Tudo, absolutamente tudo e suprimido. Revistam sem parar. Acucar, oleo, bife, manteiga, tudo isso desaparece. Os que conseguiram fugir das ilhas sempre foram presos no continente, perto de Kourou. Mas, para as ilhas, a fuga deu certo: os sujeitos puderam sair da ilha onde estavam. De modo que vem sancoes contra os guardas, que se vingam em cima de todo mundo.
Estou ouvindo com a maxima atencao. Nem estou acreditando. Nunca eu tinha pensado no assunto por esse lado.
– Conclusao – diz Castelli -, no dia em que voce quiser preparar uma fuga, tome todas as precaucoes. Antes de conversar com qualquer cara, se nao for um amigo intimo, pense dez vezes.
Jean Castelli, assaltante profissional, e de uma vontade e de urna inteligencia fora do comum. Ele detesta a violencia. A alcunha dele e “O Antigo”. Por exemplo, ele so se lava com sabao e, se eu me lavei com Palmolive, ele me diz:
– Mas que cheiro de viado, seu! Voce se lavou com sabao de mulher!
Infelizmente, ele ja tem 52 anos, mas da prazer ver sua energia de ferro. Ele me diz:
– Voce, Papillon, parece que e meu filho. A vida das ilhas nao lhe interessa. Voce come bem porque e necessario se manter em boa forma, mas nunca vai se acostumar a viver nas ilhas. Parabens. Entre todos os forcados, somos apenas uma meia duzia os que pensam assim. Ha, e verdade, uma quantidade de homens que pagam fortunas para serem desinternados e poder ir para o continente, pensando em fugir. Mas, aqui, ninguem acredita na fuga.
O velho Castelli me da conselhos: aprender ingles e, sempre que puder, falar castelhano com um cara que fale essa lingua. Ele me emprestou um livro para aprender o castelhano em 24 licoes. Um dicionario frances-ingles. Ele e amigo de um marselhes, Gardes, que entende de tudo a respeito de fugas. Ja fugiu duas vezes. A primeira, de uma prisao especial portuguesa; a segunda, da Terra Grande. Ele tem sua opiniao a respeito da fuga das ilhas; Jean Castelli, tambem. Gravon, o cara de Toulon, ve tambem as coisas ao modo dele. Nenhuma dessas opinioes estao de acordo. A partir de agora, tomo a decisao de estudar a situacao por mim mesmo e de nao falar mais em fuga.
E duro, mas e assim. O unico ponto sobre o qual eles concordam e que o jogo so interessa para ganhar dinheiro e que ele e muito perigoso. A qualquer momento, a gente pode ter que entrar numa rixa de faca com o primeiro valentao que encontrar na esquina. Os tres sao homens de acao e sao realmente formidaveis, para a idade que tem: Louis Gravon esta com 45 anos e Gardes com quase cinquenta.
Ontem a noite, tive a oportunidade de mostrar a quase toda a nossa sala a minha maneira de ver as coisas e de agir. Um nanico de Toulouse e desafiado a faca por um cara de Nimes. O sujeito pequeno de Toulouse e alcunhado Sardinha e o corpulento de Nimes, Carneiro. Carneiro esta no meio da passagem, de faca na mao:
– Ou voce me paga 25 francos por partida de poquer ou voce nao joga.
Sardinha responde:
– Nunca se pagou a ninguem para jogar poquer. Por que e que voce vem contra mim e nao vai contra os controladores de jogo a marselhesa?
– Nao tem que saber por que. Ou voce paga, ou voce nao joga. Ou entao briga.
– Nao, nao vou brigar.
– Esta com medo?
– Estou. Por que vou me arriscar a levar uma facada ou ate morrer por causa de um valentao da sua especie, que nunca tentou fugir? Eu sou um homem de fuga, e nao estou aqui para matar nem para me deixar matar.
Todos estamos na expectativa do que vai acontecer. Grandet me diz:
– E verdade que e corajoso, o pequeno, e e um homem de fuga. Pena que nao se possa dizer nada.
Abro minha faca e boto debaixo da perna. Estou sentado na rede de Grandet.
– Entao, medroso, voce vai pagar ou parar de jogar? Responda!
Ele da um passo na direcao do Sardinha. Ai eu grito:
– Feche a matraca, Carneiro, e deixe esse sujeito em paz!
– Voce esta louco, Papillon? – me diz Grandet.
Sem me mexer, sempre sentado com a faca aberta debaixo da perna, a mao no cabo, digo:
– Nao, nao estou louco e prestem todos atencao ao que eu vou dizer. Carneiro, antes de lutar com voce, o que vou fazer se voce exigir, mesmo depois de eu ter falado, deixe que eu diga a voce e a todos que, desde que eu cheguei a esta choca, onde somos mais de cem, todos da zona, eu me dei conta com vergonha de que a coisa mais bela, mais honrada, a unica verdadeira – a fuga – nao e respeitada. Qualquer homem que mostrou que e um homem de fuga, que ele tem peito para jogar a sua vida numa fuga, deve ser respeitado por todos acima de qualquer outra coisa. Quem e que diz o contrario? (Silencio.) Em todas as leis de voces, falta uma, fundamental: obrigacao para todo mundo, nao so de respeitar, mas tambem de ajudar, de amparar os homens de fuga. Ninguem esta obrigado a ir embora e aceito que quase todos voces tenham decidido ajeitar a sua vida aqui. Mas, se voces nao tiverem a coragem de tentar viver novamente, respeitem pelo menos os que o merecem, os homens de fuga. E, aquele que esquecer esta lei de homem, que espere graves consequencias. Agora, Carneiro, se voce ainda quiser brigar, vamos!
E pulo no meio da sala, de faca na mao. Carneiro joga a sua faca para o lado e diz:
– Voce esta certo, Papillon, por isso nao quero brigar de faca com voce, mas vamos sair na mao, para voce saber que nao sou um covarde.
Deixo minha faca com Grandet. Brigamos durante quase vinte minutos. No fim, com uma cabecada bem acertada,
– E verdade que o pessoal se embrutece nestas ilhas. Faz quinze anos que estou aqui e nao cheguei a gastar 1 000 francos para tentar ser desinternado. E uma vergonha.
Quando volto para junto dos amigos, Grandet e Galgani me xingam.
– E uma loucura provocar e insultar todo o pessoal, como voce fez! Nao sei por que cargas d’agua ninguem pulou na passagem para pegar na faca contra voce.
– Nao, meus amigos, nao e de espantar. Qualquer homem do nosso meio, quando ve que alguem esta realmente certo, concorda com ele.
– Bom – diz Galgani. – Mas, sabe, e melhor nao brincar demais com este vulcao.
A noite toda, homens vieram falar comigo. Aproximam-se de mim como por acaso, falam de qualquer coisa e antes de se retirar dizem:
– Estou de acordo com o que voce disse, Papi.
Este incidente fortaleceu a minha situacao junto aos homens.
A partir de entao, os meus colegas me consideram provavelmente como um homem do meio deles, mas me veem como uma pessoa que nao se dobra diante das coisas sem analisa-las e discuti-las. Me dou conta de que, quando sou eu o controlador dos jogos, ha menos brigas. E percebo que, quando dou uma ordem, obedecem logo.
O controlador do jogo, como ja disse, retira 5 por cento em cada lance vitorioso. Fica sentado num banco, encostado na parede, para se proteger contra um assassino sempre possivel. Um cobertor nos joelhos esconde uma faca aberta. Em volta dele, em circulo, trinta, quarenta e as vezes ate cinquenta jogadores de todas as regioes da Franca, muitos estrangeiros, inclusive arabes. O jogo e muito facil: ha o banqueiro e o cortador. Toda vez que o banqueiro perde, ele passa as cartas para o vizinho. Joga-se com 52 cartas. O cortador divide o maco e guarda uma carta escondida. O banqueiro tira uma carta e descobre. Ai fazem as apostas. Joga-se tanto para o corte, como para a banca. Quando as apostas sao depositadas em montinhos, comeca-se a tirar as cartas uma por uma. A carta que tem o mesmo valor que uma das duas em cima da mesa perde. Por exemplo, o cortador escondeu uma dama e o banqueiro tira um cinco. Se sair uma dama antes de um ‘5, o corte perde. Se for o contrario e sair um 5, e a banca que perde. O controlador do jogo deve conhecer a importancia de cada aposta e lembrar-se de quem e cortador ou banqueiro, para saber para quem vai o dinheiro. Nada facil. ? necessario defender os fracos contra os fortes, que estao sempre tentando abusar do prestigio. Quando o controlador de jogos toma uma decisao a respeito de um caso duvidoso, essa decisao tem que ser aceita sem piscar.
Durante a noite mataram um italiano chamado Carlino. Vivia com um rapaz que lhe servia de mulher. Os dois trabalhavam num jardim. Ele devia saber que sua vida estava em perigo, ja que, quando dormia, o rapaz ficava de vigia, e vice-versa. Debaixo da rede, eles tinham colocado latas vazias, para que ninguem pudesse se aproximar deles sem fazer barulho. E assim mesmo foi assassinado. Ao seu grito seguiu-se imediatamente um barulhao horrivel de latas vazias chutadas pelo assassino.
Grandet dirigia uma partida de marselhesa, com mais de trinta jogadores em volta dele. Eu estava batendo papo perto do jogo. O grito e o barulho das latas vazias interromperam o jogo. Todos se levantam e perguntam o que foi que aconteceu. O jovem amigo de Carlino nao viu nada e Carlino deixou de respirar. O chefe da choca pergunta se deve chamar os guardas. Nao. Da para avisa-los amanha na chamada; ja que esta morto, nao ha mais nada a fazer por ele. Grandet fala:
– Ninguem viu nada. Voce tambem nao, menino – diz ao colega de Carlino. – Amanha, quando acordar, voce se dara conta de que ele esta morto.
E pronto! Vamos, o jogo continua. Os jogadores, como se nada tivesse acontecido, recomecam a grita: “Cortador! nao, banqueiro!”, etc.
Aguardo com impaciencia para saber o que acontece quando os guardas descobrem um assassinato. As 5 e meia, primeiro toque de sino. As 6 horas, segundo toque e cafe. As 6 e meia, terceiro toque e saimos para a chamada, como todo dia. Mas hoje e diferente. No segundo toque, o chefe da choca diz ao guarda que acompanha o distribuidor de cafe:
– Chefe, mataram um homem.
– Quem e?
– Carlino.
– Esta bem.
Dez minutos mais tarde, chegam seis guardas:
– Onde esta o morto?
– Ai.
Eles notam o punhal fincado nas costas de Carlino atraves da lona. A arma e removida.
– A maca. Podem levar ele.
Dois homens o levam numa maca. O dia desponta. O terceiro sino toca. Sempre com a faca ensanguentada na mao, o guarda-chefe manda:
– Todo mundo fora, em fila, para a chamada. Hoje nao aceitamos doentes deitados.
Todo o pessoal sai. Na chamada da manha, os comandantes e os guardas-chefes estao sempre presentes. Fazem a chamada. Chegando a Carlino, o chefe da choca responde: