– Morto durante a noite, foi levado para o necroterio.
– Esta bem – diz o guarda que faz a chamada.
Depois de todo mundo ter respondido presente, o chefe do campo levanta a faca para cima e pergunta:
– Alguem conhece esta faca?
Ninguem responde.
– Alguem viu o assassino?
Silencio absoluto.
– Entao, ninguem sabe de nada, como de costume. Passem na minha frente, com as maos estendidas, e depois cada um vai para o trabalho. E sempre a mesma coisa, meu comandante, nao da para saber quem fez o negocio.
– Assunto arquivado – diz o comandante. – Guarde a faca, prenda nela uma ficha indicando que foi usada para matar Carlino.
E so. Entro na choca e deito para dormir, pois nao preguei o olho a noite toda. Quase adormecendo, penso que um forcado nao e grande coisa. Mesmo se foi assassinado covardemente, ninguem quer se chatear para saber. Para a administracao um forcado nao e absolutamente nada. Menos que um cachorro.
Decidi comecar segunda-feira meu trabalho de limpador de latrinas. As 4 e meia da madrugada, vou sair com um colega para esvaziar as latrinas do bloco A, as nossas. O regulamento exige que, para esvazia-las, sejam levadas ate o mar. Mas, pagando um condutor de bufalos, ele nos espera num lugar do planalto, de onde um estreito canal cimentado desce ate o mar. Entao, rapidamente, em menos de vinte minutos, a gente esvazia todas as tinas neste canal e, para empurrar a materia, joga-se 3 000 litros de agua do mar, trazidos num enorme barril. O transporte da agua custa 20 francos por dia, pagos ao condutor de bufalos, um preto das Antilhas simpatico. A descida da materia e ajudada com uma vassoura muito dura. Por ser meu primeiro dia de trabalho, carregar as tinas com duas barras de madeira me cansou os pulsos. Mas vou me acostumar rapidamente.
Meu novo colega e muito prestativo, mas Galgani me informou que e um homem extremamente perigoso. Teria cometido, parece, sete assassinatos nas ilhas. A viracao dele e vender merda. De fato, cada jardineiro tem que fazer seu estrume. Para isso, ele cava uma fossa, bota dentro folhas secas e capim e o meu amigo das Antilhas leva clandestinamente uma ou duas tinas ao jardim indicado. Claro que isso nao pode ser feito por uma pessoa so, e tenho que ajuda-lo. Mas sei que e uma falta grave, pois pode haver contaminacao das verduras e difundir a disenteria tanto entre os guardas como entre os presos. Resolvo que um dia, quando conhece-lo melhor, vou impedi-lo de fazer isso. Evidentemente, vou pagar-lhe o que ele perder por interromper seu comercio. Alem disso, ele trabalha chifres de boi. No que diz respeito a pesca, ele me diz que nao pode fazer nada, mas que, no cais, Chapar ou algum outro podem me ajudar.
Pronto, virei limpador de latrinas. Acabado o servico, tomo um bom banho, boto um calcao e vou todo dia pescar em liberdade onde bem entendo. So tenho uma obrigacao: estar ao meio-dia no campo. Gracas a Chapar, nao me faltam nem varas nem iscas. Quando volto com peixes enfiados pelas branquias num arame, e raro que, das casinhas, as esposas dos guardas nao me chamem. Todas sabem o meu nome:
– Papillon, me vende 2 quilos.
– Esta doente?
– Nao.
– Esta com uma crianca doente?
– Nao.
– Entao nao vendo meu peixe.
Consigo pegar grandes quantidades de peixe que dou aos amigos do campo. Troco por pao de metro, verduras ou frutas. Meus amigos comem peixe pelo menos uma vez por dia. Um dia; estou de volta com uma duzia de grandes lagostas e 7 ou 8 quilos de peixe, passo em frente da casa do comandante Barrot. Uma mulher bastante gorda me diz:
– Voce teve sorte na pesca, Papillon. O mar esta ruim e ninguem consegue pegar nada. Ja faz quinze dias que nao como peixe. E pena que voce nao venda. Meu marido me disse que voce se recusa a vender as esposas dos guardas.
– E verdade, senhora. Mas com a senhora pode ser diferente.
– Por que?
– Porque esta gorda e e possivel que carne seja ruim para a senhora.
– E verdade, me disseram que so devia comer verduras e peixe cozido. Mas aqui nao e possivel.
– Pronto, senhora, tome estas lagostas e estes peixes.
E dou para ela mais ou menos 2 quilos de peixe.
A partir desse dia, toda vez que fazia uma pesca grossa, dava para ela o necessario para fazer um bom regime. Ela, que sabe que tudo se vende nas ilhas, nunca me disse nada a nao ser “obrigada”. Teve razao, pois adivinhou que, se me oferecesse dinheiro, eu levaria a mal. Mas frequentemente ela me convida para entrar na casa dela. Oferece-me um licor ou um copo de vinho branco. Quando recebe “figatelli” da Corsega, ela me da. Nunca a senhora Barrot fez perguntas sobre o meu passado. Apenas uma frase, um dia, lhe escapou, a respeito dos trabalhos forcados:
– E verdade que nao da para fugir das ilhas, mas e melhor estar aqui, num clima sadio, do que apodrecer como um bicho na prisao da Terra Grande.
Foi ela quem me explicou a origem do nome das ilhas: numa epidemia de febre amarela em Caiena, alguns padres e as freiras de um convento se refugiaram nas ilhas e todos se salvaram. Dai veio o nome de Ilhas da Salvacao.
Gracas a pesca, vou para qualquer lugar. Ja faz tres meses que sou limpador de latrinas e conheco a ilha melhor do que ninguem. Vou observar os jardins, a pretexto de oferecer meu peixe em troca de verduras e frutas. O jardineiro de um jardim localizado perto do cemiterio dos guardas e Matthieu Carbonieri, que faz parte da minha patota. Ele trabalha sozinho e pensei que, mais tarde, a gente poderia enterrar ou preparar uma jangada no jardim dele. Mais dois meses e o comandante ira embora. Ai vou poder agir livremente.
Estou organizado: limpador titular das latrinas, saio como se fosse Para fazer a limpeza, mas quem faz no meu lugar e o cara das Antilhas, mediante dinheiro, e claro. Travei relacoes de amizade com dois cunhados condenados a prisao perpetua, Narric e Quenier. Sao chamados “os cunhados do carrinho”. Contam que foram acusados de ter transformado em bloco de cimento um cobrador que tinham assassinado. Testemunhas teriam visto eles transportarem num carrinho de mao um bloco de cimento que teriam jogado no Marne ou no Sena. O inquerito estabeleceu que o cobrador foi ate a casa deles para receber uma duplicata e, depois, ninguem mais o viu. Eles negaram a vida toda. Ate na prisao, eles se diziam inocentes. Embora o corpo nunca tenha sido encontrado, foi achada a cabeca embrulhada num lenco. E na casa deles havia lencos do mesmo tecido e da mesma linha, “conforme os peritos”. Mas os advogados e eles mesmos provaram que foram feitos lencos com milhares de metros dessa fazenda. Todo mundo tinha lencos iguais aquele. Finalmente, os dois cunhados pegaram a prisao perpetua e a mulher de um dos dois, irma do outro, pegou vinte anos de reclusao.
Consegui travar relacoes com eles. Ja que sao pedreiros, eles tem entrada e saida livres na oficina de trabalho. Eles poderiam talvez, peca por peca, tirar o necessario para fazer uma jangada. Agora tenho que convence-los.
Ontem me encontrei com o medico. Levava um peixe de pelo menos 20 quilos, de carne delicada, chamado cherna. Ele e eu caminhamos na direcao do planalto. Na metade do caminho, sentamos num murinho. Ele me diz que com a cabeca desse peixe se faz uma sopa deliciosa. Ofereco-lhe a cabeca, com um grande pedaco de carne. Fica espantado com meu gesto e diz:
– Voce nao guarda ressentimento, Papillon.
– Quer dizer, doutor, este gesto meu, confesso que nao o faco por mim. Sou grato ao senhor porque fez o possivel para o meu amigo Clousiot.
A gente conversa um pouco e ele me diz:
– Bem que voce gostaria de fugir, nao e? Voce nao e um forcado. Parece que voce e outra coisa.
– O senhor tem razao, doutor, nao pertenco aos trabalhos forcados, estou aqui apenas de passagem.
Comeca a rir. Ai ataco:
– Doutor, o senhor acredita que um homem possa se regenerar?
– Acredito.
– O senhor admitiria a ideia de que eu possa viver na sociedade, sem ser um perigo para ela, e me transformar em cidadao honesto?
– Acredito sinceramente que sim.
– Entao, por que o senhor nao me ajudaria para chegar a isso?
– Como?
– Fazendo com que eu seja mandado ao continente como tuberculoso.
Ele confirma, entao, alguma coisa de que eu ja tinha ouvido falar:
– Nao e possivel e lhe aconselho a nunca fazer isso. E perigoso demais. A administracao so desinterna um homem por doenca depois de ele ter ficado pelo menos um ano no pavilhao correspondente a doenca.
– Por que?
– E um pouco vergonhoso dizer isso, mas penso que e para que o sujeito em questao, se for um simulador, saiba que ele tem toda a probabilidade de ser contaminado pela coabitacao com os outros doentes e que ele adoeca mesmo. Portanto, nada posso fazer por voce.
Desse dia em diante, ficamos bastante camaradas, o curandeiro e eu. Ate o dia em que o meu amigo Carbonieri quase foi morto por causa dele. De fato, Matthieu Carbonieri, de comum acordo comigo, tinha aceito ser cozinheiro dos guardas-chefes. Era para ver se dava para roubar tres barris de vinho, oleo ou vinagre e achar um meio de amarra-los e sair para o mar. Isso, claro, depois da saida de Barrot. As dificuldades eram muitas, pois era necessario, na mesma noite, roubar os barris, transporta-los ate o mar sem que ninguem nos visse nem ouvisse, e junta-los com cabos. O que so seria possivel numa noite de tempestade, com vento e chuva. Mas, com vento e chuva, o mais dificil seria botar essa jangada no mar, que forcosamente estaria muito agitado.
Carbonieri e agora cozinheiro. O chefe do refeitorio dos guardas lhe da tres coelhos para preparar para o dia seguinte, um domingo. Carbonieri manda, sem a pele felizmente, um coelho para o irmao, no cais, e dois para a gente. E entao ele mata tres grandes gatos e faz um guisado fantastico.
Infelizmente para ele, no dia seguinte, o medico e convidado para comer e, saboreando o coelho, diz:
– Senhor Filidori, dou-lhe os parabens pelo cardapio, este gato e uma delicia.
– Nao brinque comigo, doutor, estamos comendo tres otimos coelhos.
– Nao – diz o medico, teimoso como uma mula. – Sao gatos. Esta vendo as costelas que estou comendo? Elas sao achatadas e as dos coelhos sao redondas. Portanto, nao ha erro possivel: estamos comendo gato.