pescoco.
Sinto uma angustia horrivel que procuro afastar com toda a minha energia. Sera que vou dormir? E, se cair na agua, o frio vai me acordar? Fiz bem de me prender de novo com a corrente. Nao posso perder esses dois sacos, eles sao a minha vida. Vai ser mesmo o diabo se, ao cair na agua, eu nao acordar mais.
Depois de alguns minutos estou de novo todo molhado. Uma onda rebelde, que com certeza nao queria seguir na direcao normal das outras, veio chocar em mim do lado direito. Nao so ela me molhou mas ainda me jogou de atravessado, e duas outras ondas normais me cobriram completamente, da cabeca aos pes.
A segunda noite esta bem adiantada. Que horas poderao ser? Pela posicao da lua, que comeca a descer a oeste, devem ser mais ou menos 2 ou 3 horas da manha. Ha cinco mares, trinta horas, que estamos na agua. Ficar molhado ate os ossos me serve para alguma coisa: o frio me acordou completamente. Estou tiritando, mas conservo os olhos arregalados sem esforco. As pernas ficam endurecidas e resolvo dobra-las, colocando os pes debaixo das nadegas. Levantando-me com as duas maos, uma de cada vez, consigo sentar-me em cima das pernas. Os dedos dos pes estao gelados, quem sabe se agora vao esquentar.
Fico bastante tempo assim, sentado com as pernas cruzadas. Mudar de posicao me fez bem. Tento ver Sylvain, pois a lua ilumina bastante o mar. So que ela ja desceu e, com ela de frente, nao consigo distinguir direito. Nao, nao enxergo nada. Ele nao tinha nada para se amarrar aos sacos, sera que esta ainda em cima deles? Procuro por ele desesperadamente, e inutil. O vento esta forte, mas e regular, nao muda de repente, e isto e muito importante. Acostumei-me com seu ritmo e meu corpo forma um so volume com os sacos.
De tanto procurar em volta, so tenho uma ideia fixa na cabeca: ver meu companheiro. Seco os dedos no vento e assobio com todas as minhas forcas, com os dedos na boca, Escuto. Ninguem responde. Sera que Sylvain sabe assobiar com os dedos? Nao sei. Devia perguntar para ele antes de partir. Podiamos ate fazer dois apitos. Reprovo-me por nao ter pensado nisso. Depois coloco as duas maos diante da boca e grito: “Hu-Hu!” So o barulho do vento me responde e o chua-chua das ondas.
Entao, sem me importar mais, levanto-me e, de pe em cima dos sacos, levantando a corrente com a mao esquerda, fico me equilibrando enquanto cinco ondas me carregam na sua crista. Quando chego la em cima fico completamente de pe e, para descer e tornar a subir, fico agachado. Nada a direita, nada a esquerda, nada pela frente. Sera que ele esta atras de mim? Nao tenho coragem de ficar de pe e olhar para tras. A unica coisa que tenho a impressao de ter visto, sem nenhuma duvida, e uma linha preta marcada nesta noite de lua. Com certeza e a floresta.
De dia vou ver as arvores, isso me faz bem. “De dia, voce vai ver a floresta, Papi! Se Deus quiser, voce vai ver tambem seu companheiro!”
Estiquei de novo as pernas depois de ter esfregado os dedos dos pes. Depois resolvo secar as maos e fumar um cigarro. Fumo dois. Que horas serao? A lua esta bastante baixa. Nao lembro mais em quanto tempo antes do nascer do sol ela desapareceu na noite passada. Tento me lembrar com os olhos fechados, recordando as imagens da primeira noite. Inutil. Ah, e! De repente vejo claramente o sol levantar-se a leste e, ao mesmo tempo, uma ponta da lua ainda visivel na linha do horizonte, a oeste. Entao, devem ser quase 5 horas. A lua e bastante vagarosa para cair no mar. O Cruzeiro do Sul desapareceu ha muito tempo, a Ursa Maior e a Ursa Menor tambem. Somente a estrela Polar brilha mais que todas as outras. Depois que o Cruzeiro do Sul sumiu, a Polar e a rainha do ceu.
O vento parece aumentar. Pelo menos esta mais denso, por assim dizer, do que durante a noite. Agora, as ondas estao mais fortes e mais profundas; e, na sua crista, a espuma branca e maior do que no comeco da noite.
Ha trinta horas que estou no mar. Preciso reconhecer que, por enquanto, as coisas vao mais bem do que mal e que o dia mais duro vai ser o que comeca.
Ontem, por ter ficado exposto diretamente ao sol das 6 da manha as 6 da noite, fiquei tremendamente cozido e assado. Hoje, com o sol batendo de novo em cima de mim, nao vai ser facil atravessar o dia. Meus labios ja estao rachados e, no entanto, estou ainda no frescor da noite. Ardem tanto quanto os olhos. Os bracos e as maos, a mesma coisa. Se puder, nao vou descobrir os bracos. Se for possivel aguentar a malha de la, vou ficar vestido com ela. O que me arde terrivelmente, tambem, e entre as coxas e o anus. Nesse lugar, nao e por causa do sol, mas da agua salgada e da friccao em cima dos sacos.
De qualquer maneira, meu caro, queimado ou nao, voce esta fugindo e, para estar onde esta, vale bem a pena aguentar isto e muito mais. As perspectivas de chegar vivo na Terra Grande sao 90 por cento positivas e isto e alguma coisa, e ou nao e? Nem que eu chegue completamente esfolado e vivo pela metade, nao e preco caro por uma viagem dessas e um resultado desses. Imagine que nao vi um unico tubarao. Estao todos de ferias? Voce nao pode negar que e um cara de muita sorte. Desta vez, voce vai ver, vai dar certo. De todas as fugas muito estudadas, muito preparadas, afinal, a fuga bem sucedida vai ser a mais idiota. Dois sacos de cocos e depois o vento e o mar levam voce. Nao precisa sair de Saint-Cyr para saber que todo destroco volta para a praia.
Se o vento e as ondas continuarem durante o dia com a mesma forca desta noite, com certeza vamos chegar a terra durante a tarde.
O monstro dos tropicos surge atras de mim. Parece bastante decidido a torrar tudo hoje, porque sai com todo o fogo. Ele expulsa a noite de lua em dois tempos. Nao espera nem sair completamente de seu leito, para ja se impor como o dono, o rei indiscutivel dos tropicos. O vento num instante ja ficou quase morno. Em uma hora vai fazer calor. Uma primeira sensacao de bem-estar se desprende de todo o meu corpo. Mal os primeiros raios me tocam, um doce calor me percorre da cintura ate a cabeca. Levanto a toalha feito um capuz, expondo o rosto ao sol, como se estivesse diante de um fogo de lenha. O monstro, antes de me queimar, quer me fazer sentir que ele e a vida antes de ser a morte.
O sangue corre fluido nas minhas veias e ate minhas coxas molhadas sentem a circulacao deste sangue vivificador.
Vejo claramente a floresta, o topo das arvores. Tenho a impressao de que nao esta muito longe. Vou esperar que o sol suba mais um pouco, para ficar de pe em cima dos sacos e ver se consigo enxergar Sylvain.
Em menos de uma hora, o sol ja esta alto. E, vai fazer calor, diabo! Meu olho esquerdo esta meio fechado e grudado. Pego um pouco de agua nas maos em concha e esfrego. Arde. Tiro a malha: fico de peito nu alguns instantes antes que o sol me queime demais.
Uma onda mais forte que as outras me carrega por baixo e me leva bem para o alto. Na hora em que ela engrossa, antes de descer, vejo meu amigo por um segundo. Esta sentado de peito nu sobre sua jangada. Nao me viu: Esta a menos de 200 metros de mim, um pouquinho para a frente, a esquerda. O vento esta sempre forte e, para me aproximar dele, que esta a minha frente, quase que na mesma linha, resolvo enfiar a malha so nos bracos, levanta-los no ar e segurar a parte de baixo com a boca. Certamente este tipo de vela vai me empurrar mais rapido do que ele.
Mantenho a vela durante cerca de meia hora. Mas a malha me machuca os dentes e as forcas que preciso gastar para resistir ao vento me esgotam depressa demais. Quando paro, contudo, tenho a sensacao de ter andado mais rapidamente do que se tivesse me deixado carregar pelas ondas.
Hurra! Acabei de ver o meu amigo. Esta a menos de 100 metros. Mas o que e que esta fazendo? Nao parece estar preocupado em saber onde estou. Quando outra onda me levanta bastante, torno a ve-lo uma, duas, tres vezes. Notei distintamente que ele estava com a mao direita sobre os olhos, observando o mar. Olhe para tras, seu idiota! Deve ter olhado para o meu lado, de certo, mas nao conseguiu me ver.
Fico de pe e assobio. Subindo do fundo da onda, vejo Sylvain de pe na minha frente. Levanta a malha no ar. Dissemo-nos bom dia pelo menos umas vinte vezes antes de tornar a sentar. Cada onda que sobe, acenamos um para o outro; e por sorte ele sobe ao mesmo tempo que eu. Nas duas ultimas ondas, ele estende os bracos em direcao a floresta, que agora podemos distinguir muito bem. Estamos a menos de 10 quilometros. Perdi o equilibrio e cai em cima da jangada. Ao ver meu camarada e a mata tao proxima, uma alegria imensa me invade, uma emocao tao grande, que choro como uma crianca. Nas lagrimas que limpam meus olhos purulentos, vejo mil cristais de todas as cores e penso bestamente: parecem os cristais de uma igreja. Deus esta com voce hoje, Papi. E no meio dos elementos monstruosos da natureza, o vento, a imensidao do mar, a profundeza das ondas, a abobada verde imponente da floresta, que a gente se sente infinitamente pequeno relativamente a tudo que nos cerca e, talvez, sem procura-lo, encontramos Deus, tocamos nele. Assim como o sentia de noite nas mil horas que passei nas masmorras lugubres onde estava enterrado vivo sem um raio de luz, toco nele hoje, neste sol que se levanta para devorar aquilo que nao tem forca suficiente para suporta-lo, toco realmente em Deus, sinto-o em volta de mim, dentro de mim. Ele sussurra mesmo no meu ouvido: “Voce sofre e vai sofrer mais ainda, mas desta vez resolvi ficar com voce. Voce sera livre e vencera, prometo”.
Nunca ter recebido instrucao religiosa, nao conhecer o
O sol subiu rapidamente. Devem ser mais ou menos 10 horas da manha. Estou completamente seco da cintura ate a cabeca. Molhei a toalha e tornei a coloca-la como um capuz em volta da cabeca. Coloco a malha porque meus ombros, meus bracos e minhas costas queimam horrivelmente. Ate minhas pernas, que, no entanto, sao frequentemente molhadas pela agua, estao vermelhas como camaroes.
Com a costa mais proxima, a atracao e mais forte e as ondas se dirigem quase que perpendicularmente na sua direcao. Vejo os detalhes da floresta, o que me faz supor que hoje de manha, em quatro ou cinco horas, nos aproximamos de um modo estranhamente rapido. Gracas a minha primeira fuga, sei calcular as distancias. Quando se distinguem bem os detalhes das coisas, a gente esta a menos de 5 quilometros; percebo a diferenca de distancia entre os troncos das arvores e, da crista de uma onda mais alta, posso distinguir bem claramente uma arvore imensa caida, atravessada, molhando sua folhagem no mar.
Olhe, golfinhos e passaros! Espero que os golfinhos nao se divirtam a empurrar a jangada. Ouvi dizer que eles costumam empurrar em direcao a costa os destrocos ou os homens e que, alem disso, os afogam com os golpes de seu focinho com a melhor das intencoes, procurando ajuda-los. Nao, eles dao voltas e mais voltas, sao uns tres ou quatro, vieram farejar, ver o que e, mas vao embora sem ao menos rocar na minha jangada. Ufa!
Meio-dia, o sol esta bem em cima da minha cabeca. Esta mesmo com a intencao de fazer um assado comigo. Meus olhos supuram sem parar e a pele dos meus labios e do nariz ja foi embora. As ondas sao mais curtas e raivosamente se precipitam, com um ruido ensurdecedor, em direcao a costa.
Vejo Sylvain quase continuamente. Ele nao desaparece quase nunca, as ondas nao sao mais muito profundas. De vez em quando, ele se vira e levanta o braco. Esta sempre de peito nu, a toalha em cima da cabeca.
Nao sao mais ondas grandes, sao pequenas ondas que nos levam para a costa. Existe uma especie de barra onde elas chocam com um ruido espantoso; depois, vencida a barra cheia de espuma, afundam, atacando a floresta.
Estamos a menos de 1 quilometro da costa. Percebo os passaros brancos e rosados, com suas plumas aristocraticas, que passeiam ciscando na areia. Sao milhares… Quase nenhum deles voa a mais de 2 metros de altura. Estes pequenos voos curtos sao para nao se molharem com a espuma. Ha muita espuma e o mar esta de um amarelo lamacento, nojento. Estamos tao perto, que enxergo nos troncos das arvores a linha suja que a agua deixa na sua altura maxima.
O barulho das ondas nao chega a cobrir os gritos agudos desses milhares de aves pernaltas de todas as cores. Pam! Pam! Mais 2 ou 3 metros. Pluft! Toquei o fundo, estou a seco, sobre a areia. Nao ha agua suficiente para me levar. Pelo sol, sao 2 horas da tarde. Ha quarenta horas que parti. Foi anteontem, as 10 da noite, depois de duas horas de mare vazante. Portanto, e a setima mare e e normal que eu esteja no seco: e a mare baixa. A mare alta vai comecar la pelas 3. De noite, vou estar no mato. Guardo a corrente, para nao ser arrancado dos sacos, porque o momento mais dificil sera aquele em que as ondas vao comecar a passar em cima de mim, por falta de fundo, e vao me levar consigo. Nao vou poder flutuar antes de pelo menos duas ou tres horas de montante.
Sylvain esta a minha direita, na frente, a mais de 100 metros. Olha para mim e faz uns gestos. Penso que ele quer gritar alguma coisa, mas sua garganta parece que nao pode emitir som algum, senao eu ouviria. As ondas desapareceram, estamos em cima da areia, sem nenhum outro ruido para nos perturbar a nao ser os