rir que podia fazer todo o barulho que quisesse porque ninguem estava em casa.

Mostrou-me o salao: uma grande sala cheia de poltronas e divas; a sala de jantar, mais pequena, com uma mesa oval, cadeiras e credencias de uma bela madeira castanha, brilhante; a rouparia cheia de armarios pintados de esmalte branco.

Num quarto pequenino havia um bar engastado numa reentrancia da parede, um verdadeiro bar com prateleiras para as garrafas, a maquina de cafe niquelada e o balcao forrado de zinco: dir-se-ia uma capelinha, tanto mais que uma grade baixa fechava a entrada.

Perguntei a Gino onde era a cozinha: disse-me que a cozinha e os quartos do pessoal eram na cave. Era a primeira vez na minha vida que eu entrava numa casa destas; instintivamente tocava cada coisa com a ponta dos dedos, como se nao acreditasse no que viam os meus olhos. Tudo me parecia novo e precioso: o vidro, a madeira, o marmore, o metal, os tecidos. Nao me saia da cabeca a comparacao entre estas paredes, estes pavimentos, estes moveis com os ladrilhos sujos, as paredes enegrecidas e os moveis desconjuntados da nossa casa, e pensei que minha mae tinha razao quando dizia que nesta vida so o dinheiro conta. Pensava tambem que as pessoas que viviam sempre no meio destas bonitas coisas deviam por forca ser belas e boas, nao poderiam gritar, ter questoes, praticar enfim a maior parte dos actos que eu tinha visto fazer na minha casa e nas outras iguais a minha.

Entretanto, Gino explicava-me pela centesima vez a vida que se fazia la dentro, como se qualquer coisa de todo aquele luxo e de toda aquela riqueza se reflectisse nele.

— Tem pratos de porcelana… as travessas sao todas de prata… comem cinco pratos diferentes, bebem tres qualidades de vinho. A noite a senhora veste um vestido decotado e ele um smoking… Depois do jantar, a criada de quarto leva-lhes uma bandeja de prata com sete qualidades de cigarros, so cigarros estrangeiros, bem entendido!… Depois saem da sala de jantar e levam-lhes o cafe e os licores nesta mesinha rolante… tem sempre convidados… umas vezes dois… outras vezes quatro… A senhora tem brilhantes deste tamanho!… e um colar de perolas que e uma maravilha. So em joias deve ter uns bons milhoes…

— Ja me disseste isso! — interrompi, um pouco aborrecida. Mas ele, entusiasmado com o assunto, nem deu pela minha contrariedade.

— A senhora nunca vai a cave… — continuou. — Da as suas ordens pelo telefone… Alias na cozinha so se trabalha a electricidade… A nossa cozinha e mais limpa e bonita do que os quartos de dormir de muita gente… Ate mesmo os dois caes da senhora andam mais asseados e comem melhor do que muitas pessoas…

Falava dos patroes com admiracao e dos pobres com desprezo. Eu, um pouco pela sua conversa, um pouco pela comparacao que continuamente estabelecia entre esta casa e a minha, sentia-me horrivelmente miseravel.

Do primeiro andar, subindo a escada, chegamos ao segundo. Na escada Gino passou-me o braco em volta da cintura e apertou-me com forca. Eu entao nao sei porque tive a impressao de ser a dona da casa e de subir a escada pelo braco do meu marido, depois de algum jantar ou de alguma recepcao, para me ir deitar, na mesma cama que ele, no segundo andar.

Gino parecia adivinhar os meus pensamento — tinha constantemente intuicoes deste genero — e disse- me:

— Agora vamos deitar-nos… E amanha trazem-nos o cafe a cama.

Pus-me a rir, mas com a impressao de que isso era verdade.

Nesse dia, para sair com Gino, eu tinha vestido o meu fato mais bonito (e tambem a minha blusa e o meu melhor par de sapatos). Lembro-me de que era um vestido de duas pecas: casaco preto e uma saia aos quadrados pretos e brancos. O tecido nao era feio, mas a costureira do bairro que o cortara tinha pouco mais pratica do que minha mae. Tinha-me feito a saia muito curta, mas mais atras do que a frente, de maneira que me cobria os joelhos a frente, mas deixava as curvas a vista pelo lado de tras. O casaco tinha ficado muito apertado, com enormes virados, e as mangas tao estreitas que me repuxavam debaixo dos bracos. Abafava dentro deste casaco, que fazia sobressair o peito de tal maneira que parecia ter perdido um botao. A blusa era cor-de-rosa, muito simples, de tecido ordinario, sem bordados, e deixava ver a transparencia a minha melhor e mais bonita combinacao: de algodao branco.

Calcava sapatos pretos muito bem engraxados: a forma era antiga, mas o cabedal era bom. Nao trazia chapeu e o cabelo caia-me sobre os ombros; tenho o cabelo castanho e ondulado.

Era a primeira vez que vestia esta toilette e sentia-me orgulhosa. Mas quando entrei no quarto da patroa de Gino e vi a grande cama, baixa e fofa, com a cobertura de seda acolchoada, os lencois de linho bordados e todos aqueles cortinados muito leves que caiam da alto sobre a cabeceira e depois descobri a minha imagem triplamente reflectida no espelho de tres faces do toucador ao fundo do quarto dei-me conta de que estava vestida como uma infeliz, que o orgulho que os meus trapos me inspiravam era ridiculo e digno de piedade — e tambem que me seria impossivel considerar feliz enquanto nao pudesse andar elegantemente vestida e viver numa casa como aquela.

Estava quase a chorar e sentei-me sem dizer palavra na beira da cama, tomada de uma vertigem.

— Que tens? — perguntou Gino sentando-se ao meu lado e pegando-me na mao.

— Nada — respondi. — Estava a olhar uma pobretana que eu conheco.

— Quem? — perguntou-me, admirado.

— Aquela — respondi mostrando-lhe o espelho onde me via sentada ao lado de Gino.

Realmente nos tinhamos o ar — mais eu do que ele — de um par de selvagens hirsutos que o acaso tivesse feito cair numa casa civilizada. Desta vez ele compreendeu o sentimento de fraqueza, inveja e ciume que me apertava o coracao, e beijou-me dizendo:

— Mas tu nao precisas de olhar para o espelho!

Ele temia pelos seus planos. Deveria ter compreendido que nada era mais propicio para os executar do que o meu estado de humilhacao. Beijamo-nos, e o seu beijo fez-me voltar a coragem porque senti que afinal eu era amada e amava.

Contudo, um pouco depois, quando me mostrou a casa de banho, tao grande como as outras salas, com uma banheira metida na parede e torneiras niqueladas, e sobretudo quando abriu um dos armarios, deixando ver no interior, apertados uns contra os outros, os vestidos da patroa dele, a inveja voltou com o sentimento de miseria e tornei a desesperar. Um grande desejo de nao pensar naquelas coisas tomou-me de repente e, conscientemente, pela primeira vez, desejei tornar-me amante de Gino: um pouco para esquecer a minha condicao, um pouco para me dar a ilusao, como reaccao a impressao de miseria que me escravizava, de ser tambem livre e capaz de agir. Nao me podia vestir elegantemente, nem possuir uma casa como aquela, mas podia amar como os ricos ou talvez melhor que eles.

— Porque me mostras todos esses vestidos? — perguntei a Gino.

— Que me interessa isso?

— Julguei que te interessasse — respondeu, desconcertado.

— Absolutamente nada me interessa. Sao muito bonitos, mas nao vim ca para ver vestidos.

Com estas palavras os seus olhos iluminaram-se. Acrescentei com negligencia:

— Mostra-me antes o teu quarto.

— E na cave — disse, vivamente. — Queres que vamos la?

Olheio-o um momento em silencio, e depois perguntei-lhe com uma seguranca, nova em mim, que me desagradou:

— Porque finges de imbecil comigo?

— Mas eu… — comecou ele, surpreendido e atrapalhado…

— Tu sabes melhor do que eu que nao viemos aqui para visitar a casa, nem para admirar os vestidos da tua patroa, mas para irmos para o teu quarto e sermos um do outro… Mais vale ir ja e nao falarmos mais nisso.

Foi assim que so por ter dado uma olhadela a esta casa eu passei a ser diferente da rapariga ingenua e timida que ai tinha entrado. Estava admirada comigo mesmo, nao me reconhecia.

Saimos do quarto e descemos a escada. Gino tinha passado o braco em torno da minha cintura e beijavamo-nos em cada degrau. Creio bem que nunca uma escada foi descida tao devagar. No res-do-chao, Gino abriu uma porta disfarcada na parede, e estreitando-me e beijando-me sempre conduziu-me a cave. Ja era noite: estava tudo as escuras. Sem acender a luz, ao longo do corredor, muito abracados e de bocas unidas, chegamos ao quarto de Gino. Ele abriu, entramos, e ouvi-o fechar a porta atras de nos. Durante muito tempo ficamos de pe,

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