e portanto Cuic-Cuic, o irmao de Chang. Para que mudar o plano? Se na Ilha do Diabo concluiram que nos nos afogamos, nao ha perigo nenhum. Mas, se acharam que houve uma evasao, Kourou se torna perigosa. Como ha um presidio de estrangeiros, deve estar cheio de arabes e, portanto, de cacadores de homens em quantidade. Cuidado, Papi! Nada de erros. Nao se deixe apanhar. Voce tem que enxergar o cara, seja quem for, antes que ele veja voce. Conclusao: nao devo andar pela picada e sim pelo mato, ao lado do caminho. Voce cometeu um grande erro correndo o dia todo por esta picada, tendo o facao como unica arma. Nao foi leviandade, nao: foi uma loucura. Entao, amanha vou andar pelo mato.

Levanto cedinho; acordado pelos gritos dos animais e dos passaros que saudam o nascer do dia, desperto junto com a floresta. Para mim, tambem comeca um outro dia. Engulo um punhado de coco bem mastigado. Passo um pouco no rosto e me ponho a caminho.

Bem perto da picada, mas no meio das arvores, caminho com bastante dificuldade, porque, apesar de os cipos e os galhos nao serem muito grandes, preciso afasta-los para seguir em frente. De qualquer maneira, fiz bem em sair do caminho, porque ouco um assobio. Na minha frente, a picada segue reta por uns 50 metros. Nao vejo a pessoa que assobia. Ah, ai vem ela! E um negro do Sudao. Carrega um fardo no ombro e um fuzil na mao direita. Esta com uma camisa caqui e um short, as pernas nuas e os pes descalcos. Com a cabeca abaixada, nao tira os olhos do chao, as costas dobradas pelo peso do fardo volumoso.

Escondido atras de uma arvore grande, na beirada mesmo do caminho, espero, com o facao preparado, que ele chegue perto de mim. Na hora em que ele passa na frente da arvore, caio em cima dele. Minha mao direita agarra no ar o braco que segura o fuzil e, torcendo-o, obrigo-o a larga-lo. “Nao me mate! Tenha do de mim, pelo amor de Deus!” Esta de pe, com a ponta da minha faca encostada do lado esquerdo de seu pescoco. Abaixo e agarro o fuzil, uma velha espingarda de um cano so, mas que deve estar carregada de polvora e chumbo ate o pescoco. Armo o gatilho e, afastando-me 2 metros, ordeno:

– Ponha de lado o fardo, deixe-o cair. Nao tente fugir correndo, porque eu o mato.

O pobre negro, aterrorizado, obedece. Depois olha para mim.

– O senhor e um foragido?

– Sou.

– Que e que o senhor quer? Tudo que eu tenho, pode pegar. Mas, por favor, nao me mate, tenho cinco filhos. Pelo amor de Deus, me deixe vivo.

– Cale a boca. Como e que voce se chama?

– Jean.

– Aonde vai?

– Levar mantimentos e remedios aos meus dois irmaos, que estao cortando lenha no mato.

– De onde voce vem?

– De Kourou.

– Voce e da aldeia?

– Nasci la.

– Conhece Inini?

– Conheco, as vezes faco uns biscates com os chineses do presidio.

– Esta vendo isso?

– O que e?

– Uma nota de 500 francos. Voce escolhe: ou faz o que eu mando e eu lhe dou de presente esses 500 francos e devolvo o fuzil; ou voce recusa, ou tenta me enganar, e entao eu o mato. Escolha.

– O que e que eu tenho que fazer? Vou fazer tudo que o senhor mandar, mesmo sem ganhar nada.

– Voce precisa me levar sem nenhum risco ate perto do presidio de Inini. Depois que eu tiver entrado em contato com um chines, voce pode partir. Entendido?

– Esta certo.

– Nao tente me enganar, senao voce e um homem morto.

– Nao, eu juro que vou ajudar o senhor, honestamente.

Ele tem leite condensado. Tira seis latas e da para mim, e tambem um pao de 1 quilo e toicinho defumado.

– Esconda seu saco no mato, pode pegar mais tarde. Olhe, aqui esta uma marca na arvore que eu fiz com o facao.

Bebo uma lata de leite. Ele me da tambem uma calca comprida novinha, um macacao de mecanico. Visto-o, sem largar a espingarda.

– De agora em diante, Jean, tome cuidado para ninguem ver a gente, porque, se alguem nos descobrir, a culpa e sua e, entao, pior para voce.

Jean sabe andar no mato melhor do que eu e custo a ir atras dele, tao facilmente ele se desvia dos galhos e dos cipos. Esse desgracado anda completamente a vontade no mato.

– O senhor veja, em Kourou ficamos sabendo que dois condenados fugiram das ilhas. Tambem quero ser honesto com o senhor: vai ser muito perigoso quando a gente passar perto do presidio de Kourou.

– Voce parece bom e honesto, Jean. Espero nao estar me enganando. Como voce acha que e melhor para a gente ir a Inini? Pense que a minha seguranca e a sua vida, porque, se os guardas ou os cacadores de homens me apanharem, vou ser obrigado a matar voce.

– Como devo chamar o senhor?

– Papillon.

– Bom, Sr. Papillon, precisamos entrar completamente dentro do mato e passar bem longe de Kourou. Garanto que eu levo o senhor ate Inini pela floresta.

– Confio em voce. Va pelo caminho que voce achar mais seguro.

No interior da floresta, andamos com muita cautela, mas, depois que deixamos as proximidades da picada, percebo que o negro esta mais calmo. Nao sua mais tanto e sua fisionomia esta menos contraida; ele se sente como que tranquilizado.

– Parece que voce tem menos medo agora, Jean.

– Sim senhor, Sr. Papillon. Perto do caminho era muito perigoso para o senhor, e entao era perigoso para mim tambem.

Avancamos rapidamente. Esse preto e inteligente, nunca se afasta mais de 3 ou 4 metros de mim.

– Pare, quero fazer um cigarro.

– Tome um maco de Gauloises.

– Obrigado, Jean, voce e um bom sujeito.

– Sou mesmo, muito bom. Veja o senhor, sou catolico e sofro de ver como voces presos sao tratados pelos guardas brancos.

– Voce viu muitos? Onde?

– No presidio estrangeiro de Kourou. Da do de ver eles morrendo aos poucos, destruidos por este trabalho de cortar a lenha, pela febre e a disenteria. Nas ilhas, voces estao melhor. E a primeira vez que eu vejo um condenado como o senhor em perfeita saude.

– E, a gente esta melhor nas ilhas.

Sentamos um pouco num grande galho de arvore. Ofereco-lhe uma de suas latas de leite, Ele recusa e prefere mastigar a polpa do coco.

– Sua mulher e jovem?

– E, tem 32 anos. Eu tenho quarenta. Temos cinco filhos, tres meninas e dois meninos.

– Voce ganha bem a vida?

– Com o pau-rosa, a gente se defende mais ou menos e minha mulher lava e passa a roupa para os guardas. Isso ajuda um pouquinho. Somos muito pobres, mas da para matar a fome e os meninos vao para a escola. Eles tem sempre sapatos para por.

Pobre negro que acha que, porque seus filhos tem sapatos, esta tudo bom. E quase do meu tamanho, seu rosto de negro nao tem nada de antipatico. Pelo contrario, seus olhos mostram claramente que e um homem dotado de sentimentos, trabalhador, sadio, bom pai de familia, bom marido, bom cristao.

– E o senhor, Papillon?

– Eu, Jean, estou tentando tornar a viver. Estou enterrado vivo ha dez anos, nunca paro de fugir para chegar um dia a ser como voce, livre com uma mulher e filhos, sem fazer mal a ninguem nem com o pensamento. Voce mesmo disse, esta prisao e podre e um homem de respeito deve fugir desta sujeira.

– Vou ajudar honestamente o senhor a conseguir isso. Vamos andando.

Com um maravilhoso senso de orientacao, sem nunca hesitar no seu caminho, Jean me leva diretamente aos arredores do presidio dos chineses, onde nos chegamos quando a noite ja caiu ha umas duas horas. De longe ouvem-se uns disparos, nao se ve luz alguma. Jean explica que, para chegar mesmo perto do presidio, precisamos evitar um ou dois postos avancados. Resolvemos parar para passar a noite.

Estou morto de cansaco, tenho medo de pegar no sono. E se eu estiver enganado a respeito do negro? Se for um farsante e me tomar a espingarda enquanto eu estiver dormindo e me matar? Ele ganharia em dobro me matando: livra-se do perigo que represento para ele e recebe uma recompensa por matar um fujao.

E, ele e muito inteligente. Sem falar, sem esperar, deita para dormir. Tenho ainda minha corrente e o parafuso. Tenho receio de prende-lo, porque acho que ele pode desaparafusa-lo tao bem quanto eu e, agindo com precaucao, se eu estiver dormindo, nao vou perceber nada. Logo, vou tentar nao dormir. Tenho um maco inteiro de Gauloises. Vou fazer tudo para nao dormir. Nao posso confiar nesse homem, que, alem de tudo, e honesto, e naturalmente me considera um bandido.

A noite e completamente negra. Ele esta deitado a 2 metros de mim, eu so enxergo o branco da planta de seus pes nus. A floresta tem os ruidos caracteristicos da noite: ouco sempre o berro do macaco de papo grande, grito rouco e possante que se ouve a quilometros. E muito importante, pois se for regular e porque seu bando pode comer ou dormir tranquilo. Nao revela terror nem perigo, portanto nao ha animais ferozes nem homens fazendo a ronda.

Completamente tenso, aguento sem muito esforco o sono, ajudado por algumas queimaduras de cigarros e sobretudo por uma nuvem de mosquitos absolutamente decididos a me sugar todo o sangue. Poderia livrar-me deles passando saliva misturada com fumo. Se passar este suco de nicotina, fico livre dos mosquitos, mas sem eles sinto que vou pegar no sono. So posso esperar que esses mosquitos nao sejam portadores de malaria ou de febre amarela.

Aqui estou eu, saido, provisoriamente talvez, do caminho da podridao. Quando entrei nele, tinha 25 anos, em 1931. Estamos em 1941. Sao dez anos. Foi em 1932 que Pradel, o promotor sem coracao, conseguiu, por meio de um requisitorio impiedoso e desumano, jogar-me jovem e forte nesse poco que e a penitenciaria; fossa cheia de liquido visguento, que deveria me dissolver lentamente e me fazer desaparecer. Consegui, enfim, a primeira parte da fuga. Sai do fundo desse poco e estou na boca. Preciso mobilizar toda a minha energia e a minha inteligencia para ganhar a segunda parte.

A noite corre lentamente, mas vai passando e eu nao durmo. Nem larguei o fuzil. Fiquei tao acordado, ajudado pelas queimaduras e pelas picadas dos mosquitos,

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