos de servicos que negociam com a dona da casa onde trabalham, e que trazem o que a gente pedir: manteiga, leite condensado, leite em po, latas de atum ou de sardinha, queijos e, naturalmente, vinhos e bebidas alcoolicas (tanto assim, que na minha patota tem sempre uma garrafa de Ricard e cigarros ingleses ou americanos); aqueles tambem que tem o direito de pescar e vendem o peixe ou as lagostas.

Mas a melhor viracao, a mais perigosa tambem, e ser controlador de jogo. A regra e que nao pode nunca haver mais de tres ou quatro controladores de jogo por predio de 120 homens. Aquele que quiser cuidar dos jogos se apresenta de noite e diz: “Quero um lugar como controlador do jogo”. Alguem responde: “Nao”.

– Todos dizem nao?

– Todos.

– Entao escolho fulano para tomar o lugar.

Aquele que foi designado entendeu. Levanta-se, vai ate o centro da sala e os dois fazem um duelo de faca. Aquele que ganha fica com o lugar. Os controladores cobram 5 por cento em cada lance vitorioso.

Os jogos servem tambem para outras pequenas viracoes. Ha aquele que prepara os cobertores bem esticados no chao, aquele que aluga bancos pequeninos para os jogadores que nao podem sentar com as pernas cruzadas debaixo do traseiro, o vendedor de cigarros. Este coloca em cima do cobertor varias caixas de charutos vazias, nas quais ele poe cigarros franceses, ingleses, americanos e ate feitos a mao. Cada um tem um preco, o jogador se serve ele mesmo e coloca cautelosamente na caixa o dinheiro correspondente ao preco marcado. Ha tambem aquele que prepara os lampioes de querosene e toma cuidado para que eles nao facam fumaca demais. Sao lampioes feitos com latas de leite cuja tampa foi furada para deixar passar um pavio que mergulha no querosene e que deve ser aparado com frequencia. Para os que nao fumam, ha bombons e bolos feitos com viracao especial. Cada predio tem um ou dois cafeteiros. O cafe feito a moda arabe e mantido quente a noite inteira, com dois sacos de estopa que o cobrem. De vez em quando, o cafeteiro passa pela sala e oferece cafe ou chocolate quente numa especie de bule noruegues de fabricacao caseira.

Finalmente, ha as bugigangas. E uma especie de viracao artesanal. Alguns trabalham com a casca das tartarugas capturadas pelos pescadores. Uma tartaruga de escama possui treze chapas, cada uma com ate 2 quilos. Com isso, o artista faz pulseiras, brincos, colares, piteiras, pentes e ornamentos para escovas. Cheguei a ver uma caixinha de escama clara, verdadeira maravilha. Outros trabalham com cocos, chifres de boi, de bufalo, ebano ou outras madeiras das ilhas. Alguns fazem trabalhos de marcenaria de alta precisao, sem um prego, tudo com uma chanfradura. Os mais habeis trabalham com bronze. Sem esquecer os pintores.

Pode acontecer que varios destes talentos se juntem para realizar um so objeto. Por exemplo, um pescador pega um tubarao. Ele ajeita as mandibulas de modo a que fiquem abertas, com os dentes bem polidos e bem retos. Um marceneiro faz o modelo reduzido de uma ancora, de madeira bem lisa e de grao fechado, suficientemente larga para que se possa fazer alguma pintura no centro. As mandibulas sao fixadas nesta ancora, em que um pintor pinta as Ilhas da Salvacao cercadas pelo mar. O tema mais frequentemente usado e o seguinte: se ve a ponta da Ilha Royale, o canal e a Ilha Saint-Joseph. No mar azul, o sol declinando lanca raios fulgurantes. Na agua, um barco com seis forcados em pe, peito nu, os remos verticais, e tres guardas atras, de metralhadoras na mao. Na frente, dois homens erguem um caixao donde escorrega, embrulhado num saco de farinha, o corpo de um forcado morto. Tubaroes aparecem na superficie da agua, esperando o corpo com a goela aberta. Embaixo, a direita do quadro, esta escrito: “Enterro em Royale” com a data.

Estes trabalhos de artesanato sao vendidos nas casas dos guardas. As pecas mais belas sao frequentemente compradas com antecipacao ou feitas a pedido. O resto e vendido a bordo dos navios que passam pelas ilhas. E o dominio dos remadores. Ha tambem os brincalhoes que pegam uma velha caneca esburacada e gravam nela: “Esta caneca pertenceu a Dreyfus – Ilha do Diabo – data”. A mesma coisa com as Colheres e as tigelas. Para os marinheiros bretoes, ha um truque que funciona na certa: qualquer coisa com o nome de “Sezenec”.

Esse negocio permanente traz muito dinheiro para as ilhas e os guardas tem interesse em tolera-lo. Entregues aos seus afazeres, os homens sao mais faceis de manejar e se acostumam a nova vida.

A pederastia toma um carater oficial. Todo mundo (inclusive o comandante) sabe que fulano e a mulher de sicrano e, quando um deles e mandado para outra ilha, providencia-se para que o outro siga logo, se e que ja nao foram transferidos juntos.

Entre todos estes homens, nao chegam a trezentos os que pensam em fugir. Ate entre os que tem condenacao a prisao perpetua. O unico esforco e no sentido de tentar, por todos os meios, ser desinternado e mandado para o continente, para Saint-Laurent, Kourou ou Caiena. O que so interessa aos internados temporarios. Para os condenados a prisao perpetua, nao ha saida fora do assassinato. De fato, quando se mata alguem, eles mandam a gente a Saint-Laurent para ser julgado pelo tribunal. Mas com esse recurso para ir para la – e necessario esclarecer -, a gente se arrisca a pegar cinco anos de reclusao disciplinar por assassinato, sem saber se se podera aproveitar a breve permanencia no quartel de Saint-Laurent (tres meses no maximo) para fugir.

Pode-se tentar tambem o desinternamento por motivos de saude. Quem e declarado tuberculoso e mandado ao campo para tuberculosos, chamado Novo Campo, a 80 quilometros de Saint-Laurent.

Existem tambem a lepra e a enterite cronica. E relativamente facil chegar a este resultado, mas o risco e muito grande: a coabitacao num pavilhao especial, isolado, durante quase dois anos, com os doentes do tipo escolhido. De querer ser falso leproso a pegar a lepra, de ter pulmoes fortes pra burro e sair tuberculoso, vai so um pequeno passo, que se da com frequencia. Quanto a disenteria, e ainda mais dificil escapar ao contagio.

Aqui estou eu, instalado no bloco A, com os meus 120 colegas. E necessario aprender a viver nesta comunidade na qual a gente e rapidamente classificado. E necessario primeiro que todo mundo saiba que e perigoso atacar voce. Uma vez temido, tem que se fazer respeitar pela maneira como se comporta em relacao aos guardas, nao aceitar determinados cargos, recusar certas tarefas, nunca reconhecer a autoridade dos serventes, nunca obedecer com humildade, mesmo correndo o risco de ter um incidente com o guarda. Depois de ter jogado a noite inteira, nao se deve atender a chamada. O guarda da choca (este bloco e chamado “a choca”) grita:

– Doente, deitado.

Nas duas outras chocas, os guardas vao as vezes procurar o doente e o obrigam a assistir a chamada. Nunca no bloco dos violentos. Conclusao: o que eles procuram antes de mais nada, do maior ao menor, e a tranquilidade da prisao.

Meu amigo Grandet, com quem estou associado e reparto as coisas, e um marselhes de 35 anos. Muito alto, magro como um prego, mas muito forte. Somos amigos desde a Franca. A gente se dava em Toulon, bem como em Marselha e Paris.

E um celebre perfurador de cofres-fortes. E bom, mas pode ser muito perigoso. Hoje estou quase sozinho nesta imensa sala. O chefe da choca varre e passa um pano no chao de cimento. Estou vendo um homem consertando um relogio, com um troco de madeira no olho esquerdo. Em cima da sua rede, uma tabua onde estao dependurados uns trinta relogios. Este rapaz tem os tracos de um homem de trinta anos e cabelos inteiramente brancos. Aproximo-me dele e o observo trabalhar, depois tento bater um papo. Nem levanta a cabeca e permanece mudo. Afasto-me um pouco, ofendido, saio para o patio e me sento perto do tanque. Encontro Titi la Belote, que esta treinando com um baralho completamente novo. Seus dedos ageis baralham constantemente as 52 cartas com uma rapidez incrivel. Sem interromper o jogo de suas maos de prestidigitador. diz:

– Entao, velho, tudo bem? Esta se dando bem em Royale?

– Sim, mas hoje estou na fossa. Preciso trabalhar um pouco; resolvi sair um pouco da choca. Quis bater um papo com o sujeito que esta dando uma de relojoeiro, ele nem abriu a boca.

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