“Nao se incomode, Papi, este sujeito nao liga para ninguem. Para ele, so existem os relogios. Para o resto, bolas! E verdade que, depois do que aconteceu para ele, tem o direito de ser gira. Ate por menos. Imagine que este rapaz – pode-se dizer que ele e um rapaz, nao tem ainda trinta anos – era condenado a morte, no ano passado, porque ele teria estuprado a mulher de um guarda. Lorota! Fazia tempo que ele trepava com a dona, a esposa de um guarda-chefe bretao. Como ele trabalhava na casa deles como moco de servicos, cada vez que o bretao tinha plantao de dia, o relojoeiro comia a garota. So que eles cometeram um erro: a dona nem o deixava mais lavar e passar a roupa. Era ela mesma que fazia tudo, e o cornudo do marido achou estranho, comecou a desconfiar, porque sabia que ela era preguicosa. Mas nao tinha prova de seu infortunio. Entao bolou alguma coisa para pegar os dois em flagrante e mata-los. Ele nao contava com a reacao da dona. Um dia, ele deixa o plantao duas horas depois de ter comecado e pede a um guarda para acompanha-lo ate em casa, alegando que queria lhe dar um presunto que tinha recebido de sua terra. Sem barulho, passa pelo portao; mas, assim que abre a porta da casinha, um papagaio se poe a berrar: ‘Chegou o patrao!’, como costumava fazer toda vez que o cara voltava para casa. Logo a mulher se poe a gritar: ‘Socorro! E uma curra!’ Os dois guardas entram no quarto na hora em que a mulher escapa dos bracos do forcado que, surpreendido, pula pela janela, enquanto o cornudo atira nele. Levou um tiro no ombro; a dona, por sua vez, arranhou ela mesma os peitos e a face e rasgou o chambre. O relojoeiro caiu, ferido, e, na hora em que o bretao ia acabar com ele, o outro guarda lhe tirou a arma. E verdade que o outro era um corso e entendeu logo que o chefe lhe tinha contado uma lorota, estupro ali era chifre em cabeca de cavalo. Mas o corso nao podia falar com o bretao e fingiu que acreditava no estupro. O relojoeiro foi condenado a morte. Ate ai, meu velho, nada de extraordinario. E depois que o caso se torna interessante.
“Em Royale, no quartel dos punidos, tem uma guilhotina, cada peca bem guardada num lugar especial. No patio, tem cinco lajes para ergue-la, bem cimentadas e niveladas. Toda semana, o carrasco e seus assistentes, dois forcados, montam a guilhotina com a faca e o troco todo e cortam um ou dois troncos de bananeira. Assim, ficam certos de que esta sempre em bom estado.
“O relojoeiro saboiano estava numa cela de condenado a morte com quatro outros, tres arabes e um siciliano. Eles esperavam resposta ao pedido de indulto, feito por guardas que os defenderam.
“Numa manha, eles montam a guilhotina e abrem bruscamente a porta do relojoeiro. Os carrascos se jogam sobre ele, lhe amarram os pes com uma corda, ligam os pulsos com a mesma corda dos pes. Com tesouras, aparam o colarinho e ele, em passos estreitos, na semi-obscuridade da alvorada, percorre uns 20 metros. Voce sabe, Papillon, que, quando se chega diante da guilhotina, a gente se encontra frente a frente com uma tabua em pe na qual eles amarram o sujeito com correias presas na tabua. Amarram o cara, comecam a deitar a tabua, a cabeca de fora, quando chega o atual comandante, o ‘Coco Seco’, que tem que assistir obrigatoriamente a execucao. Leva na mao um enorme lampiao de querosene e, na hora em que ele ilumina a cena, percebe que os putos dos guardas se enganaram: eles iam cortar a cabeca do relojoeiro, que, naquele dia, nao tinha nada a ver com a cerimonia.
“- Parem, parem! – grita Barrot.
“Fica tao perturbado, que parece ate que nao consegue mais falar. Deixa cair o lampiao, empurra todo mundo, os guardas, os carrascos, e ele mesmo desamarra o relojoeiro saboiano. Finalmente consegue dar uma ordem:
“- Leve-o de volta para a cela, enfermeiro. Trate dele, fique com ele, de-lhe rum. E voces, cretinos, vao buscar rapido Rencasseu, e ele que executamos hoje!
“No dia seguinte, o saboiano estava com os cabelos inteiramente brancos, tal como voce o viu hoje. Seu advogado, um guarda de Calvi, fez um novo pedido de indulto ao ministro da Justica, contando-lhe o incidente. A pena do relojoeiro foi comutada e transformada em prisao perpetua. Desde entao, ele passa o tempo todo consertando os relogios dos guardas. E a sua paixao. Ele controla os relogios durante muito tempo; e por isso que tem tantos dependurados no seu painel de observacao. Agora da para entender que o sujeito tem o direito de estar um pouco doido, sim ou nao?”
– Nao tem nem duvida; depois de um choque desses, ele tem o direito de nao ser muito amavel. Sinceramente, tenho do dele.
A cada dia, aprendo um pouco mais sobre esta nova vida. A choca A e realmente uma concentracao de homens terriveis, tanto por causa do passado deles como pela maneira de eles reagirem na vida cotidiana. Nao trabalho ainda: espero um lugar de limpador de latrinas. E um posto que, depois de 45 minutos de trabalho, me deixara livre sobre a ilha, com direito de ir pescar.
Hoje de manha, na chamada para a tarefa de plantacao de coqueiros, designam Jean Castelli. Ele sai da fileira e pergunta:
– O que e isso? Estao me mandando para o trabalho, eu?
– Sim, voce – responde o guarda encarregado da tarefa. – Vai, pega essa picareta!
Friamente, Castelli olha para ele:
– Olhe um pouco pra mim, meu chapa. Voce e um caipira de Auvergne. Nao esta vendo que e preciso ter nascido numa aldeola como a tua para saber usar um instrumento desses? Eu sou corso e marselhes. Na Corsega, a gente joga para muito longe os instrumentos de trabalho, e em Marselha a gente nem sabe que eles existem. Fique voce com a picareta e me deixe em paz.
O jovem guarda, que ainda nao estava a par da situacao, pelo que vim a saber mais tarde, levanta a picareta contra Castelli, cabo para cima. Numa voz so, os 120 homens urram:
– Carniceiro, nao toque nele ou voce esta morto.
– Dispersem! – grita Grandet e, sem levar em conta as posicoes de ataque tomadas por todos os guardas, voltamos todos para a choca.
A choca B desfila, indo para o trabalho. A choca C tambem. Doze guardas vem chegando e, coisa rara, fecham a porta gradeada. Uma hora mais tarde; quarenta guardas estao de cada lado da porta, de metralhadora na mao. Comandante adjunto, vigia-chefe, guarda-chefe, guardas, todos estao aqui, com excecao do comandante, que saiu as 6 da manha, antes do incidente, para inspecionar a Ilha do Diabo:
O comandante adjunto diz:
– Dacelli, chame os homens, um por um.
– Grandet?
– Presente.
– Saia.
Ele sai, no meio dos quarenta guardas. Dacelli diz para ele:
– Vai trabalhar.
– Nao posso.
– Recusa?
– Nao, nao recuso, estou doente.
– Desde quando? Voce nao se declarou doente na primeira chamada.
– Hoje de manha, eu nao estava doente, mas agora estou.
Os sessenta primeiros chamados respondem exatamente a mesma coisa, um depois do outro. Apenas um vai ate a franca recusa de obediencia. Ele tinha provavelmente a intencao de ser mandado a Saint-Laurent, passar pelo conselho de guerra. Quando lhe dizem:
– Recusa?
Ele responde:
– Sim, recuso, tres vezes.
– Tres vezes? Por que?
– Porque voces me enchem o saco. Recuso categoricamente trabalhar para sujeitos tao fodidos como voces.
A situacao era muito tensa. Os guardas, principalmente os jovens, nao aguentavam ser humilhados assim pelos presos. So esperavam uma coisa: um gesto de ameaca que lhes permitiria entrar em acao com suas metralhadoras, alias dirigidas para o chao.
– Todos aqueles que foram chamados, pelados! Em marcha para as celas!
A medida que as roupas iam caindo, ouvia-se as vezes o ruido de uma faca que batia sobre o asfalto do patio. Ai chega o medico.
– Bom, esperem. O medico esta chegando. Podia, doutor, examinar estes homens? Aqueles que nao forem reconhecidos como doentes irao para as celas. Os outros ficarao na choca.
– Ha sessenta doentes?
– Sim, doutor, com excecao deste, que se recusou a trabalhar.
– O primeiro – diz o medico. – Grandet, o que e que voce tem?
– Uma indigestao de carcereiro, doutor. Somos todos homens condenados a longas penas, e a maioria a prisao perpetua, doutor. Nas ilhas nao ha esperanca de fuga. Por isso, o pessoal so aguenta esta vida se houver uma certa elasticidade e compreensao no regulamento. Mas, hoje de manha, um guarda tomou a liberdade, na frente da gente, de querer bater com um cabo de picareta num colega estimado por todos. Nao era um gesto de defesa, ja que este homem nao tinha ameacado ninguem. Ele disse que nao queria usar uma picareta, nada mais. Essa e a razao da nossa epidemia coletiva, Agora, o senhor que julgue.
O medico abaixa a cabeca, fica pensando por mais de um minuto e diz:
– Enfermeiro, escreva: “Em virtude de uma intoxicacao alimentar coletiva, o guarda-enfermeiro fulano tomara as providencias necessarias para purgar com vinte gramas de sulfato de sodio todos os transportados que se declararam doentes neste dia. Quanto ao prisioneiro X, que ele seja posto sob observacao no hospital, para que se verifique se a sua recusa de trabalho foi feita em posse de todas as suas faculdades mentais”.
Ele da a volta e vai embora.
– Todos para dentro! – grita o segundo-comandante. – Peguem as suas coisas e nao esquecam as facas.
Neste dia, todos ficam na choca. Ninguem pode sair, nem o portador de pao. Pelo meio-dia, no lugar da sopa, o guarda-enfermeiro, acompanhado por dois forcados-enfermeiros, chegou com um balde de madeira, cheio de purgativo de sulfato de sodio. Tres apenas tiveram que engolir o purgante. O quarto caiu em cima do balde, fingindo uma crise de epilepsia perfeitamente imitada, jogando assim o purgante, o balde e a concha para todos os lados. Assim se encerrou o episodio, com o trabalho que teve o chefe da choca para enxugar o liquido derramado no chao.
Passei a tarde conversando com Jean Castelli. Ele veio comer com a gente. Ele vive associado a um sujeito de Toulon, Louis Gravon, condenado por roubo de peles. Quando lhe falei da fuga, seus olhos brilharam. Disse:
– No ano passado, quase fugi, mas a coisa gorou. Tinha certeza de que voce nao era daqueles que ficam quietos aqui. So que falar em fuga nas ilhas e o mesmo que falar hebreu. Por outro lado, acho que voce nao entendeu ainda os forcados das ilhas. Tais como voce os esta vendo, 90 por cento se acham relativamente felizes. Se o cara mata alguem, nunca tem uma testemunha; se rouba, a mesma coisa. Qualquer coisa que um sujeito faca, todos se solidarizam para defende-lo. Os forcados das ilhas tem medo de uma unica coisa: que uma fuga de certo. Porque, ai, sua relativa tranquilidade fica abalada: investigacoes constantes, nada de baralho, nada de musica – os instrumentos sao quebrados nas investigacoes -, nada de jogo de xadrez e de damas, nada de livros, quer dizer, mais nada! Nada de artesanato, tambem.