biscoitos feitos de farinha de arroz assam na brasa. Depois de me servir de cha, meu amigo corta pela metade um biscoito, besunta-o de margarina e da para mim. Comemos bastante. Como tres biscoitos bem assados.
– Vou sair, acompanhe-me. Se alguem gritar ou assobiar, nao responda. Nao tem perigo, ninguem consegue vir aqui. Mas, se voce aparecer na beira da lama, podem matar voce com um tiro de fuzil.
O porco se levanta aos gritos de seu dono. Come e bebe, depois sai, nos vamos atras dele. Vai direto pela areia adentro. Bastante longe do lugar de onde viemos ontem, desce. Depois de andar uns 10 metros, volta. Nao gostou da passagem. Depois de tres tentativas, consegue passar. Cuic-Cuic, imediatamente e sem susto, percorre a distancia ate a terra firme.
Cuic-Cuic vai voltar so a noitinha. Comi sozinho a sopa que ele colocou no fogo. Depois de apanhar oito ovos no galinheiro, fiz uma pequena omeleta de tres ovos com margarina. O vento mudou de direcao e a fumaca das duas carvoarias na frente da cabana se dirige para o outro lado. Ao abrigo da chuva que caiu a tarde, deitado calmamente na minha cama de madeira, nao fui incomodado pelo gas carbonico.
De manha, dei uma volta na ilha. Quase no centro, ha uma clareira bastante grande. As arvores caidas e a lenha cortada indicam que e dali que Cuic-Cuic tira a lenha para fazer carvao. Vejo tambem um monte enorme de argila branca, de onde ele tira certamente a terra necessaria para cobrir a lenha, para que ela se queime sem chama. As galinhas vao ciscar na clareira. Um rato enorme foge debaixo dos meus pes e, uns metros mais alem, encontro uma cobra morta de uns 2 metros de comprimento. Sem duvida foi o rato que acabou de mata-la.
Durante todo esse dia passado sozinho na ilhota, fiz uma serie de descobertas. Por exemplo, encontrei uma familia de tamanduas. A mae e tres filhotes. Um enorme formigueiro estava em revolucao a volta deles. Uns dez macacos minusculos pulam de arvore em arvore na clareira. A minha chegada, os saguis gritam de partir o coracao.
Cuic-Cuic volta a tardinha.
– Nao vi Chocolat nem o barco. Ele teve que procurar mantimentos em Cascade, a aldeia onde fica a casa dele. Voce comeu bem?
– Comi.
– Quer mais?
– Nao.
– Trouxe dois pacotes de fumo pardo, e fumo grosso, de soldado, mas so tinha esse.
– Obrigado, tanto faz. Quando Chocolat sai, quanto tempo fica na aldeia?
– Dois ou tres dias, mas eu vou amanha mesmo e pretendo insistir todos os dias, porque nao sei quando ele foi.
No dia seguinte, cai uma chuva torrencial. Mesmo assim, Cuic-Cuic parte, nu em pelo. Carrega suas roupas debaixo do braco, embrulhadas num plastico. Nao o acompanho.
– Nao vale a pena voce se molhar – ele me diz.
A chuva acabou. Pelo sol, deve ser entre 10 e 11 horas. Uma das duas carvoarias, a segunda, desmoronou com a violencia da chuva. Aproximo-me para ver o desastre. O diluvio nao conseguiu apagar completamente a lenha. Ainda sai fumaca do monte disforme. De repente, esfrego os olhos antes de olhar de novo, tao inesperado e o que estou enxergando: cinco sapatos se destacam da carvoaria. Percebo em seguida que estes sapatos estao, cada um, acompanhados de um pe e uma perna. Entao, ha pelo menos tres homens assando dentro da carvoaria. Nem preciso descrever minha primeira reacao: da um certo arrepio nas costas descobrir uma coisa dessas. Debruco-me e, empurrando com o pe um pouco de carvao de lenha meio calcinado, descubro o sexto pe.
O Cuic-Cuic e fogo: ele incinera em serie os caras que ele liquida. Fico tao impressionado, que logo me afasto da carvoaria e vou ate a clareira para apanhar um pouco de sol. Preciso de calor. Pois e, nessa temperatura sufocante, de repente sinto frio e tenho necessidade de um raio do bom sol dos tropicos.
Ao ler isso, vao pensar que e ilogico, que eu devia suar depois de uma descoberta semelhante. Bom, nao suo: estou enregelado de frio, congelado moral e fisicamente. So muito tempo depois, mais de uma hora, as gotas de suor comecam a escorrer da minha testa, porque, quanto mais penso, mais me convenco de que, depois de falar para ele que eu tinha bastante dinheiro no canudo, e um milagre se ainda estou vivo. Ou sera que ele esta me guardando para me colocar numa terceira carvoaria?
Lembro-me de que seu irmao Chang me contou que ele foi condenado por pirataria e assassinato a bordo de um junco. Quando eles atacavam um navio para pilha-lo, suprimiam toda a familia, em nome de razoes politicas. Sao sujeitos ja acostumados aos assassinatos em serie. Por outro lado, eu estou prisioneiro aqui. E uma situacao tremenda.
Vejamos, vamos fazer os calculos. Se eu matar Cuic-Cuic na ilhota e o colocar tambem na carvoaria, ninguem vai saber de nada.
Mas o porco nao vai me obedecer, nao entende nem frances, esse desgracado desse porco manso. Entao, nada de sair da ilha. Se eu capturar o china, ele vai me obedecer, mas, depois de obriga-lo a me tirar da ilha, vou precisar mata-lo em terra firme. Se eu o jogar dentro da areia, vai desaparecer, mas deve haver uma razao para ele queimar os caras e nao joga-los dentro da areia como seria mais facil. Pelos guardas, nem me incomodo; mas, se os chineses amigos dele descobrem que o matei, vao se transformar em cacadores de homens e, com seu conhecimento do mato, vai ser fogo ter os caras na traseira.
Cuic-Cuic tem so um fuzil de um cano, desses que sao carregados pela boca. Nunca larga ele, nem para fazer a sopa. Dorme com ele e o carrega ate quando se afasta da cabana para ir a latrina. Preciso estar sempre com a minha faca pronta, mas preciso tambem dormir. Bom, e eu que o escolhi como socio para fugir!
Nao comi o dia todo. Ainda nao tomei uma decisao, quando ouco cantarem. E Cuic-Cuic que vem voltando. Escondido atras dos galhos, vejo-o chegar. Carrega um pacote na cabeca e so quando ele esta bem perto da margem e que eu apareco. Sorrindo, ele me passa o fardo enrolado num saco de farinha, pula ao meu lado e rapido dirige-se para o casebre. Vou atras dele.
– Boas noticias, Papillon, Chocolat voltou. Tem ainda o barco. Diz que pode levar uma carga de mais de 500 quilos sem afundar. O que voce esta levando ai sao sacos de farinha para fazer a vela e um cutelo. E a primeira carga. Amanha vamos levar os outros, porque voce ira comigo para ver se o barco serve.
Tudo isso, Cuic-Cuic explica sem se virar. Caminhamos enfileirados: primeiro o porco, depois ele e em seguida eu. Penso rapidamente que ele nao parece ter planejado me torrar na carvoaria, ja que amanha vai me levar para ver o barco e comeca a fazer despesas para a fuga. Comprou
– Olhe, uma carvoaria despencou. Foi a chuva, sem duvida. Caiu um tamanho pe-d’agua, que nao e de espantar.
Nao vai nem ver a carvoaria e entra direto na cabana. Nao sei mais o que dizer, nem que decisao tomar. Fazer de conta que nao vi nada e pouco aceitavel. Pode parecer estranho que durante o dia todo eu nao tenha chegado perto da carvoaria, que fica a 25 metros da cabana.
– Voce deixou apagar o fogo?
– Deixei, nao reparei.
– Mas voce nao comeu?
– Nao, nao estava com fome.
– Esta doente?
– Nao.
– Entao, por que e que nao comeu a sopa?
– Cuic-Cuic, sente-se, preciso falar com voce.
– Espere eu acender o fogo.
– Nao. Quero falar com voce ja, enquanto ainda e dia.
– O que que tem?
– Tem que a carvoaria despencou e, quando isso aconteceu, apareceram tres homens que voce estava assando la dentro. Quero uma explicacao.
– Ah, e por isso que eu estava achando voce esquisito!
E, sem se emocionar nem um pouquinho, olha bem para mim:
– Depois desta descoberta, voce nao ficou sossegado. Eu compreendo voce, e natural. Tive ate muita sorte de voce nao ter me esfaqueado pelas costas. Escute, Papillon, esses tres sujeitos eram tres cacadores de homens. Bom, faz uma semana, ou dez dias, eu vendi uma boa quantidade de carvao para Chocolat. O chines que voce viu me ajudou a tirar os sacos da ilha. E uma historia complicada: com uma corda de mais de 200 metros, puxamos uma fileira de sacos, que deslizam na lama. Enfim, dai ate um riacho onde estava a barca de Chocolat, deixamos um bocado de marcas. Uns sacos meio arrebentados deixaram cair uns pedacos de carvao. Foi entao que o primeiro cacador de homens comecou a rodear. Pelos gritos dos bichos, percebi que tinha alguem no mato. Vi o sujeito sem que ele me visse. Atravessar do lado oposto onde ele estava e surpreende-lo por tras nao foi dificil. Morreu sem mesmo ver quem o matou. Eu sabia que a lama devolve os cadaveres, que, depois de afundar, voltam a superficie no fim de alguns dias; entao, eu o trouxe para ca e o botei na carvoaria.
– E os outros dois?
– Foi tres dias antes de voce chegar. A noite era escurissima e silenciosa, o que e muito raro na floresta. Aqueles dois estavam em volta do brejo desde o anoitecer. Um deles, quando a fumaca ia na sua direcao, tinha as vezes acessos de tosse. Foi esse ruido de tosse que me anunciou a presenca dele. Antes do amanhecer, tentei passar pela lama do lado oposto ao local onde eu tinha percebido a tosse. Para encurtar a historia, vou lhe dizer que degolei o primeiro cacador de homens. Nao teve tempo nem de gritar. O outro, armado com um fuzil de caca, estava tao empenhado em espiar atraves da vegetacao da ilha para ver o que que se passava la dentro, que se descobriu. Derrubei ele com um tiro de espingarda e, como nao estava morto, enterrei minha faca no coracao dele. Sao esses, Papillon, os tres caras que voce descobriu na carvoaria. Eram dois arabes e um frances. Atravessar a lama com um deles nas costas nao foi facil. Tive que dar duas viagens porque pesavam demais. Enfim, consegui coloca-los na carvoaria.
– Foi isso mesmo que aconteceu?
– Foi, Papillon, juro.
– Por que e que voce nao botou eles na areia?
– Ja falei para voce, a lama devolve os cadaveres. As vezes caem la dentro uns veados grandes e uma semana depois sobem a superficie. A gente sente o cheiro de carne podre ate que os corvos os devoram. Logo, seus gritos e voos chamam a atencao dos curiosos, Papillon, eu juro, comigo voce nao precisa ter medo de nada. Tome, para voce ter mais certeza, pegue o fuzil se quiser. Pode ficar com ele.
Tenho uma vontade louca de aceitar a arma, mas me domino e o mais naturalmente possivel digo:
– Nao, Cuic-Cuic. Se estou aqui, e porque me sinto com um amigo, em seguranca. Amanha, voce precisa queimar os sapatos dos homens, pois nao sabemos o que pode acontecer quando a gente for embora daqui. Nao estou com vontade de ser acusado, mesmo ausente, de tres assassinatos.
– Ta, vou tornar a queima-los amanha. Mas fique sossegado, nunca ninguem vai botar os pes nesta ilha. E impossivel passar sem afundar.