Vou fazendo a copia do desenho numa folha de caderno e sinto vergonha diante de tanta nobreza ingenua. Nem passou pela cabeca dele que minhas acoes a favor dele eram interesseiras e com segunda intencao. Sou obrigado a dizer a mim mesmo, para subir no meu Proprio conceito, que preciso fugir a qualquer preco, e mesmo, se for o caso, ao preco de situacoes dificeis e nem sempre bonitas. Durante a noite, falo com Naric, apelidado de “Boa-Praca”, o qual, mais tarde, ficou de por o seu cunhado a par da historia. Ele me diz sem hesitar:

– Pode contar comigo para retirar as pecas da oficina. So que a gente nao pode se apressar, porque so da para retirar quando se sai com uma quantidade grande de material para fazer um trabalho de marcenaria na ilha. Em todo caso, prometo que nao vamos perder nenhuma oportunidade.

Certo. Falta falar com Matthieu Carbonieri, porque e com ele que eu quero cair fora daqui. Ele concorda cem por cento.

– Matthieu, ja encontrei o homem que vai me fabricar a jangada, ja encontrei o homem que vai retirar as pecas da oficina. A seu cargo fica descobrir no seu jardim o local para enterrar a jangada.

– Nao, e perigoso num canteiro de legumes, porque de noite alguns guardas vao roubar legumes e, se passam por cima e sentem que esta oco por baixo, acabamos apanhados como fujoes. Vou fazer um esconderijo numa parede de sustentacao, retirando uma pedra grande e fazendo uma especie de pequena gruta. Assim, cada vez que me chega uma peca, e so eu levantar a pedra e recoloca-la depois de esconder a madeira.

– E para levar as pecas diretamente para o seu jardim?

– Nao, seria perigoso demais. Os caras do carrinho nao tem nada de justificavel a fazer no meu jardim, o melhor e combinarmos que de cada vez eles a depositem em um lugar diferente, nao muito longe do meu jardim.

– Entendido.

Tudo parece estar acertado. So faltam os cocos. Vou ver como e que poderei, sem chamar atencao, preparar uma quantidade suficiente.

A essa altura, sinto-me renascer. So me falta falar com Galgani e com Grandet. Nao tenho o direito de me calar, porque eles podem ser acusados de cumplicidade. Normalmente, eu deveria me separar deles oficialmente para viver sozinho. Quando digo a eles que vou preparar uma fuga e que devo me separar deles, eles me xingam e recusam categoricamente:

– Prepare a sua fuga o quanto antes. Quanto a nos, a gente se arranja por aqui mesmo. Ate la, fique com a gente, nao sera a primeira vez.

Ja faz um mes que a fuga esta se armando. Ja recebi sete pecas, das quais duas grandes. Fui ver a parede de sustentacao onde Matthieu cavou o esconderijo. Nao se ve que a pedra foi mexida, porque ele toma o cuidado de pregar musgo em volta. O esconderijo e perfeito, mas a cavidade me parece muito pequena para abrigar tudo. Enfim, por enquanto tem lugar.

O fato de estar armando uma fuga me da um moral formidavel.

Como mais do que nunca, e a pesca me mantem em forma fisica perfeita. Alem disso, todas as manhas pratico mais de duas horas de cultura fisica nos rochedos. Faco funcionarem sobretudo as pernas, porque a pesca ja me faz funcionarem os bracos. Descobri um troco bom para as pernas: avanco ate mais longe do que faco para pescar e as ondas vem bater contra as minhas coxas. Para aguenta-las e manter o equilibrio, contraio os musculos. O resultado e excelente.

Juliette, a comandanta, continua sempre muito amavel comigo, mas percebeu que so entro na casa dela quando o marido esta. Ela me disse isso francamente e, para me deixar mais a vontade, me explicou que no dia do penteado ela estava brincando. Mas a moca que lhe serve de cabeleireira fica me espiando muitas vezes quando volto da pesca, sempre com umas palavras gentis sobre a minha saude e o meu moral. Portanto, vai tudo as mil maravilhas. Bourset nao perde ocasiao de me fazer uma peca. Ja ha dois meses e meio que comecamos.

O esconderijo esta repleto, conforme; eu havia previsto. So faltam duas pecas, as mais compridas: uma de 2 metros, outra de 1 metro e meio. Essas pecas nao vao caber na cavidade.

Olhando para os lados do cemiterio, avisto um tumulo recente, e o tumulo da mulher de um vigia, que morreu na semana passada. Um maco vagabundo de flores murchas esta em cima. O guarda do cemiterio e um velho forcado meio cego que chamam de Papa. file passa o dia inteiro sentado a sombra de um coqueiro no canto oposto do cemiterio e, de onde esta, nao da para ele ver o tumulo nem para ver se alguem chega perto. Entao, reflito sobre a ideia de me servir desse tumulo para montar a jangada e meter dentro da armacao feita pelo marceneiro o maior numero possivel de cocos. Mais ou menos uns trinta a 34 cocos, muito menos do que se pensava. Espalhei mais de cinquenta em diferentes lugares. So no quintal de Juliette tem uma duzia. O moco de servicos vai pensar que eu os armazenei assim para um dia fazer oleo de coco.

Quando fico sabendo que o marido da morta foi embora para a Terra Grande, resolvo esvaziar uma parte da terra do tumulo, ate a altura do caixao.

Matthieu Carbonieri, sentado em cima de uma parede; fica de sentinela. Na cabeca pos um lenco branco com quatro nos nos cantos. Junto dele esta um lenco vermelho, tambem com quatro nos. Enquanto nao houver perigo, ele fica com o branco. Se aparecer alguem, quem quer que seja, ele poe o vermelho.

Esse trabalho muito arriscado nao me leva mais do que uma tarde e uma noite. Nao tenho que tirar terra ate o caixao, porque fui obrigado a alargar o buraco para que ele tenha a largura da jangada: 1 metro e 20 mais uma folga. As horas me pareciam interminaveis e o gorro vermelho apareceu varias vezes. Afinal, hoje de manha acabei. O buraco esta coberto de folhas de coqueiro trancadas, que formam uma especie de assoalho bem resistente. Por cima, uma pequena camada de terra. Quase nao se ve. Meus nervos estao a ponto de estourar.

Ja faz tres meses que esta em andamento esta preparacao de fuga. Amarrados e numerados, tiramos os paus do esconderijo. Repousam sobre o caixao da dona, bem escondidos debaixo da terra que recobre as esteiras. Na cavidade da parede pusemos tres sacos de farinha e uma corda de 2 metros para a vela, um garrafao cheio de fosforos e de coisas para risca-los, uma duzia de latas de leite, e e so.

Bourset esta cada vez mais excitado. Ate parece que e ele que vai embora e nao eu. Naric esta arrependido de nao ter dito que ia tambem, no comeco. Era so planejar uma jangada para tres, em vez de dois.

Estamos na temporada das chuvas, chove todo dia, o que favorece as minhas idas ao tumulo onde eu quase ja acabei de montar a jangada. Faltam as duas pecas laterais do esqueleto. Aos poucos fui trazendo os cocos para mais perto do jardim do meu amigo. Podem ser apanhados facilmente e sem perigo no viveiro descoberto dos bufalos. Nunca meus amigos me perguntam em que ponto esta o negocio. Apenas de vez em quando me dizem: “Tudo bem?” – “Sim, tudo bem.” – “Demora, nao?” – “Nao da para andar mais depressa sem arriscar demais.” So isso. Eu estava levando os cocos depositados na casa de Juliette, ela viu e me deu um medo enorme.

– Entao, Papillon, vai sair esse oleo de coco? Por que voce nao faz aqui no quintal? Voce tem um martelo para abrir os cocos e eu emprestaria um caldeirao para voce por a polpa.

– Prefiro fazer o oleo no campo.

– Esquisito, no campo deve ser mais complicado.

Depois pensa um instante e acrescenta:

– Quer saber de uma coisa? Nao acredito que voce, logo voce, va fazer oleo de coco.

Fico gelado. Ela continua:

– Em primeiro lugar, por que voce iria fazer isso, se eu posso lhe dar quanto oleo de oliva voce quiser? Esses cocos sao para outra coisa, nao e?

Fico suando em bagas, desde que ela comecou a falar, e so espero que pronuncie a palavra “fuga”. Fico sem folego; Digo a ela:

– Comandanta, e um segredo, mas vejo que a senhora esta tao interessada e curiosa, que vai acabar descobrindo a surpresa que eu queria lhe fazer. Mas so vou lhe dizer que eu escolhi esses grandes cocos para esvaziar a polpa deles e depois fabricar um objeto muito bonito para lhe presentear. Eis a verdade.

Consegui despista-la, pois ela responde:

– Papillon, nao quero lhe dar trabalho, e principalmente eu proibo voce de gastar dinheiro para me fazer qualquer coisa de especial. Agradeco sinceramente, mas nao o faca, eu lhe peco.

– Bem, vou ver.

Ufa! E imediatamente peco a ela para tomar um licor, iniciativa que nunca tomo. Ela nao percebe minha atrapalhacao, felizmente. Deus esta do meu lado.

Todo dia chove, sobretudo de tarde e de noite. Fico com medo de que a agua se infiltre na fina camada de terra e deixe a descoberto as esteiras de coqueiro. Matthieu continuamente repoe a terra que escorreu. Por baixo, o troco deve estar alagado. Com a ajuda de Matthieu, tiro as esteiras: a agua quase escondeu o caixao, o momento e critico. Perto ha o tumulo de duas criancas mortas muito tempo atras. Um dia, descerramos a laje, entro dentro e, com uma barra curta, ataco o cimento, o mais baixo possivel, do lado do tumulo da jangada. Uma vez quebrado o cimento, assim que enfio a barra na terra, a agua jorra forte. A agua escorre do outro tumulo e entra no buraco. Saio para fora quando ela ja me chega aos joelhos. Recolocamos a laje e a calafetamos com uma massa branca que Naric me arranjou. Esta operacao reduziu a agua a metade no nosso tumulo-esconderijo. A noite, Carbonieri me diz:

– Nao acabam nunca os problemas que temos com essa fuga.

– Ja estamos quase no fim, Matthieu.

– Quase, espero.

E verdade que estamos como que pisando sobre brasas.

De manha, desci ate o cais. Pedi a Chapar para me comprar 2 quilos de peixe, voltarei para busca-los ao meio-dia. Combinado. Volto ao jardim de Carbonieri. Assim que chego perto, vejo tres capacetes brancos. Por que ha tres guardas no jardim? Estao fazendo uma revista? Isso e novidade. Eu nunca tinha visto tres vigias duma so vez no jardim. Espero mais de uma hora e nao aguento mais. Resolvo avancar, para ver o que esta acontecendo. De cara, vou diretamente pelo caminho que leva ao jardim. Os guardas me olham chegar. Estou desconfiado, estou a uns 20 metros deles, ai Matthieu poe seu lenco branco na cabeca. Respiro aliviado e consigo me refazer antes de chegar ate o grupo.

– Bom dia, senhores vigilantes. Bom dia, Matthieu. Vim buscar o mamao que voce me prometeu.

– Sinto muito, Papillon, mas me roubaram o seu mamao hoje de manha, quando eu fui buscar as varetas para a minha trepadeira de ervilhas. Mas daqui a quatro ou cinco dias vai ter mais mamao maduro, ja estao amarelando. E os senhores, seus guardas, nao querem umas alfaces, uns tomates, rabanetes para levar para as suas senhoras?

– Voce cuida bem do seu jardim, Carbonieri, parabens – diz um deles.

Eles aceitam tomates, alfaces e rabanetes e vao embora. Eu voa embora ostensivamente um pouco antes deles, levando umas alfaces.

Passo pelo cemiterio. O tumulo esta meio descoberto pela chuva que lavou a terra. A dez passos ja da para eu ver as esteiras. Deus esta mesmo do nosso lado, se nao nos descobriram depois dessa. O vento sopra feito louco toda a noite, varrendo o planalto da ilha com rugidos raivosos, muitas vezes junto com chuva. E o tipo do tempo ideal para partir, mas nao para o tumulo.

A maior de todas as tabuas, a de 2 metros, chegou sa e salva a seu domicilio. Foi juntar-se as outras pecas da jangada. Eu ate ja montei a peca: ela se encaixou maravilhosamente, sem dificuldade nenhuma, nas chanfraduras. Bourset chegou ao campo correndo, para saber se eu recebi essa peca de importancia primordial,

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