Domingo, 7 horas da noite. Acabo de acordar. Propositalmente, durmo desde sabado de manha. A lua so sai as 9. La fora, a noite esta negra. Poucas estrelas no ceu. Grandes nuvens carregadas de chuva passam correndo em cima de nossas cabecas. Acabamos de sair do barracao. Como muitas vezes vamos pescar clandestinamente de noite ou mesmo passear pela ilha, todos os outros acham a coisa natural.
Um rapaz entra com seu amante, um arabe forte. Com certeza acabaram de fazer o amor num canto qualquer. Olhando-os enquanto levantam a tabua para voltar a enfermaria, penso que, para o arabe, poder fazer o amor com seu amigo duas ou tres vezes por dia e o auge da felicidade. Poder satisfazer a saciedade suas necessidades eroticas e coisa que transforma a prisao num paraiso para ele. Para o garoto bonito e o mesmo. Deve ter uns 23 ou 25 anos. Seu corpo e o de um adolescente. Por mais que viva na sombra para conservar sua pele cor de leite, ja deixou de ser um Adonis. Na prisao, contudo, tem mais amantes do que poderia pretender se estivesse em liberdade. Alem do amante do coracao, o arabe, ele pega clientes a 25 francos cada um, exatamente como uma puta da Rua Rochechouart, em Montmartre. Alem do prazer que os clientes provocam nele, ganha dinheiro suficiente para ele e seu “homem” viverem comodamente. Eles e seus clientes se dedicam obstinadamente ao vicio e, desde o dia em que puseram os pes na prisao, sua cabeca so teve um ideal: o sexo.
O procurador que os fez condenar fracassou na tentativa de castiga-los, colocando-os no caminho da corrupcao. E nesta corrupcao que eles encontraram a felicidade.
Descida a prancha na bunda do viadinho, ficamos sos, Chang, Sylvain e eu.
– Vamos andando.
Logo estamos no norte da ilha.
Tiramos as duas jangadas da gruta. Logo ficamos os tres molhados. O vento sopra com os uivos caracteristicos do vento desencadeado do alto-mar. Sylvain e Chang me ajudam a puxar minha jangada ate o alto do rochedo. Na ultima hora, resolvo prender o pulso esquerdo a corda do saco. Tenho medo, de repente, de perder o saco e de ser carregado sem ele. Sylvain sobe no rochedo em frente, com a ajuda de Chang. A lua ja esta bem alta, enxerga-se muito bem. Enrolei uma toalha em volta da cabeca. Temos que esperar seis ondas. Leva tempo.
Chang chega perto de mim. Envolve-me o pescoco, depois me, abraca. Deitado sobre a rocha e abaixado numa depressao da pedra, ele vai segurar minhas pernas para ajudar-me a aguentar a arrebentacao de Lisette.
– Mais uma – grita Sylvain -, a outra e a nossa!
Fica na frente da sua jangada, para cobri-la com o corpo e protege-la contra a agua que vai passar sobre ela. Estou na mesma posicao e, alem disso, para me segurar, tenho as maos de Chang, que no nervosismo me enfia as unhas na barriga da perna.
Esta chegando, a Lisette que vem buscar a gente. Vem empinada como a torre de uma igreja. Com seu costumeiro estrondo ensurdecedor, quebra-se sobre os dois rochedos e afunda em direcao ao penhasco.
Atirei-me uma fracao de segundo antes de meu companheiro, que parte imediatamente, e nas duas jangadas, coladas uma a outra, Lisette nos arrasta ao largo com uma rapidez vertiginosa. Em menos de cinco minutos estamos a mais de 300 metros da costa. Sylvain ainda nao subiu na sua jangada. Eu ja estava em cima dela no minuto seguinte. Com um pano branco na mao, empoleirado no banco de Dreyfus, onde teve que trepar depressa, Chang manda seu ultimo adeus. Ja faz cinco minutos que saimos do lugar perigoso onde as ondas se formam para ir direto contra a Ilha do Diabo. Aquelas que nos levam sao bem mais compridas, quase sem espuma, e tao regulares que vamos a deriva, formando um so corpo com elas, sem balancar e sem que a jangada corra o perigo de virar.
Subimos e descemos estas ondas profundas e altas, levados suavemente para o largo com a vazante.
Ao subir na crista de uma dessas ondas, ainda uma vez, virando completamente a cabeca, posso enxergar o pano branco de Chang. Sylvain nao esta muito longe de mim, a uns 50 metros em direcao ao alto-mar. Varias vezes, ele levanta o braco e o agita em sinal de alegria e de vitoria.
A noite nao foi dura e sentimos fortemente a mudanca de atracao do mar. A mare com a qual partimos nos atirou ao largo, esta nos empurra agora para a Terra Grande.
O sol se levanta no horizonte, sao portanto 6 horas. Estamos muito junto da agua para conseguir avistar a costa. Vejo que estamos bastante longe das ilhas, pois, embora o sol as ilumine completamente, mal se distinguem e nao se percebe que sao tres. Vejo uma massa, so isso. Nao podendo distinguir os detalhes, penso que estao a pelo menos 30 quilometros.
Tenho um sorriso de triunfo; pelo exito total.
E se eu sentasse na jangada? O vento me empurraria melhor, batendo nas minhas costas.
Pronto, sentei. Desenrolo a corrente e dou uma volta em torno da minha cintura. Com o parafuso bem engraxado, e facil fechar a porca. Levanto as maos no ar para seca-las no vento. Vou fumar um cigarro. Pronto. Longamente, profundamente, aspiro as primeiras tragadas e assopro a fumaca docemente. Nao tenho mais medo. Porque e inutil descrever a dor de barriga que eu tive antes, durante e depois dos primeiros momentos de acao. Nao, nao tenho medo, de modo que, terminado o cigarro, resolvo comer um pouco de coco ralado. Como um belo punhado, depois fumo outro cigarro. Sylvain esta bastante longe, agora. De tempos em tempos, quando nos encontramos no mesmo momento sobre a crista de uma onda, conseguimos nos enxergar furtivamente. O sol bate com uma forca dos diabos sobre o meu cranio, que comeca a ferver. Molho minha toalha e enrolo-a na cabeca. Tirei a malha de la. Apesar do vento, sufoco com ela.
Meu Deus, minha jangada virou e quase me afoguei. Bebi dois bons goles de agua salgada. Nao conseguia, apesar dos meus esforcos, virar os sacos e tornar a subir em cima deles. A culpa e da corrente. Meus movimentos nao sao bastante livres por causa dela. Enfim, fazendo-a deslizar sempre no mesmo sentido, consegui nadar ao lado dos sacos e respirar profundamente. Experimento livrar-me completamente da corrente, meus dedos procuram inutilmente desaparafusar a porca. Irrito-me e, talvez por estar muito nervoso, nao tenho forca suficiente nos dedos para desemperra-la.
Ufa! Enfim, aqui esta! Passei um mau pedaco. Fiquei completamente louco, pensando na impossibilidade de me livrar da corrente.
Nao me preocupo em endireitar a jangada. Sinto-me esgotado, nao tenho bastante forca. Subo em cima da jangada. Que importa que a parte de baixo esteja virada para cima? Nunca mais vou ficar amarrado, nem com a corda nem com nada. Ja percebi a besteira que fiz na hora da saida, prendendo meu pulso. Isso me servira de experiencia.
O sol, inexoravelmente, queima os meus bracos, as minhas pernas. Meu rosto esta em fogo. Molha-lo e pior, acho, porque imediatamente a agua se evapora e queima mais ainda.
O vento diminui bastante e, se a viagem e mais comoda, porque agora as ondas sao menos altas, em compensacao avanco menos rapido. Muito melhor, portanto, o vento e o mar agitado do que a calmaria.
Tenho caibras tao fortes na perna direita, que grito, como se alguem pudesse me ouvir. Com o dedo, faco umas cruzes sobre a caibra, lembrando-me de que minha avo dizia que isso faz a dor passar. O remedio da boa avo fracassa miseravelmente. O sol desceu bastante a oeste. Sao aproximadamente 4 da tarde, e a quarta mare depois da partida. Parece que esta mare montante puxa com mais forca do que a outra em direcao a costa.
Agora vejo sempre Sylvain e ele tambem me ve muito bem. Ele desaparece muito raramente, porque as ondas sao pouco profundas. Tirou a camisa e esta de peito nu. Sylvain me faz uns sinais. Esta mais de 300 metros a minha frente, mas mais para o largo. Parece que esta remando com as maos, pela leve espuma em volta dele. Parece que quer segurar a jangada, para que eu chegue perto dele. Deito em cima dos sacos, mergulhando os bracos na agua, e remo. Se ele brecar e eu empurrar, sera possivel diminuir a distancia entre nos?
Escolhi bem meu cumplice nessa evasao, esta a altura, cem por cento.
Paro de remar com as maos. Sinto-me cansado. Preciso guardar minhas forcas. Vou comer e tentar virar a jangada. A sacola da comida esta embaixo e tambem a garrafa de couro com a agua doce. Estou com sede e com fome. Meus labios ja estao partidos e queimam. A melhor maneira de virar os sacos e pendurar-me neles, na frente da onda, e depois empurrar com os pes na hora em que estao no alto da onda.
Depois de cinco tentativas, tenho a sorte de virar a jangada de uma vez so. Estou esgotado, pelo esforco que acabo de fazer, e subo com dificuldade nos sacos.
O sol esta alto no horizonte e em pouco tempo vai desaparecer. E perto de 6 horas. Esperemos que a noite nao seja muito agitada, porque vejo que sao as longas imersoes que me tiram as forcas.
Bebo na bolsa de couro de Santori um bom gole de agua, depois de comer dois punhados de polpa de coco. Satisfeito, as maos secas Pelo vento, tiro um cigarro e fumo, deliciado. Antes que escureca, Sylvain agita sua toalha e eu a minha, em sinal de boa noite. Esta sempre longe de mim. Estou sentado, com as pernas esticadas. Torco o mais possivel minha malha de la e a visto. Estas malhas, mesmo molhadas, esquentam; e, desaparecido o sol, comeco logo a sentir frio.
O vento refresca. Somente as nuvens a oeste estao banhadas de luz rosa no horizonte. Todo o resto, agora, esta mergulhado na penumbra do crepusculo, que se acentua de minuto em minuto. A leste, de onde vem o vento, nenhuma nuvem. Portanto, nao ha perigo de chuva para a noite.
Nao penso absolutamente em nada. Nao me pergunto se e bom eu me segurar, nao me molhar inutilmente, nem me pergunto se seria preferivel, caso o cansaco me venca, amarrar-me aos sacos, ou se isso e muito perigoso depois da experiencia que eu tive. Entao percebo que eu me sentia preso nos movimentos porque a corrente era muito curta, uma extremidade ficava inutilizada, enrolada nas cordas e nos arames do saco. Esta ponta e facilmente recuperavel. Vou ter, entao, os movimentos mais livres. Arrumo a corrente e prendo-a de novo na cintura. A porca cheia de graxa funciona sem dificuldade. Nao preciso aperta-la demais, como da primeira vez. Assim, me sinto mais tranquilo, porque tenho um medo louco de pegar no sono e perder a jangada.
E, o vento aumentou e as ondas tambem. A jangada funciona otimamente, mas com as diferencas de nivel cada vez mais acentuadas.
E noite completa. O ceu esta cravejado de milhoes de estrelas e o Cruzeiro do Sul brilha mais que todas as outras,
Nao vejo meu companheiro. Esta noite que comeca e muito importante, porque, se a sorte permitir que o vento sopre durante toda a noite com a mesma forca, vou andar bastante ate amanha de manha.
Mais a noite avanca, mais forte sopra o vento. A lua sai lentamente do mar, esta de um vermelho pardacento e, quando, enfim livre, se apresenta enorme, inteira, distingo claramente suas manchas negras, que lhe dao o aspecto de um rosto.
Ja sao mais de 10 horas da noite. A noite fica cada vez mais clara. A medida que a luz se levanta, o clarao lunar fica mais intenso. As ondas ficam platinadas e sua estranha reverberacao queima meus olhos. Nao e possivel deixar de olhar esses reflexos prateados, mas realmente machucam e queimam meus olhos, que ja estao irritados pelo sol e a agua salgada.
Por mais que eu mesmo ache que estou exagerando, nao tenho vontade de resistir e fumo tres cigarros seguidos.
Nada de anormal com a jangada, que, num mar fortemente agitado, sobe e desce sem problemas. Nao posso ficar por muito tempo com as pernas esticadas sobre o saco de cocos, porque a posicao sentada me da logo caibras horriveis.
Estou permanentemente molhado ate a cintura. O peito esta quase seco, o vento secou a malha, as ondas nao me molham acima da cintura. Meus olhos ardem cada vez mais. Fecho-os. De vez em quando, pego no sono. “Voce nao pode dormir.” Facil dizer, mas nao aguento mais. Merda! Luto contra estes entorpecimentos. E, cada vez que retomo o senso da realidade, sinto uma dor aguda no cerebro. Tiro o isqueiro. De vez em quando me queimo, encostando a chama no braco direito ou no