– Virgem, mae de Cristo! – diz o corso. – Estou com um gato na barriga.

E sai correndo para a cozinha, bota o revolver na cara de Matthieu e diz:

– Por mais que voce seja napoleonista como eu, eu vou te matar porque voce me fez comer um gato.

Tinha o olhar de um louco e Carbonieri, sem saber como a coisa viera a tona, responde:

– Se o senhor acha que aquilo que me deu e gato, nao e culpa minha.

– Eu lhe dei coelhos.

– Entao foram coelhos que eu cozinhei. Olhe, as peles e as cabecas ainda estao aqui.

Perplexo, o guarda olha para as peles e as cabecas dos coelhos.

– Entao o medico nao sabe o que diz?

– E o medico que esta dizendo isso? – pergunta Carbonieri, aliviado. – Ele esta brincando com o senhor. Diga que isso nao e brincadeira que se faca.

Acalmado, convencido, Filidori volta para a sala de jantar e diz ao medico:

– Pode falar, pode falar quanto quiser, curandeiro. E o vinho que lhe subiu a cabeca. Achatadas ou redondas as suas costelas, eu sei que foi coelho que eu comi. Acabo de ver os tres ternos deles e as tres cabecas.

Matthieu tinha escapado por pouco. Mas ele achou melhor se demitir do cargo de cozinheiro alguns dias mais tarde.

Aproxima-se o dia em que vou poder agir. Mais algumas semanas e Barrot ira embora. Ontem fui visitar sua gorda esposa, que, diga-se de passagem, emagreceu muito gracas ao regime de peixe cozido e verduras frescas. Essa mulher simpatica me convida para entrar na casa dela e me oferece uma garrafa de vermute. Na sala ha varias malas que estao arrumando. Estao preparando a viagem. A comandanta, como todo mundo a chama, me diz:

– Papillon, nao sei como agradecer a sua gentileza comigo nesses ultimos meses. Eu sei que, em alguns dias de pesca fraca, voce me deu tudo o que conseguiu pescar. Agradeco muito. Gracas a voce, estou me sentindo muito melhor, emagreci 14 quilos. O que poderia fazer para retribuir?

– Uma coisa dificil para a senhora. Me conseguir uma boa bussola. Pequena, mas de precisao.

– O que voce esta pedindo Papillon, nao e muita coisa e, ao mesmo tempo, e. E, em tres semanas, isso vai ser muito dificil.

Oito dias antes da partida, esta nobre mulher, aborrecida por nao ter conseguido uma boa bussola, teve a gentileza de tomar um barco costeiro e ir ate Caiena. Quatro dias depois, ela voltava com uma magnifica bussola antimagnetica.

O comandante e a comandanta Barrot sairam hoje pela manha. Ontem, ele entregou o comando a um oficial da mesma patente dele, da Tunisia, chamado Prouillet. Boa noticia: o novo comandante manteve Dega no seu cargo de contador geral. E muito importante para todo mundo, principalmente para mim. No discurso que fez para os forcados reunidos em formacao no patio grande, o novo comandante deu a impressao de ser um homem muito energico, mas inteligente. Entre outras coisas, ele disse:

– A partir de hoje, assumo o comando das Ilhas da Salvacao. Depois de ter verificado que os metodos do meu predecessor tiveram resultados positivos, nao vejo motivos para alterar o que existe. Se, pelo seu comportamento, voces nao me obrigarem a isso, nao vejo razao para modificar o seu modo de viver.

Foi com uma alegria bem justificada que vi partirem a comandanta e seu marido, embora estes cinco meses de espera forcada tenham passado com uma rapidez incrivel. Esta falsa liberdade de que gozam quase todos os forcados das ilhas, os jogos, a pesca, as conversas, as novas relacoes, as discussoes, as brigas sao derivativos poderosos e a gente nao tem tempo para se aborrecer.

Mas nao me deixei realmente envolver por este ambiente. Toda vez que adquiria um novo amigo, eu me fazia a seguinte pergunta: “E candidato a fuga? Poderia ajudar um outro a preparar uma evasao, se ele mesmo nao quiser partir?”

Vivo so para isto: fugir, fugir, sozinho ou acompanhado, mas fugir. E uma ideia fixa, da qual nao falo com ninguem, conforme o conselho de Jean Castelli, que sigo a risca, E, sem fraquejar, cumprirei o meu ideal: fugir.

7 AS ILHAS DA SALVACAO (continuacao)

UMA JANGADA DENTRO DE UM TUMULO

Com cinco meses, ja cheguei a conhecer mesmo os menores recantos da ilha. E agora estou convencido de que o jardim junto ao cemiterio onde trabalhava meu amigo Carbonieri – agora, ele nao esta mais la – e o ponto mais seguro para preparar uma jangada. Entao peco a Carbonieri que volte ao trabalho do jardim, sem ajudante. Ele concorda. Gracas a Dega, confiam-lhe outra vez o jardim.

Hoje de manha, quando passo em frente a casa do novo comandante, com uma enfiada de pescados num arame, ouco um jovem forcado, moco de servicos, dizer a mulher dele, ainda moca:

– E este aqui, senhora comandanta, que trazia peixe todo dia Para a Sra. Barrot.

E ouco a bonita morena, de tipo argelino, pele bronzeada, responder:

– Entao, o Papillon e ele? Ela se vira para mim e diz:

– Comi as lagostas deliciosas que voce pescou, foi a Sra. Barrot que me deu. Entre aqui em casa. Aceite um copo de vinho e um pouco de queijo de cabra, que eu recebi ha pouco tempo da Franca.

– Nao, obrigado, minha senhora.

– Por que? Quando era a Sra. Barrot, voce entrava; por que, agora que sou eu, voce nao quer entrar?

– E que o marido dela tinha dado autorizacao para eu entrar.

– Papillon, meu marido e comandante no campo, na casa quem manda sou eu. Pode entrar sem medo.

Percebo que aquela morena bonita, tao decidida, pode ser ou util ou perigosa. Entro.

Na mesa da sala de jantar, ela me serve um prato de presunto defumado com queijo. Sem fazer cerimonia, ela se senta a minha frente, me oferece vinho, depois cafe e um delicioso rum da Jamaica.

– Papillon – me diz ela -, apesar dos rebulicos da mudanca dela e da nossa chegada, a Sra. Barrot teve tempo de me falar de voce. Sei que ela era a unica mulher das ilhas que ganhava peixe de voce. Espero que voce me faca a mesma gentileza.

– E que ela estava doente, mas a senhora esta com boa saude, pelo que vejo.

– Nao sei mentir, Papillon. E verdade, tenho boa saude, mas vim de uma cidade de porto e adoro peixe. Eu sou de Oran. Mas fico sem jeito porque sei tambem que voce nao vende seu peixe. E isso e pena.

Em suma, ficou entendido que eu traria peixe para ela.

Eu estava fumando um cigarro, depois de dar a ela 3 bons quilos de salmonetes e seis lagostins, quando chega o comandante. Ele me ve e diz:

– Ja disse, Juliette, que, fora o moco de servicos, nenhum preso pode entrar aqui em casa.

Levanto, mas ela diz:

– Fique sentado. Este preso e o homem que a Sra. Barrot me recomendou quando foi embora. Portanto, voce nao tem nada a objetar. Ninguem mais alem dele vai entrar aqui. Por outro lado, ele vai me trazer peixe quando eu precisar.

– Esta bem – diz o comandante. – Como e que voce se chama?

Vou me levantando para falar com ele, mas Juliette poe a mao no meu ombro e me faz sentar outra vez:

– Aqui – diz ela – e a minha casa. O comandante nao e mais o comandante, e meu marido, o Sr. Prouillet.

– Obrigado, minha senhora. Meu nome e Papillon.

– Ah! Ouvi falar de voce e de sua fuga ha mais de tres anos do hospital de Saint-Laurent-du-Maroni. Alias, um dos vigias que voce atacou naquela fuga e simplesmente sobrinho meu e da sua protetora.

Diante disso, Juliette comeca a rir, um riso jovem cheio de frescor, e diz:

– Entao foi voce que atacou Gaston? Isso nao altera nada nas nossas relacoes.

O comandante, que continuava em pe, me diz:

– E incrivel a quantidade de morte e de assassinatos que se cometem todos os anos nas ilhas. Em muito maior numero do que na Terra Grande. A que voce atribui isso, Papillon?

– Aqui, senhor comandante, como os homens nao podem fugir, vivem cheios de raiva. Vivem uns por cima dos outros ha longos anos e e claro que se formam odios e amizades indestrutiveis. Alem disso, so menos de 5 por cento dos assassinatos e que sao esclarecidos, o que deixa os assassinos quase certos da impunidade.

– Sua explicacao e logica. Ha quanto tempo voce pesca, e que trabalho voce faz para ter esse direito?

– Sou limpador de latrinas. As 6 da manha, ja acabei o servico e posso pescar.

– O resto do dia inteiro? – pergunta Juliette.

– Nao, ao meio-dia tenho que estar de volta ao campo e so posso sair outra vez das 3 as 6. Isso e chato, porque, conforme as horas da mare, as vezes eu perco a pesca.

– Voce vai dar a ele uma autorizacao especial, nao e, querido? – diz Juliette, virando-se para o marido. – Das 6 da manha as 6 da tarde, assim ele podera pescar a vontade.

– Esta certo – responde ele.

Vou embora, contente comigo mesmo por ele ter concordado, pois essas tres horas, do meio-dia as 3, sao preciosas. E a hora da sesta e quase todos os vigilantes dormem nessas horas, a vigilancia e afrouxada.

Juliette tomou conta de nos, de mim e da minha pesca. Ela chega ao ponto de mandar o moco de servicos ver onde eu estou pescando, para vir buscar os peixes. Muitas vezes, ele chega me dizendo: “A comandanta mandou buscar tudo o que voce pescou, porque ela tem convidados para as refeicoes e quer fazer um cozido de peixes”. Enfim, ela toma conta de minha pesca e ate chega a me pedir que pesque este ou aquele peixe ou que mergulhe para pegar lagostins. Isso atrapalha muito o menu da cozinha dos amigos, mas em compensacao sou protegido como nenhum outro. Ela tambem me faz gentilezas: “Papillon, a mare e a 1 hora?” “E sim,

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