gritos das aves pernaltas. Eu estou mais ou menos a 500 metros da floresta, e Sylvain a 100 ou 150 metros de mim, na minha frente. Mas o que e que esta fazendo esta grande besta? Esta de pe e abandonou a jangada. Esta louco? Ele nao pode andar, senao vai afundar um pouco a cada passo e talvez nao consiga mais voltar ate a jangada. Quero assobiar, nao posso. Tenho ainda um pouco de agua, esvazio a bolsa, depois tento gritar para ele parar. Nao consigo emitir nenhum som. Da lama saem algumas bolhas de gas, e apenas uma crosta fina, embaixo esta o lodo, e o sujeito que se deixar apanhar esta mesmo frito.
Sylvain vira de novo para mim, me olha e faz sinais que nao compreendo. Eu faco grandes gestos para ele, querendo dizer: nao, nao, nao se mova da jangada, voce nunca vai chegar ate a floresta! Como esta atras dos seus sacos de cocos, nao sei se esta perto ou longe da jangada. No comeco penso que deve estar bastante perto e que, no caso de afundar, ele pode se pendurar nela.
De repente, percebo que ele se afastou bastante e que esta afundado na lama sem poder se desgrudar e voltar para a jangada. Um grito chega ate onde estou. Entao, deito-me de bruco sobre meus sacos e afundo as maos na areia, puxando com todas as minhas forcas. Os sacos avancam e eu chego a deslizar mais de 20 metros. E entao que, andando em linha obliqua a esquerda, quando me ponho de pe, vejo, sem ser mais atrapalhado pelos sacos, meu companheiro, meu amigo, enterrado ate a barriga. Esta a mais de 10 metros de sua jangada. O terror me devolve a voz e eu grito: “Sylvain! Sylvain! Nao se mexa, deite na areia! Se puder, solte as pernas!” O vento leva as minhas palavras e ele as compreende. Abaixa e levanta a cabeca para dizer sim. Fico de novo de brucos e arranco a lama fazendo deslizar os sacos. A raiva me da forcas sobre-humanas e bastante rapidamente avanco na sua direcao mais de 30 metros. Demorei mais de uma hora certamente, mas estou bastante perto dele, talvez a 50 ou 60 metros. Enxergo mal.
Sentado, com as maos, os bracos, o rosto cheio de lodo, tento enxugar o olho esquerdo, pois entrou lama salgada que arde e me impede de ver, nao so desse olho, mas tambem do outro, do direito. Para ajudar, meu olho direito comeca a chorar. Enfim, vejo-o; nao esta mais deitado, esta de pe, so o seu peito se ergue acima da lama.
A primeira onda acaba de passar. Pulou por cima de mim, sem todavia me desgrudar, e foi se espalhar mais longe, cobrindo a areia com sua espuma. Passou tambem por cima de Sylvain, que esta ainda com o peito de fora. Rapidamente penso: “Mais as ondas vao chegando, mais a lama vai ficar mole. Preciso chegar ate ele, custe o que custar”.
Uma energia de animal que vai perder sua cria apodera-se de mim e, como uma mae que quer arrancar seu filho do perigo iminente, puxo, puxo, puxo sobre esta lama para chegar ate ele. Ele me olha sem uma palavra, sem um gesto, seus olhos grudados nos meus, que o devoram. Meus olhos cravados nele so se preocupam de nao largar seu olhar e se desinteressam completamente de ver onde afundo as maos. Arrasto-me um pouco, mas, por causa de duas outras ondas que passaram em cima de mim, cobrindo-me completamente, a areia ficou menos consistente e eu avanco muito menos rapidamente do que uma hora atras. Uma onda enorme acaba de passar, quase me afogou e quase me desprendeu. Sento para ver melhor. Sylvain esta na lama ate as axilas. Estou a menos de 40 metros dele. Ele me olha intensamente. Percebo que ele sabe que vai morrer, afundado la dentro, como um pobre imbecil, a 300 metros da terra prometida.
Torno a deitar e a arrancar esta lama que agora esta quase liquida. Meus olhos e os seus estao fixos uns nos outros. Ele me faz sinal como para dizer que eu nao insista, para nao fazer mais esforcos. Continuo, mesmo assim, e estou a menos de 30 metros quando chega uma onda grande que me cobre com sua massa de agua e quase me arranca dos sacos, que, desprendendo-se, avancam 5 ou 6 metros.
Quando a onda passa, olho. Sylvain desapareceu. A lama, recoberta de uma leve camada de agua espumosa, esta completamente lisa. Nem mesmo a mao do meu pobre amigo aparece para me dar um ultimo adeus. Minha reacao e horrivelmente bestial, repugnante, o instinto de conservacao acaba com qualquer sentimento: “Voce esta vivo. Voce esta sozinho e quando estiver no mato, sem amigo, nao vai ser mole conseguir fugir”.
Uma onda que se quebra nas minhas costas, porque estou sentado, chama-me a ordem. Dobrou-me em dois e o golpe foi tao forte, que perco a respiracao durante alguns minutos. A jangada desliza ainda alguns metros e somente entao, olhando a onda morrer perto das arvores, choro Sylvain: “Estavamos tao perto! Se voce nao tivesse se movido… A menos de 300 metros das arvores! Por que? Mas, me diga, por que voce fez uma besteira dessa? Como voce podia supor que essa crosta seca era bastante firme para permitir que voce chegasse a pe ate a costa? O sol? A reverberacao? O que sei eu? Voce nao conseguia mais resistir a esse inferno? Diga-me por que um homem como voce nao conseguiu aguentar assar-se algumas horas mais?
As marolas se sucedem sem parar com um barulho de trovoada. Chegam cada vez mais proximas umas as outras e sempre maiores. Toda vez fico inteiramente coberto e toda vez deslizo mais alguns metros, sempre sobre a lama. La pelas 5 horas, as marolas se transformam de repente em ondas, eu desencalho e flutuo. As ondas, agora, quase nao fazem barulho. A trovoada das marolas acabou. O saco de Sylvain ja entrou no meio da vegetacao.
Chego, nao muito depressa, e sou depositado a apenas 20 metros da floresta virgem. Quando a onda se retira, estou de novo a seco, sobre a areia, e plenamente resolvido a nao me mexer de meu saco ate ter um galho ou um cipo nas maos. Uns 20 metros. Levo mais de uma hora antes de chegar a um lugar bastante fundo e ser novamente levantado e levado para dentro do mato. A onda que me empurrou, rugindo, me jogou sobre as arvores. Solto o parafuso e me livro da corrente. Nao vou joga-la fora, pode ser que eu precise dela.
Rapido, antes que o sol se ponha, penetro no mato meio nadando, meio caminhando, porque la tambem ha lama que suga a gente. A agua penetra muito longe dentro do mato e, quando a noite cai, eu ainda nao estou no seco. Um cheiro de podre chega ate o meu nariz e tem tanto gas que meus olhos ardem. Estou com as pernas cheias de capim e folhas. Ainda empurro o saco de cocos. Cada vez que dou um passo, meus pes apalpam antes o terreno debaixo da agua, e e so quando este nao afunda que vou em frente.
Passo minha primeira noite em cima de uma grande arvore caida. Um monte de bichos passa em cima de mim. Meu corpo arde e queima. Acabo de colocar a malha, depois de amarrar bem o saco de cocos, que puxei para cima da arvore e prendi dos dois lados. Nos sacos esta a vida, porque os cocos abertos me permitirao comer e aguentar o rojao. Meu facao esta preso ao pulso direito. Estico-me, esgotado, em cima da arvore, no ponto onde dois galhos formam uma especie de nicho grande, e adormeco antes de ter tempo de pensar em nada. Talvez tenha murmurado duas ou tres vezes “Pobre Sylvain!”, antes de cair no sono como uma pedra.
Sao os gritos dos passaros que me acordam. O sol penetra muito longe dentro da floresta, chega horizontalmente; deve ser entao 7 ou 8 da manha. Em volta de mim esta cheio de agua, o mar deve estar na montante. E, talvez, o fim da decima mare.
Sessenta horas desde que sai da Ilha do Diabo. Nao percebo se estou longe do mar. De qualquer maneira, vou esperar que a agua se retire, para ir a beira do mar secar-me e tomar um pouco de sol. Nao tenho mais agua doce. Restam ainda tres punhados de polpa de coco, que como deliciado; passo um pouco de coco tambem sobre minhas feridas. A polpa, gracas ao oleo que contem, abranda minhas queimaduras. Depois fumo dois cigarros. Penso em Sylvain, desta vez sem egoismo. Antes de tudo, sera que eu nao devia ter fugido sem um amigo? Eu tinha mesmo a pretensao de me safar sozinho. Entao, nada esta mudado, so uma grande tristeza aperta o meu coracao e eu fecho os olhos, como se isso pudesse me impedir de ver a cena do afundamento do meu pobre amigo. Para ele, esta tudo acabado.
Firmei bem os sacos dentro do nicho e comeco a tirar um coco. Consigo descascar dois, batendo-os com todas as minhas forcas contra a arvore, no meio das pernas. Preciso bater na ponta, para que a casca se abra. E melhor do que com o facao. Como um coco fresco inteirinho e bebo o pouco de agua muito acucarada que ele contem. Rapidamente, o mar se retira e posso andar na areia com facilidade e chegar ate a praia.
O sol esta brilhante e o mar de uma beleza sem igual. Demoradamente olho para o lugar onde suponho que Sylvain desapareceu. Minhas roupas ficam secas depressa e tambem meu corpo, que lavei com agua salgada tirada de um buraco. Fumo um cigarro. Ainda um ultimo olhar para o tumulo do meu amigo e entro na floresta, caminhando sem muita dificuldade. Com o saco em cima do ombro, lentamente, vou me enfiando debaixo das arvores. Em menos de duas horas encontro finalmente um terreno que nunca fica inundado. Nenhuma marca aos pes das arvores, para indicar que a mare chega ate aqui. Vou acampar aqui e descansar bem durante 24 horas. Vou abrir os cocos aos poucos, retirar a polpa para coloca-la toda dentro do saco, pronta para eu comer quando quiser. Posso acender um fogo, mas acho que nao e prudente.
O resto do dia e da noite se passou sem historias. O barulho dos passaros me acorda ao nascer do sol. Acabo de tirar a polpa dos cocos e, com uma pequena trouxa no ombro, dirijo-me para o oeste.
La pelas 3 da tarde encontro uma picada. E um caminho de apanhadores de borracha natural, madeireiros ou fornecedores dos garimpeiros. A picada e estreita mas limpa, sem galhos atravessados, deve ser usada continuamente. De vez em quando, algumas pegadas de burro ou de mula sem ferradura. Em alguns buracos de barro seco, percebo marcas de pes de homem, o dedao distintamente moldado na lama. Resolvo caminhar ate anoitecer. Vou mascando coco, isso me alimenta e ao mesmo tempo tira a sede. Algumas vezes, com esta mistura bem mastigada, cheia de oleo e de saliva, esfrego o nariz, os labios e o rosto. Meus olhos ficam muitas vezes colados e estao cheios de pus. Assim que puder, vou lava-los com agua doce. No saco, junto com os cocos, eu tinha uma caixa vedada com um pedaco de sabonete, um aparelho de barbear Gillette, doze laminas e um pincel. Recuperei-a intata.
Caminho com o facao na mao, mas nao preciso usa-lo porque o caminho esta livre de obstaculos. Percebo ate, nas beiradas, cortes recentes de galhos. Por esse caminho passa gente, preciso ir com cuidado.
A floresta nao e a mesma que eu conheci na minha primeira fuga, a de Saint-Laurent-du-Maroni. Essa tem duas camadas e nao e tao cerrada como a do Maroni. A primeira vegetacao vai ate 5 ou 6 metros de altura e, mais para cima, a abobada da floresta fica a mais de 20 metros. E dia so do lado direito do caminho. Do lado esquerdo, e quase noite.
Caminho rapidamente, as vezes encontro alguma clareira, formada por um incendio provocado pelo homem ou por um raio. Percebo alguns raios de sol. Sua inclinacao mostra que nao esta muito longe de se por. Dou-lhe as costas, dirigindo-me para o leste, em direcao a aldeia dos negros de Kourou ou a penitenciaria do mesmo nome.
De repente, e noite. Nao posso andar de noite. Vou entrar na floresta e procurar um lugar para me deitar.
A mais de 30 metros da picada, bem abrigado debaixo das folhas lisas de uma especie de bananeira, deito em cima de um montao dessas folhas, que cortei com o facao. Vou dormir imediatamente, no seco, e tenho sorte de nao estar chovendo. Fumo dois cigarros.
Nao estou muito cansado nesta noite. O coco me sustenta. So a sede seca minha boca e nao consigo ter saliva facilmente.
A segunda parte da fuga comecou e esta e a terceira noite que passei sem incidentes desagradaveis na Terra Grande.
Ah, se Sylvain estivesse aqui comigo! Nao esta, meu caro Papillon, o que e que voce pode fazer? Para agir, voce nunca na vida precisou de alguem que lhe desse conselho ou apoio. Voce e homem ou nao e? Nao seja besta, Papillon, apesar do desgosto natural pela perda de seu amigo, apesar de estar sozinho no mato, voce nao deixa de ser forte. Estao muito longe os caras de Royale, Saint-Joseph e da Ilha do Diabo, ha seis dias que voce os deixou. Kourou deve estar informada. Os guardas do presidio dos estrangeiros, os negros da aldeia, todos ja devem saber. Deve haver um posto de policia ali tambem. Sera conveniente ir ate a aldeia? Nao conheco nada dos arredores. O presidio fica entre a aldeia e o rio. E tudo o que sei de Kourou.
Em Royale, tinha pensado em agarrar o primeiro cara que aparecesse e obriga-lo a me levar as proximidades do presidio de Inini, onde se encontram os chineses