repente, o dia desponta e ouve-se ao longe o ruido de um carro que avanca sobre a linha. Entramos no meio das arvores.
– Adeus, Jean, obrigado e boa sorte. Que Deus o abencoe, voce e sua familia.
Insisto para que ele aceite os 500 francos. Explicou-me, no caso de nao dar certo a coisa com Cuic-Cuic, como chegar ate a sua aldeia contorna-la e voltar pelo caminho onde eu o encontrei. Ele precisa passar por la duas vezes por semana. Aperto a mao deste nobre negro da Guiana e ele pula para a estrada.
– Para a frente – diz Van Hue, penetrando no mato.
Sem hesitar, orienta-se e nos avancamos bastante depressa, porque a floresta nao e impenetravel. Ele evita cortar com seu facao os galhos ou os cipos que o atrapalham; prefere afasta-los.
Em menos de tres horas, estamos diante de um charco de lama. Nenufares em flor e grandes folhas verdes estao presos no barro. Seguimos pela borda do banco de lama.
– Cuidado para nao escorregar, senao voce desaparece sem nenhuma esperanca de sair – adverte Van Hue, que acaba de me ver escorregar.
– Va indo, eu sigo voce e vou prestar mais atencao.
Na nossa frente, uma ilhota, a uns 150 metros. Do meio da minuscula ilha sai um pouco de fumaca. Deve ser da carvoaria. Vejo um jacare dentro do barro, so aparecem os olhos. Do que sera que se alimenta nesse barro o crocodilo?
Depois de andar mais de 1 quilometro pela margem dessa especie de lago de lama, Van Hue para e comeca a cantar em chines aos berros. Um sujeito se aproxima da borda da ilha. E baixo e veste somente um
– Nao vamos la – diz Van Hue.
Sigo-o, voltamos pelo mesmo caminho.
– Esta tudo bem, e um amigo de Cuic-Cuic. Cuic-Cuic foi cacar, nao vai demorar para voltar, precisamos esperar aqui.
Sentamos. Menos de uma hora depois, Cuic-Cuic chega. E um Sujeitinho seco, amarelo, com dentes muito polidos, olhos inteligentes e francos.
– Voce e amigo de meu irmao Chang?
– Sou.
– Esta bem. Voce pode partir,. Van Hue.
– Obrigado – diz Van Hue.
– Tome, leve essa perdiz.
– Nao, obrigado.
Aperta minha mao e vai embora.
Cuic-Cuic me leva atras de um porco que anda a sua frente. Ele o segue de perto.
– Preste bem atencao, Papillon. O menor passo em falso e voce afunda. Se acontecer um acidente, nao podemos nos ajudar um ao outro, porque entao nao e um, mas dois que desaparecem. O caminho para atravessar nunca e o mesmo porque a lama se mexe, mas o porco encontra sempre uma passagem. Uma vez tive que esperar dois dias para passar.
De fato, o porco preto fareja e rapidamente se embrenha na lama. O chines fala com ele na sua lingua. Fico desconcertado de ver esse animalzinho que lhe obedece como um cao. Cuic-Cuic observa e eu arregalo os olhos, assombrado. O porco chega do outro lado sem nunca afundar mais do que alguns centimetros. Rapidamente, meu novo amigo se embrenha por sua vez e diz:
– Ponha os pes nas marcas dos meus. Precisa andar bem depressa, porque os buracos que o porco deixou se apagam imediatamente.
Atravessamos sem dificuldade. Nunca cheguei a ficar com a lama acima da barriga da perna e, mesmo assim, so no final.
O porco fez dois desvios compridos, o que nos obrigou a andar em cima dessa crosta firme por mais de 200 metros. O suor escorre de todos os lados. Nao posso dizer que sentia somente medo, estava realmente aterrorizado.
Na primeira parte do trajeto, perguntava-me se meu destino queria que eu morresse como Sylvain. Tornava a ver o coitado no seu ultimo instante e, embora estivesse bem acordado, enxergava seu corpo, mas seu rosto parecia ter os meus tracos. Que impressao me produziu essa passagem! Nao vai ser facil esquece- la.
– De-me a mao.
Cuic-Cuic, o Sujeitinho que e so pele e osso, ajuda-me a pular na beirada.
– Bom, meu caro, nao vai ser aqui que os cacadores de homens vao procurar a gente.
– Ah, quanto a isso, pode ficar sossegado!
Penetramos na ilhota. Um cheiro de gas carbonico me pega a garganta. Tusso. E a fumaca das duas carvoarias que queimam. Aqui nao tem perigo de que venham os mosquitos. A sota-vento, envolvida na fumaca, uma choca, um casebre com telhado de folhas e as paredes tambem igualmente de folhas, trancadas como esteiras. Uma porta e, na frente dela, o pequeno chines que vi antes de Cuic-Cuic.
– Bom dia, sinho.
– Fale frances com ele e nao patoa, e um amigo de meu irmao.
O china, um homem de tamanho reduzido, me examina da cabeca aos pes. Satisfeito com sua inspecao, me estende a mao, sorrindo com uma boca desdentada.
– Entre, sente.
E limpo o unico comodo desse casebre. Alguma coisa cozinha no fogo, num caldeirao. So existe uma cama feita de galhos de arvores, a 1 metro do chao pelo menos.
– Ajude-me a fazer um lugar para ele dormir essa noite.
– Ta bom, Cuic-Cuic.
Em menos de meia hora, meu catre esta pronto. Os dois chineses poem a mesa e nos comemos uma sopa deliciosa, depois arroz com carne e cebolas.
O sujeito, amigo de Cuic-Cuic, e aquele que vende o carvao de lenha. Nao mora na ilha, por isso, quando escurece, ficamos sozinhos, Cuic-Cuic e eu.
– Pois e, roubei todos os patos do chefe do presidio e e por isso que fugi.
Com os nossos rostos iluminados por alguns instantes pelas chamas do pequeno fogo, sentamos um em frente ao outro. Examinamo-nos e, falando, cada um de nos procura conhecer e compreender o outro.
O rosto de Cuic-Cuic nao e bem amarelo. Com o sol, seu amarelo natural ficou cor de cobre. Seus olhos bastante obliquos, de um preto brilhante, olham bem de frente quando ele fala. Fuma uns cigarros compridos feitos por ele mesmo com folhas de fumo preto.
Eu continuo fumando um cigarro enrolado num papel de arroz que o maneta trouxe.
– Entao tive que fugir, porque o chefe, o dono dos patos, queria me matar, faz tres meses. O azar e que perdi no jogo, nao so o dinheiro dos patos, mas tambem o do carvao das duas carvoarias.
– Onde e que voce joga?
– No mato. Toda noite, tem o jogo dos chineses do presidio de Inini e dos libertos que vem de Cascade.
– Voce resolveu embarcar?
– Mal consigo aguentar a espera e, quando vendi o carvao de lenha, pensei em comprar um barco, em encontrar um sujeito que saiba lidar com ele e que queira ir comigo. Mas, em tres semanas, com a venda do carvao, a gente vai poder comprar o barco e ir embora, ja que voce sabe dirigir.
– Eu tenho algum dinheiro, Cuic-Cuic. Nao precisamos esperar a venda do carvao para comprar o barco.
– Entao esta bom. Existe um bom barco para vender por 1500 francos. E um negro, cortador de lenha, que vende.
– Bom, voce ja viu?
– Vi.
– Quero ver tambem.
– Amanha vou ver Chocolat, e o nome dele. Conte-me a sua fuga, Papillon. Achava que era impossivel fugir da Ilha do Diabo. por que e que meu irmao nao saiu com voce?
Falo da fuga, da onda Lisette, da morte de Sylvain.
– Entendi por que Chang nao quis partir com voce. E mesmo arriscado. Voce e um homem privilegiado pela sorte, e por isso que conseguiu chegar vivo ate aqui. Fico contente,
Ha mais de tres horas que eu e Cuic-Cuic conversamos. Dormimos cedo, porque ele quer ir de madrugada procurar Chocolat. Depois de colocar um galho enorme no fogo para durar a noite toda, deitamos. A fumaca me faz tossir e me fecha a garganta, mas tem uma vantagem: nem um mosquito.
Esticado no meu catre, coberto com uma boa coberta, bem quentinho, fecho os olhos. Nao consigo pegar no sono. Estou excitado demais. E, a fuga esta indo bem. Se o barco for bom, antes de oito dias estou no mar. Cuic-Cuic e baixo, seco, mas deve ter uma forca fora do comum e uma resistencia a toda prova. Com certeza e honesto e correto com seus amigos, mas deve ser tambem muito cruel com seus inimigos. E dificil ler o rosto de um asiatico, nao exprime nada. Todavia, seus olhos depoem a seu favor.
Adormeco e sonho com um mar banhado de sol, meu barco vencendo alegremente as ondas, no caminho da liberdade.
– Quer cafe ou cha?
– O que e que voce esta tomando?
– Cha.
– Quero cha.
O dia esta nascendo, o fogo ficou aceso desde ontem, a agua ferve numa panela. Um galo canta seu alegre cocoroco. Os passaros nao cantam a nossa volta, com certeza a fumaca das carvoarias os espanta. O porco preto esta deitado embaixo da cama de Cuic-Cuic. Deve ser um preguicoso, porque continua dormindo. Uns