– Ah, isso e o cumulo! Que foi que voce comeu ontem a noite?
– Nao sei. Deram o que costumam dar. Nao me lembro. Acho que foi feijao, ou arroz. Ou talvez um legume.
– Mas lhe deram comida ontem a noite? Voce comeu?
– Claro que comi! O senhor acha que eu vou desperdicar comida?
– Nao, nao e isso. Desisto. Nao vou anotar “ma conduta”. Guarda, faca uma nova ficha de saida para Charriere. Vou anotar “boa conduta” na sua ficha, esta bom?
– Esta bom e e justo. Nao fiz nada que desmerecesse o meu conceito.
Foi com essa frase que nos saimos do escritorio.
A grande porta do conjunto de reclusao se abre para passarmos. Escoltados por um unico guarda, descemos lentamente o caminho que leva ao porto. Vemos o mar, com seus reflexos brilhantes e prateados da espuma. Em frente se acha Royale, com o verde da vegetacao e o vermelho dos tetos. A Ilha do Diabo, austera e selvagem. Peco licenca ao guarda para me sentar por alguns minutos. Ele autoriza. Nos nos sentamos, um a esquerda e outro a direita de Clousiot, e automaticamente, sem nos darmos conta, damo-nos as maos. Esse contato nos da uma emocao estranha e, sem nos dizermos nada, beijamo-nos no rosto. O guarda faia:
– Vamos, rapazes. E preciso descer.
E lentamente, bem lentamente, descemos ate o porto, nos dois adiante, de maos dadas, o guarda e os dois enfermeiros que vem carregando o nosso amigo agonizante.
Assim que entramos no patio do campo, todos os forcados comecam a nos tratar com uma atencao amigavel. Reencontro Pierrot le Fou, Jean Sartrou, Colondini, Chissilia. Temos que ir os tres para a enfermaria, informa o guarda. Assim, escoltados por uns vinte homens, atravessamos o patio ate a enfermaria. Em alguns minutos, Maturette e eu temos na nossa frente uma duzia de macos de cigarros e de fumo, cafe com leite bem quente, chocolate feito com cacau puro. Cada um quer dar alguma coisa para a gente. Clousiot ganha do enfermeiro uma injecao de oleo canforado e uma de adrenalina para o coracao. Um preto muito magro diz:
– Enfermeiro, de as minhas vitaminas para ele, precisa mais do que eu.
E realmente comovedora esta demonstracao de bondade solidaria para com a gente.
Pierre, o bordeles, diz para mim:
– Voce quer gaita? Antes da saida de voces para Royale, da tempo para fazer uma vaquinha.
– Nao, muito obrigado, tenho dinheiro. Mas como voce sabe que eu vou para Royale?
– Foi o contador que disse. Vao os tres. Acho ate que vao os tres para o hospital.
O enfermeiro e um bandido das montanhas da Corsega. Se chama Essari. Depois eu o conheci muito bem, mais tarde contarei toda a historia dele, e muito interessante. As duas horas na enfermaria passam muito depressa. Comemos e bebemos bastante. Repletos e satisfeitos, partimos para Royale. Clousiot ficou o tempo todo de olhos fechados, a nao ser quando eu me aproximava e botava a mao na testa dele. Entao, abria os olhos ja morticos e dizia:
– Amigo Papi, somos verdadeiros amigos.
– Mais do que isso, somos irmaos – respondia eu.
Ainda com um guarda so, descemos. No meio, a maca com Clousiot, Maturette e eu de cada lado. Na porta do campo, todos os forcados se despedem da gente e nos desejam boa sorte. Agradecemos os presentes e nao queremos aceita-los, embora eles nao nos oucam. Pierrot le Fou botou no meu pescoco uma sacola cheia de fumo, cigarros, chocolate e latas de leite Nestle. Maturette tambem ganhou uma. Nao sabe quem lhe deu. Somente o enfermeiro Fernandez e um guarda nos levam ate o cais. Ele entrega a cada um uma ficha para o hospital de Royale. Adivinho que sao os forcados enfermeiros Essari e Fernandez que, sem pedir nada ao medico, nos hospitalizam. A canoa esta ai. Seis remadores, dois guardas atras armados com mosquetoes e mais um no leme. Um dos remadores e Chapar, do caso da Bolsa de Marselha. Bom, vamos. Os remos penetram no mar e, remando, Chapar fala para mim:
– Tudo bem, Papi? Voce sempre recebeu o coco?
– Nao nos ultimos quatro meses.
– Eu sei, houve um acidente. O sujeito foi direito. Ele so conhecia a mim, mas nao me entregou.
– O que aconteceu com ele?
– Morreu.
– Nao e possivel! Morreu de que?
– Parece, pelo que diz um enfermeiro, que fizeram estourar o figado dele com um pontape.
Desembarcamos no cais de Royale, a mais importante das tres ilhas. No relogio da padaria sao 3 horas. Este sol da tarde e muito forte, me ofusca e me esquenta demais. Um guarda pede dois homens para a maca. Dois forcados, corpulentos, impecavelmente vestidos de branco, cada um com o pulso fortalecido por uma pulseira de couro, levantam Clousiot como se fosse uma pena e nos andamos atras dele, Maturette e eu, Um guarda, com alguns papeis na mao, anda atras da gente.
O caminho, de mais de 4 metros de largura, e de cascalho. E dificil de subir. Felizmente, os dois homens param de vez em quando e esperam por nos. Sento no braco da maca, do lado da cabeca de Clousiot e passo levemente a mao na testa dele. Toda vez que faco isso ele sorri, abre os olhos e diz:
– Meu velho Papi!
Maturette pega a mao dele.
– E voce, pequenino? – murmura Clousiot.
Ele parece ter uma felicidade inefavel ao sentir a gente perto dele. Damos uma parada, quase na chegada, e encontramos uma turma que vai para o trabalho. Sao quase todos forcados do meu comboio. Todos, na passagem, tem uma palavra amavel para a gente. Chegando ao planalto, na frente de um predio quadrado e branco, vemos, sentados na sombra, as mais altas autoridades das ilhas. Nos aproximamos do comandante Barrot, alcunhado “Coco Seco”, e dos outros chefes da penitenciaria. Sem levantar e sem cerimonia, o comandante diz:
– Entao, nao foi dura demais a reclusao? E aquele na maca, quem e?
– E Clousiot.
Olha para ele e diz:
– Leve todos para o hospital. Quando sairem, bote um aviso para que eles me sejam apresentados antes de entrar no campo.
No hospital, numa grande sala muito bem iluminada, nos botam em camas bem limpas, com lencois e travesseiros. O primeiro enfermeiro que vejo e Chatal, o enfermeiro da sala de alta vigilancia de Saint-Laurent-du-Maroni. Ele toma logo conta de Clousiot e da ordens a um guarda para chamar o medico. Este chega la pelas 5 horas. Depois de um longo e minucioso exame, vejo que ele balanca a cabeca, com ar insatisfeito. Escreve a receita e comenta:
– Nao somos bons amigos, Papillon e eu – diz para Chatal.
– Estranho, pois e um bom cara, doutor.
– Talvez, mas ele tem birra comigo.
– Por causa do que?
– Por causa de uma consulta que tivemos na reclusao.
– Doutor – digo -, o senhor chama isso de consulta, auscultar pelo postigo?
– E ordem da administracao: nunca abrir a porta de um condenado.
– Muito bem, doutor, espero que o senhor esteja apenas emprestado a esta administracao e que nao pertenca a ela.
– Falaremos disso mais tarde. Vou tentar fortalece-los, a voce e seu amigo. Quanto ao outro, receio que seja tarde demais.
Chatal me conta que, suspeito de estar preparando uma fuga, ele foi internado nas ilhas. Conta tambem que Jesus, aquele que me traiu na minha fuga, foi assassinado por um leproso. Ele nao sabe o nome do leproso e pergunto para ele se nao sera um daqueles que nos ajudaram com tamanha generosidade.
A vida dos forcados nas Ilhas da Salvacao e completamente diferente do que se pode imaginar. Em sua maioria, os homens sao extremamente perigosos, por varios motivos. Primeiro, todo mundo come bem, pois se negocia tudo: alcool, cigarros, cafe, chocolate, acucar, carne, verduras frescas, peixe, lagosta, coco, etc. Portanto, todo mundo goza de perfeita saude, num clima muito sadio. Apenas os condenados temporarios tem a esperanca de serem libertados, mas os condenados a prisao perpetua – perdido por perdido! – sao todos perigosos. Todos estao envolvidos nessas negociatas diarias, forcados e guardas. E uma mistura dificil de entender. Esposas de guardas procuram jovens forcados para trabalhos domesticos – e muitas vezes elas os tomam como amantes. Sao chamados “mocos de servicos”. Alguns sao jardineiros, outros cozinheiros. E essa a categoria que serve de ligacao entre o campo e as casas de guardas. Os “mocos de servicos” nao sao antipatizados pelos outros forcados, pois e gracas a eles que se pode negociar de tudo. Mas eles nao sao considerados puros. Nenhum homem da autentica malandragem aceitaria se rebaixar a esses servicinhos. Nao concordaria em ser chaveiro, nem em trabalhar no refeitorio dos guardas… Por outro lado, os presos pagam carissimo pelas ocupacoes nas quais nao tenham relacao com os guardas: limpadores de latrinas, varredores de folhas secas, condutores de bufalos, enfermeiros, jardineiros da penitenciaria, acougueiros, padeiros, remadores, carteiros, guardas do farol. Todos esses empregos sao ocupados pelos verdadeiros duros. Um verdadeiro duro nunca trabalha na manutencao dos muros de contorno das estradas, das escadas, nem planta coqueiros; quer dizer, nunca trabalha nas tarefas ao sol ou sob a vigilancia dos guardas. A gente trabalha das 7 horas ao meio-dia e das 2 as 6. Isso da uma ideia do ambiente criado pela mistura de pessoas tao diferentes que vivem juntas, forcados e guardas, verdadeira aldeia em que se comenta tudo, se julga tudo, em que todo mundo observa a vida dos outros.
Dega e Galgani vieram passar o domingo comigo no hospital. Comemos maionese com peixe, sopa de peixe, batatas, queijo, cafe, vinho branco. Esta refeicao, nos a fizemos no quarto de Chatal, ele, Dega, Galgani, Maturette, Grandet e eu. Pediram-me que conte toda a minha fuga, nos menores detalhes. Dega nao vai tentar mais nada para fugir. Aguarda da Franca uma reducao de cinco anos em sua pena. Com os tres que ele ja fez na Franca e mais tres aqui, so faltara cumprir quatro. Se resignou a cumpri-los. Quanto a Galgani, acha que um senador corso esta cuidando do caso dele.
Quando chega a minha vez, pergunto quais os lugares mais propicios, aqui, para uma fuga. E um espanto geral. Para Dega, e uma ideia que nem lhe passou pela cabeca; Galgani tambem nao pensa nisso. Por sua vez, Chatal acha que um jardim deve ter suas vantagens para preparar uma jangada. Quanto a Grandet, ele me informa que e ferreiro numa oficina onde, pelo que esta dizendo, ha de tudo: pintores, carpinteiros, ferreiros, pedreiros, encanadores – 120 homens. Ele trabalha na manutencao dos predios da administracao. Dega, que e contador geral, me ajudara a obter o lugar que eu quiser. Sera so escolher. Grandet me oferece a metade do