Ficando so, reflecti muito tempo sobre a conversa de minha mae. Estabeleci uma comparacao entre as suas palavras e as promessas e a conduta de Gino e pareceu-me impossivel que fosse ela a ter razao. Mas a sua seguranca, a sua calma, o seu tom de previsao desconcertaram-me. Entretanto, minha mae lavava a louca na cozinha. Ouvi-a guardar os pratos no aparador e ir para o quarto. Depois de uns instantes, vencida e humilhada, fui deitar-me tambem.

No dia seguinte perguntava a mim mesma se devia ou nao contar a Gino as suspeitas da minha mae. Depois de muita hesitacao resolvi nada dizer.

Na realidade, eu tinha tanto medo que Gino me abandonasse, como minha mae insinuara, que temia que, comunicando-lhe a opiniao dela, lhe pudesse sugerir a ideia. Percebi pela primeira vez que a mulher que se entrega a um homem fica de tal maneira na sua dependencia que ja nao tem meio de seguir a vontade propria. Mas nao estava menos convencida de que Gino cumpriria a sua promessa. Logo que o tornei a ver, a sua atitude confirmou a minha conviccao.

Eu esperava, decerto, que ele me iria cumular de atencoes e caricias, mas temia que guardasse silencio sobre o casamento, ou pelo menos nao falasse nisso senao de uma maneira esporadica. Pelo contrario, assim que parou o carro na avenida do costume, Gino disse-me que ja fixara a data do casamento: seria dali a cinco meses, o mais tardar!

A minha alegria foi tal que me atribui as ideias de minha mae e nao pude deixar de dizer:

— Sabes o que eu pensava, pelo contrario? Que depois do que se passou ontem irias abandonar-me.

— Como? — disse, tomando um ar vexado. — Tu tomas-me por um vigarista?

— Nao, mas sei que ha muitos homens que procedem assim.

— Nao sabes que podia ficar magoado com a tua suposicao? Que ideia fazes de mim? E assim que dizes amar-me?

— Eu amo-te — respondi ingenuamente. — Mas receava que tu nao gostasses de mim.

— Ate agora ja te dei alguma razao que te fizesse supor que nao gosto de ti?

— Nao, mas nunca se sabe…

— Olha! — disse-me bruscamente. — Tu indispuseste-me de tal maneira que vou ja levar-te ao atelier.

E fez mencao de por o carro em andamento. Assustada, deitei-lhe as maos ao pescoco e supliquei:

— Nao, nao! Que tens? Falei por falar… faz de conta que nada disse.

— Ha coisas que nao se dizem quando nao se pensam… e quando se pensam e porque nao se ama!

— Mas eu amo-te!

— Eu nao! — disse-me em tom sarcastico. — Como tu disseste, tive sempre a ideia de me divertir a tua custa e depois deixar-te. E estranho que so agora tenhas dado por isso!

— Mas, Gino, porque me falas dessa maneira? — gritava eu, desfazendo-me em lagrimas.

— Nada — respondeu, pondo o carro em andamento — Vou levar-te ao atelier.

O carro pos-se em marcha e Gino ao volante tinha um ar carrancudo e duro. Eu quando vi, pelo vidro, as arvores e os marcos quilometricos deslizarem, e as primeiras casas da cidade, sucedendo-se ao campo, aparecerem no horizonte, desatei a chorar.

Pensava que minha mae iria rejubilar quando soubesse da nossa zanga e que Gino, como ela tinha previsto, me deixaria. Num gesto desesperado abri a portinhola do carro, inclinei-me para a frente e gritei:

— Ou paras ou atiro-me para a estrada.

Olhou-me, o carro abrandou, voltou por um caminho lateral e parou atras de uma elevacao coroada por uma ruina. Gino desligou o motor, travou e, voltando-se para mim, disse com impaciencia:

— Entao, coragem! Va! Fala!

Eu julgava realmente que ele me queria abandonar e pus-me a falar com um fogo e uma paixao que me pareceram ao mesmo tempo ridiculos e comoventes quando os recordo hoje. Explicava-lhe ate que ponto o amava: cheguei a dizer-lhe que se ele nao casasse comigo seria o mesmo, porque me contentaria com ser sua amante. Escutava-me com um rosto sombrio, abanando a cabeca e repetindo de vez em quando:

— Nao, nao, por hoje acabou. Amanha talvez me passe! Quando lhe disse que para mim era suficiente ser sua amante, respondeu com fervor:

— Nao, nao! Casados ou nada!

Discutimos durante muito tempo, e varias vezes a exibicao da sua logica, tao perversa como indiscutivel, levou-me ao desespero e as lagrimas. Depois, gradualmente, a sua atitude inflexivel pareceu modificar-se; por fim, depois de o ter beijado longamente e ameigado sem qualquer resultado, tive a impressao de ter conseguido uma grande vitoria quando o convenci a descer comigo e vir possuir-me no assento traseiro do carro num abraco inconfortavel, que o meu angustioso desejo de lhe agradar achou demasiado curto e cheio de uma amarga ansiedade. Eu devia ter compreendido ser esse, no meu proprio interesse, o ultimo dos procedimentos a adoptar. Era entregar-me completamente nas suas maos, mostrar-lhe a minha disposicao de me entregar a ele, nao apenas por puro impeto amoroso, mas tambem para o prender e convencer a concordar comigo quando as palavras nao chegassem para isso: precisamente a conduta das mulheres que amam sem a certeza de serem amadas: Mas eu estava completamente cega pela atitude perfeita que a sua falsidade lhe permitia tomar. Ele dizia e fazia sempre as coisas que devia dizer e fazer. E eu, na minha inexperiencia, nao me apercebia de que esta perfeicao pertencia mais a imagem convencional do amante que eu propria tinha criado do que ao homem que estava na minha frente. Mas a data do casamento tinha sido fixada e comecei logo a ocupar-me dos preparativos. Combinei com Gino que, pelo menos nos primeiros tempos, fariamos vida em comum com minha mae.

Alem da grande sala, da cozinha e do quarto, havia uma outra divisao que minha mae, por falta de dinheiro, nunca tinha chegado a mobilar. Guardavamos ai os objectos partidos e inutilizados; e pode imaginar-se o que seriam os objectos partidos e inutilizados de uma casa como a nossa, onde tudo parecia inutilizado!

Depois de muitas discussoes assentamos num programa minimo: mobilariamos esse quarto e eu faria um pequeno enxoval. Nos eramos muito pobres, mas eu sabia que minha mae tinha algumas economias, e que esse dinheiro tinha sido posto de parte para mim a fim de poder fazer face — dizia ela — a qualquer eventualidade.

Quais poderiam ser essas eventualidades? Nao era muito claro; seguramente que nao a possibilidade de eu casar com um homem pobre e de futuro incerto. Fui ter com minha mae e disse-lhe.

— Esse dinheiro que puseste de parte foi para mim, nao foi?

— Foi.

— Pois bem! Se me queres fazer feliz, da-mo agora para arranjar o quarto, para onde iremos, eu e o Gino. Se e verdade que o guardaste para mim, chegou o momento de mo dares!

Esperava reprimendas, discussoes, e por fim uma recusa. Pelo contrario, minha mae acolheu o meu pedido com a maior calma e mostrou de novo aquela serenidade sardonica que tanto me tinha aborrecido na noite em que visitara a moradia.

— E ele nao vai contribuir com qualquer coisa? — perguntou-me, voltando-se.

— Ha-de dar, com certeza — respondi, mentindo. — Ele ja disse. Mas tambem eu tenho de contribuir com a minha parte.

Ela estava a coser ao pe da janela. Para falar interrompera o seu trabalho.

— Vai ao quarto, abre a primeira gaveta do armario… encontraras uma caixa de cartao… esta la a caderneta da Caixa Economica e o ouro. Leva-a e o ouro tambem… Ofereco-te.

O ouro era pouca coisa: um anel, um par de brincos e um pequeno fio. Mas desde a minha infancia, magro tesouro escondido debaixo dos trapos e so entrevisto em circunstancias extraordinarias, tinha incendiado a minha imaginacao. Impetuosamente beijei minha mae: afastou-me sem brutalidade, mas com frieza, declarando:

— Cuidado com a agulha… podes picar-te!

Mas eu nao estava satisfeita. Nao me bastava ter obtido aquilo que queria; pretendia mais: que minha mae estivesse como eu.

— Mae! — gritei. — Se fizeste isto so para me dar prazer, entao prefiro nao aceitar!

— Decerto que nao foi para lhe dar prazer a ele! — respondeu, recomecando a coser.

— Realmente nao acreditas no meu casamento com Gino? — perguntei com uma voz acariciadora.

— Nunca acreditei. E hoje menos que nunca.

— Mas entao porque me deste o dinheiro para arranjar o quarto?

— Nao e dinheiro mal gasto. Os moveis e as roupas sempre ficam… Mobilia ou dinheiro e a mesma

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