tao pretensioso. Como poderias te sentir forte? Comendo o que tu comes? O essencial – e nesse ponto tu es um vitorioso – e que estas fraco mas nao estas doente. Com um pouco de sorte, e logico que a devoradora de homens acabe perdendo a parada para ti.” Depois das minhas duas horas de caminhada, sento-me no bloco de cimento que me serve de banquinho. Mais trinta dias vao passar – isto e, 720 horas – e depois a porta se abrira e me dirao: “Prisioneiro Charriere, saia. Seus dois anos de reclusao terminaram”. Que lhe direi, entao? Direi: “Terminei, finalmente, esse calvario de dois anos”. Nao! Se e o comandante para quem voce se fez de amnesico, deve continuar friamente a representar. Deve dizer-lhe: “Quer dizer que estou livre? Vou partir para a Franca? Acabou a minha pena de prisao perpetua?” So para ver a cara dele e convence-lo de que o jejum a que me condenou foi uma injustica. “Que e que se passa com voce, caramba?” Injustica ou nao, o comandante nao dara importancia ao fato de se ter enganado. Que significa um engano desses para uma mentalidade assim? Teras a pretensao de deixa-lo com remorso por te ter castigado injustamente? Hoje, tanto como amanha, estas proibido de supor que um carcereiro e um ser normal. Nenhum homem digno desse nome pode pertencer a corporacao dos torturadores. As pessoas se habituam a tudo na vida, ate a serem crapulas. Talvez somente depois da sepultura, se ele tem alguma religiao, o temor de Deus o fara arrepender-se e angustiar-se, nao por um verdadeiro remorso das canalhices cometidas e sim pelo medo de que Deus o transforme em condenado.

A qualquer ilha que chegues, portanto, leva desde ja a conviccao de que nao podes ter compromisso algum com essa raca. Ha uma barricada bem definida e cada um esta de um lado dela. De um lado, esta a prepotencia, a autoridade pedante e desalmada, o sadismo de reacoes intuitivas e automaticas; do outro, estou eu com os homens da minha especie, que certamente cometeram delitos graves, mas nos quais o sofrimento conseguiu criar qualidades incomparaveis: a piedade, a bondade, o espirito de sacrificio, a nobreza, a coragem.

Com toda a sinceridade, prefiro ser um condenado a ser um desses carcereiros.

Faltam so vinte dias. Sinto-me realmente muito fraco. Observei que a minha bolota de pao e sempre das menores. Quem pode ser tao baixo a ponto de querer me prejudicar ate na selecao das bolotas de pao? Ha varios dias, minha sopa e pura agua quente e o pedaco de carne e sempre um osso com pouquissima carne ou um resto de pele. Tenho medo de ficar doente. Isso esta ficando uma obsessao para mim. Estou tao fraco, que, acordado, nao me esforco para sonhar coisa alguma. Essa profunda lassidao e uma depressao grave me inquietam. Procuro reagir, mas e com dificuldade que consigo passar as 24 horas de cada dia. Arranham minha porta. Rapidamente recolho um bilhete fosforescente de Dega e Galgani. Leio: “Manda uma palavra. Muito preocupados com teu estado de saude. Mais dezenove dias. Coragem. Louis – Ignace”.

Ha um pedacinho de papel branco e outro de lapis preto. Escrevo: “Aguento a parada. Estou muito fraco. Obrigado. Papi”.

Quando a vassoura passa novamente e me arranha a porta, mando o bilhete. A palavra recebida foi mais importante para mim do que quaisquer cigarros ou coquinhos. Essa maravilhosa manifestacao de amizade firme e o estimulo de que eu precisava. La fora sabem como eu estou e, se adoecer, o medico sera certamente pressionado por meus amigos para me tratar direito. Eles tem razao: mais dezenove dias e chegarei ao fim dessa corrida exaustiva contra a morte e contra a loucura. Nao ficarei doente. Cabe-me fazer o minimo possivel de movimentos para so gastar as calorias indispensaveis. Vou suprimir as duas horas da caminhada matinal e as outras duas da caminhada do meio-dia. E o unico modo de aguentar. A noite, passo doze horas deitado; de dia, passo deitado as outras doze, ou entao sentado sem me mexer, no banco de pedra. De vez em quando, me levanto e faco algumas flexoes e movimentos de braco; em seguida, torno a sentar-me. Assim passo mais dez dias.

Estou passeando pelas ruas de Trinidad, embalado pelo som dos violoes de uma corda so que acompanham as cancoes tristes dos javaneses, quando um grito horrivel, inumano, me chama de volta a realidade. E um grito que vem de uma cela atras da minha, ou entao muito proxima. Escuto:

– Desce aqui no meu cubiculo, canalha! Nao esta cansado de ficar me olhando ai de cima? Assim voce esta perdendo a metade do espetaculo, porque a falta de luz deste buraco nao te deixa ver direito…

– Cale a boca ou voce vai ser severamente punido – diz o guarda.

– Ah, nao me faca rir, seu imbecil! Que castigo pode ser pior do que esse silencio? Castigue o quanto quiser! Pode me bater, se e do seu agrado, carrasco idiota, mas nada pode ser pior do que esse silencio em que voces querem me obrigar a viver! Nao, nao quero mais ficar calado, quero falar. Ha tres anos que ja devia ter lhe dito: voce e um merda, uma pustula! Minha fraqueza foi a de ter esperado 36 meses para lhe dizer o nojo que eu tenho de voce, com medo de ser punido. Mas voce e todos esses seus companheiros nao passam de bonecos podres de merda!

Pouco depois, a porta da cela dele se abre e ouco:

– Nao, assim nao! Veste ao contrario, que e muito mais eficiente!

E o coitado do prisioneiro urra:

– Podem vestir a camisa de forca como quiserem, seus merdas! Podem vestir ao contrario, podem me apertar os lacos, podem me machucar com os joelhos. Isso nao vai me impedir de dizer que a sua mae era uma puta barata e que por isso mesmo voce so podia ser um saco de merda!

Devem ter colocado uma mordaca nele, pois agora nao ouco mais nada. A porta se fecha de novo. Essa cena deve ter emocionado o jovem guarda, porque, apos alguns minutos, ele para diante da minha cela e diz:

– Ele deve ter enlouquecido.

– Voce acha? Mas o que ele falou e muito sensato.

O guarda fica boquiaberto e, ao prosseguir sua caminhada, resmunga:

– Bem, vai acabar imitando o outro.

Esse incidente me tirou da ilha, dos violoes, do meio dos hindus de Port-of-Spain, para me trazer de volta a triste realidade da reclusao.

Tenho ainda dez dias, isto e, 240 horas para sofrer.

A tatica de nao me mexer da bons resultados, talvez porque os dias sejam tranquilos, talvez por causa do bilhete dos meus amigos. Creio, contudo, que me sinto mais forte em virtude de uma comparacao. Faltam 240 horas para eu me libertar dessa reclusao; estou fraco, mas meu cerebro esta intato, minha energia requer apenas um pouco mais de forca fisica para voltar a funcionar com perfeicao. No entanto, aqui atras, a 2 metros, do outro lado da parede, ha um prisioneiro que entra na primeira fase da loucura, talvez pela pior porta, que e a da violencia. Nao vai sobreviver por muito tempo. Sua revolta permitira que lhe apliquem tratamentos estudados com o maior rigor para mata-lo o mais cientificamente possivel. Consigo sentir-me mais forte porque o outro foi derrotado. A sensacao faz com que eu me pergunte se nao serei um daqueles egoistas que, no inverno, bem agasalhados e bem calcados, veem passar a massa dos trabalhadores enregelados, mal vestidos, com as maos azuladas pelo frio da manha, e, olhando a multidao que corre para pegar o onibus ou o metro, ainda usufruem com maior gosto a comodidade e se sentem melhor do que antes. Tudo na vida e, com frequencia, feito de comparacoes. De fato, estou condenado a dez anos mas Papillon esta condenado a prisao perpetua. De fato, estou condenado a prisao perpetua, mas tenho apenas 28 anos, ao passo que ele tem cinquenta.

Bom, estou chegando ao fim da reclusao e, em menos de seis meses, espero que a saude, o moral e a energia, em todos os aspectos, me deixem em boa situacao para uma fuga espetacular. Falou-se muito da primeira. A segunda ha de ficar gravada nas pedras da cadeia. Nao tenho duvida. Antes de seis meses, estou seguro de partir.

Essa e a ultima noite que passo na reclusao. Ha dezessete mil quinhentas e oito horas entrei na cela 234. Uma vez me abriram a porta para me conduzir diante do comandante, a fim de que ele me punisse. Alguns segundos por dia, troquei alguns monossilabos com meu vizinho. Afora isso, me falaram quatro vezes. Uma para me dizer que, ao ouvir o apito, eu devia baixar a cama embutida; foi no primeiro dia. Outra vez, foi o medico: “Vire-se, tussa”. Depois, uma conversa mais longa e mais movimentada com o comandante. Por fim, outro dia, quatro palavras trocadas com o guarda que se emocionara diante do preso enlouquecido. Nao e uma diversao excessiva! Durmo tranquilamente, pensando numa unica coisa: amanha, essa porta vai se abrir definitivamente. Amanha verei o sol e, se me mandarem para Royale, respirarei o ar marinho. Amanha estarei livre. Comeco a dar gargalhadas. Como, livre? Amanha recomecaras a tua pena de trabalhos forcados, a tua prisao perpetua. E isso que consideras ser livre? Sei muito bem, mas e uma vida que nao se compara aquela que acabei de suportar aqui. Como encontrarei Clousiot e Maturette?

As 6 horas me dao o cafe e o pao. Tenho vontade de dizer: “Voces estao enganados, hoje estou de saida”. Logo me recordo que sou “amnesico” e que, se me desmascarar ante o comandante, ele pode me dar um castigo adicional de trinta dias. De qualquer modo, pela lei, devo sair hoje, 26 de junho de 1936, da reclusao disciplinar de Saint-Joseph. Dentro de quatro meses estarei completando trinta anos.

Oito horas. Comi toda a minha bolota de pao. No caminho certamente me darao de comer. Abre-se a porta. Chegam o subcomandante e dois guardas.

– Charriere, hoje e 26 de junho de 1936, voce acabou de cumprir a sua pena. Siga-nos.

Saio. No patio, o sol e suficientemente brilhante para me tontear. Sinto uma especie de fraqueza. Minhas pernas amolecem e manchas negras dancam diante dos meus olhos. No entanto, caminhei apenas 50 metros, trinta dos quais ao sol.

Chegando ao predio da administracao, vejo Maturette e Clousiot. Maturette esta transformado num verdadeiro esqueleto, com o rosto cavado e os olhos fundos. Clousiot esta deitado numa padiola, livido e ja com cheiro de morte. Penso: “Nao estao bonitos, os meus amigos. Sera que eu tambem estou nesse estado?” Estou doido para me ver num espelho. Digo-lhes:

– Como e? Estamos firmes?

Nao respondem. Repito:

– Estamos firmes?

– Estamos – responde debilmente Maturette.

Sinto o impulso de dizer-lhe que a reclusao terminou, que nos temos o direito de conversar. Beijo o rosto de Clousiot. Ele me olha com dois olhos brilhantes e sorri. Diz:

– Adeus, Papillon.

– Nao fale assim!

– Falo, sim. Estou nas ultimas.

Alguns dias depois, morreu no hospital de Royale. Tinha 32 anos, fora preso com vinte pelo furto de uma bicicleta que nao havia cometido. Chega o comandante:

– Tragam os presos aqui para dentro. Maturette e Clousiot se portaram bem. Vou anotar na ficha de voces: “Boa conduta”. Voce, nao, Charriere. Voce cometeu uma falta grave. Vou anotar na sua ficha: “Ma conduta”.

– Desculpe, comandante, mas qual foi a falta que eu cometi?

– Voce nao se lembra da descoberta dos cigarros e do coquinho?

– Sinceramente, nao.

– Bem, que regime voce vem tendo ha quatro meses?

– De que ponto de vista? No que se refere a comida? O mesmo de sempre, desde que cheguei aqui.

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