beijando-nos no escuro. Eram beijos que nunca mais acabavam: se eu queria interromper ele recomecava, e quando ele parava era eu quem continuava. Depois Gino empurrou-me para a cama e eu deixei-me cair de costas. Gino nao cessava de me murmurar ao ouvido, um pouco ofegante, palavras doces e frases convincentes, com a intencao clara de me aturdir, para nao me aperceber de que ao mesmo tempo as suas maos me iam despindo. Mas nao era preciso; primeiro porque eu decidira entregar-me, e depois porque eu odiava estes trapos que tanto me tinham agradado antes, e que desprezava agora profundamente.

“Uma vez nua — pensava eu — serei tao bela, senao mais, do que a patroa de Gino e que todas as mulheres ricas do mundo.” Alias, havia meses que o meu corpo esperava este momento; sentia-o, mau grado meu, fremir de impaciencia e de desejo reprimido, como uma fera esfomeada e presa, a qual, depois de um longo jejum, se cortam as prisoes e se oferece com que matar a fome. Foi por isso que o acto de amor me pareceu natural, e a sensacao de fazer um gesto desusado de modo nenhum se misturava ao prazer fisico. Pelo contrario, como acontece por vezes diante de uma certa paisagem que se tem a impressao de ja ter visto, quando na realidade e a primeira vez que se oferece ao nosso olhar, eu tinha a sensacao de fazer coisas que ja tinha feito, nao sabia onde nem quando, talvez numa outra vida. Isto nao me impedia de amar Gino com paixao, para nao dizer com furia, de o beijar, de o morder, de o apertar nos meus bracos ate o sufocar. Ele parecia possuido da mesma raiva. Assim, durante um tempo que me pareceu muito longo, neste quartinho escuro, enterrado debaixo de dois andares de uma casa vazia e silenciosa, nos beijamo-nos e possuimo-nos como dois inimigos lutando pela propria vida e procurando ferir-se o mais possivel.

Mas quando os nossos desejos se saciaram, enquanto estavamos estendidos lado a lado, enlanguescidos e extenuados, tive medo de que Gino, depois de me ter possuido, ja nao quisesse casar. Comecei entao a falar da casa para onde iriamos morar quando nos casassemos. A casa da patroa de Gino tinha-me impressionado profundamente.

Agora parecia-me que so se poderia ser feliz no meio de coisas bonitas e asseadas. Reconheci que nos nunca estariamos em estado de possuir nao somente uma casa como esta, mas ate uma sala como as desta casa. No entanto, para vencer esta dificuldade, expliquei-lhe que uma casa mesmo pobre podia parecer rica se brilhasse como um espelho. Porque alem do luxo, e talvez ainda mais do que o luxo, o deslumbrante asseio desta moradia provocava no meu espirito um formigueiro de reflexoes. Procurei convencer Gino de que o asseio podia fazer parecer bonitos mesmo os objectos feios. Na realidade, desesperada pela ideia que eu tinha agora da minha pobreza e consciente de que o meu casamento com Gino seria o unico meio de poder livrar-me dela, queria sobretudo convencer-me a mim propria.

— Mesmo dois quartos, se estiverem verdadeiramente limpos, com o chao passado todos os dias, os moveis limpos do po, a louca lavada e tudo arrumado: os pratos, os esfregoes e os fatos e os sapatos no seu lugar, tambem podem ser bem bonitos! O que e preciso e limpar e lavar tudo muito bem todos os dias… Nao me deves julgar pela casa onde moramos, eu e minha mae; minha mae e desordenada e depois nao tem tempo de a arrumar, coitada, mas a nossa cozinha sera um espelho, prometo-te!

— Isso! Isso! — disse Gino. — O asseio acima de tudo! Sabes o que faz a senhora quando descobre um grao de poeira num canto? Chama a criada de quarto, obriga-a a ajoelhar-se e a tirar a poeira com as maos como se faz aos caes quando fazem porcarias… E tem razao!

— Pois eu — declarei — tenho a certeza de que a minha casa ha-de estar ainda mais limpa e mais arrumada que esta… veras!

— Mas tu continuaras a ser modelo — disse-me num tom travesso. — Nao poderas tomar conta da casa!

— Modelo? — respondi vivamente. — Ja nao serei mais modelo… Ficarei todo o dia em casa… Terei sempre a casa arrumada e muito limpa e cozinharei para ti… a minha mae diz que isso e ser tua criada, mas, quando se ama alguem, mesmo ser criada da prazer!

Durante muito tempo fizemos projectos de futuro. E eu pouco a pouco sentia o medo desvanecer-se para dar lugar a minha habitual confianca amorosa e ingenua. Como poderia duvidar?

Gino nao so aprovava os meus projectos, mas discutia-os pormenorizadamente, amparando-os e aperfeicoando-os. Como ja devo ter dito, ele agora era relativamente sincero: o mentiroso acabava por acreditar nas suas proprias mentiras.

Depois de tagarelarmos pelo menos duas horas, dormitei docemente, e creio bem que Gino tambem adormeceu. Fomos acordados por um raio de luar que entrava pelo respiradouro terreo iluminando os nossos corpos estendidos sobre a cama.

Gino disse que devia ser muito tarde; com efeito o despertador pousado sobre a mesa de cabeceira marcava meia-noite e alguns minutos.

— Meu Deus! Como me ira receber minha mae! — disse eu saltando da cama e comecando a vestir-me a luz da Lua.

— Porque?

— E a primeira vez que entro em casa tao tarde. A noite nunca saio sozinha.

— Diz-lhe que fomos dar uma volta de automovel, que tivemos uma avaria e que fomos forcados a parar no campo.

— Ela nao acredita.

Saimos apressadamente da moradia, e Gino levou-me a casa. Eu sabia que minha mae nao acreditaria na historia da panne, mas nunca supus que a sua intuicao fosse ao ponto de adivinhar com exactidao o que se passara entre mim e Gino. Tinha as chaves da porta da rua e de casa. Entrei; subi os dois andares no escuro, galgando a dois e dois os degraus, e abri a porta.

Esperava que minha mae estivesse deitada, e ver a casa toda as escuras confirmou a minha esperanca. Sem acender a luz, nos bicos dos pes, dirigia-me para o quarto quando me senti agarrada pelos cabelos com uma violencia terrivel. Sempre as escuras, minha mae, porque era ela, atirou-me para cima do diva, e comecou, sempre em silencio, a esbofetear-me.

Procurava defender-me com os bracos, mas parecia que ela me via, porque arranjava maneira de me passar por baixo dos bracos e de apanhar-me em cheio a cara. Acabou por se cansar e sentou-se ao meu lado, no diva, arfando com forca. Depois levantou-se, acendeu a luz do centro e veio por-se na minha frente com as maos nas ancas, olhando-me fixamente. O seu olhar enchia-me de vergonha e embaracava-me; procurei ajeitar a saia e recompor a desordem em que esta especie de luta me tinha deixado. Ela disse-me num tom normal:

— Esta a parecer-me que tu e o Gino passaram a noite juntos!

Desejei dizer-lhe que sim, que era verdade; mas temi que me tornasse a bater, e o que mais me assustava era que agora, com a luz acesa, acertar-me-ia em cheio. Nao queria aparecer com um olho negro, principalmente a Gino.

— Nao — respondi. — Nao dormimos juntos; tivemos uma avaria na estrada que nos atrasou.

— Mas eu digo-te que estiveste na cama com ele!

— Nao… nao e verdade!

— Sim… e verdade! Olha para o espelho ; estas verde.

— E possivel que esteja fatigada… mas nada houve entre nos!

— Houve, sim!

— Nao, nao, nao houve!

O que me espantava e ao mesmo tempo me inquietava vagamente era a calma que ela mostrava neste momento: nada mais que uma forte curiosidade, o que me fazia pensar que ela nao estava totalmente desinteressada do caso. Por outras palavras, o que ela queria saber era se eu me tinha entregue a Gino, nao para me castigar ou me repreender, mas porque o desejava conhecer com precisao por uma razao que so ela sabia.

Somente era tarde de mais, e embora eu soubesse que ja nao me bateria mais, continuei sempre a negar. Entao, bruscamente, fez mencao de me agarrar o braco, e eu levantei a mao para me proteger, mas ela disse :

— Nao te toco, nao tenhas medo! Vem comigo! Nao percebia bem aonde ela me queria levar; mas obedeci amedrontada. Sem me largar, obrigou-me a sair do apartamento, a descer a escada e a ir com ela para a rua. Estavam desertas as ruas a esta hora.

Logo em seguida percebi que minha mae corria para a luz vermelha da farmacia de servico ou do posto de socorros. A entrada da porta experimentei pela ultima vez resistir, fincando os pes, mas ela empurrou-me e eu

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