coisa.

— Entao nao me acompanharas aos armazens para me ajudares a escolher?

— Por amor de Deus! — gritou. — Nem quero mesmo ouvir falar nisso! Arranjem-se, vao voces, escolham… eu nao quero saber de coisa alguma!

Acerca do meu casamento ela era intratavel; eu acreditava que a sua atitude nao era ditada so pela conduta, pelo caracter e pela situacao de Gino, mas principalmente pela maneira como ela encarava a vida. Nao havia espirito de contradicao nesta sua atitude, mas somente completa inversao das ideias correntes. As outras mulheres desejam com obstinacao que as filhas se casem; minha mae ha muito tempo que com a mesma tenacidade esperava que eu nao me casasse.

Existia uma especie de aposta entre mim e minha mae. Ela queria que eu nao me casasse e me desse conta do bom fundamento das suas ideias. Eu desejava que este casamento se efectuasse e que minha mae se convencesse de que a minha maneira de pensar e que estava certa. Agarrava-me a esperanca de me casar com a sensacao de jogar desesperadamente toda a minha vida numa so cartada. Mas sentia ao mesmo tempo, nao sem amargura, que minha mae vigiava os meus esforcos e tentava fazer-me socobrar. Devo mencionar aqui mais uma vez que a maldita perfeicao de Gino nao se desmentia nem mesmo por ocasiao dos preparativos para o casamento. Tinha dito a minha mae que Gino ajudaria as despesas. Menti, porque ate entao Gino nem sequer tinha aludido a essa possibilidade. Fiquei, pois, ao mesmo tempo surpreendida e contente no dia em que Gino, sem que eu nada lhe tivesse pedido, me ofereceu uma pequena soma de dinheiro, para me ajudar. Desculpou-se da mesquinhez da quantia, explicando-me que nao me podia dar mais, porque tinha urgencia em mandar dinheiro aos seus. Quando hoje penso nesta dadiva nao posso explica-la senao pela extraordinaria fidelidade ao papel que decidira representar: fidelidade proveniente talvez do remorso de me enganar e do pesar de nao poder casar comigo, como agora realmente desejava.

Triunfante, tratei de por minha mae ao corrente da oferta de Gino. Limitou-se a observar que era uma soma bem miseravel; apenas o necessario para me deitar poeira nos olhos sem se arruinar!

Este foi na minha vida um periodo muito feliz. Encontrava-me todas as noites com Gino, e amavamo-nos onde era possivel: sobre o assento de tras do carro, de pe, no canto escuro de uma rua solitaria, no campo, num prado, ou ainda na moradia, no quarto de Gino. Uma noite em que ele me levou a casa, amamo-nos no patamar, em frente da porta do apartamento, estendidos sobre os ladrilhos, no escuro. Outra vez possuimo-nos no cinema, encolhidos nas ultimas cadeiras, mesmo debaixo da cabina do operador. Gostava de me encontrar misturada com ele no meio da multidao, dos electricos e dos lugares publicos, porque as pessoas me comprimiam contra ele; aproveitava para colar todo o meu corpo ao seu. Experimentava constantemente a necessidade de lhe apertar a mao, de lhe passar os dedos pelos cabelos e de lhe fazer qualquer outra caricia, no sitio em que estivessemos, mesmo na presenca de terceiros, com a ilusao de que ninguem se apercebia. como sempre que se cede a uma paixao irresistivel. Gostava infinitamente de amar: talvez eu gostasse mais do amor do que propriamente de Gino, e sentia-me levada a pratica-lo nao somente pelo sentimento que experimentava por ele, mas tambem pelo prazer que sentia. Nao pensava com certeza que poderia sentir o mesmo prazer com outro homem. Mas apercebia-me de uma maneira obscura de que o nosso amor nao podia explicar inteiramente o zelo, a habilidade e a paixao que punha nas minhas caricias. Isso tinha um caracter autonomo; era uma especie de vocacao que, de toda a maneira, mesmo sem as ocasioes que Gino me proporcionava, acabaria por manifestar-se.

Entretanto, a ideia do casamento era mais importante para mim que qualquer outra. Ajudava minha mae o mais que podia, a fim de ganhar dinheiro, e deitava-me sempre muito tarde. Nos dias em que nao posava no atelier corria os armazens com Gino, para escolher os moveis e as coisas para o enxoval. Tinha pouco dinheiro para gastar, o que tornava as minhas pesquisas mais atentas ainda e mais meticulosas. Pedia para ver objectos que sabia bem que nao podia comprar, examinava-os longamente, discutindo o preco com o vendedor; depois, mostrando pouco entusiasmo e prometendo voltar, saia sem nada comprar. Nao notava que estas incursoes cobicosas pelas lojas. Este exame angustioso dos objectos que me estavam interditos me levavam a reconhecer, mau grado meu, como minha mae tinha razao no que dizia: sem dinheiro nao se tem direito a mais pequena felicidade. Depois da minha visita a moradia, foi a segunda vez que eu deitei os olhos sobre o paraiso da riqueza: vendo-me excluida sem que tivesse culpa nao me podia impedir de experimentar alguma amargura e me sentir perturbada. Mas como ja o tinha feito na moradia, esforcei-me no amor por esquecer a injustica, este amor que era o meu unico luxo e permitia que me sentisse igual a todas as outras mulheres mais ricas e com mais sorte do que eu. Depois de muitas discussoes e muitas procuras, decidi-me por fim a fazer as minhas compras: aquisicoes verdadeiramente modestas.

Como o dinheiro nao chegasse, comprei pagando em prestacoes mensais, um quarto completo, estilo moderno, quer dizer, uma cama de casal, uma comoda com espelho fazendo de toucador, duas mesas-de- cabeceira, duas cadeiras e um armario.

Eram coisas extremamente vulgares, feitas em serie e de fabricacao grosseira, mas a paixao que me inspiraram imediatamente estes pobres moveis era incrivel. Tinha mandado caiar as paredes do quarto, pintar de novo as portas e as janelas e raspar o chao tao bem que o nosso quarto era uma ilha de asseio no oceano infecto da casa. O dia em que me levaram os moveis foi sem duvida um dos mais belos da minha vida. Experimentava uma sensacao de incredulidade a ideia de que possuia um quarto como aquele: limpo, claro, arrumado, cheirando a cal e a tinta; e esta incredulidade manifestava-se num contentamento que me parecia inesgotavel. Por vezes, quando tinha a certeza de que minha mae nao me observava, ia para o quarto, sentava-me nos colchoes da cama e ficava horas inteiras a olhar a minha volta. Nao me mexia mais que uma estatua, e contemplava os moveis como se nao acreditasse na sua existencia, como se receasse que se evaporassem de um momento para o outro e so ficassem as paredes; levantava-me as vezes para tirar o po da madeira e puxava o lustro ternamente.

Creio que se me tivesse deixado levar pelos meus sentimentos beijaria a mobilia. A janela, sem cortinas, dava sobre um vasto patio, muito sujo, rodeado de outras casas longas e baixas, como a minha. Tinha-se a impressao de se olhar para um patio de lazareto ou de prisao; mas naquela altura eu vivia em extase e ja nao via o patio: sentia-me tao feliz como se o quarto desse para um lindo jardim cheio de arvores.

Imaginava a nossa vida la dentro, Gino e eu: como dormiriamos e nos amariamos. E saboreava de antemao a aquisicao de outros objectos que compraria assim que pudesse; aqui um vaso para flores, ali um candeeiro, alem um cinzeiro ou qualquer outro bibelot. O meu unico desgosto era nao poder ter uma banheira, se nao parecida com a que tinha visto, pelo menos nova e limpa. Mas tinha decidido que traria sempre o meu quarto limpo e arrumado. A minha visita a moradia convencera-me de que o luxo comecava por duas coisas: a ordem e o asseio.

4

Nesse tempo, como continuasse a posar nos ateliers, criei amizade com um modelo chamado Gisela. Era uma rapariga bem feita, com a pele muito branca, cabelos pretos encrespados, os olhos pequeninos e azuis- escuros e uma boca vermelha. O seu feitio era muito diferente do meu: violento, apaixonado e vibrante, mas ao mesmo tempo pratico e interesseiro; foi exactamente esta diversidade que nos uniu. Nao lhe conhecia outro emprego que o de modelo; mas ela andava muito mais bem vestida do que eu e nao escondia os presentes de um homem que apresentava como noivo. Lembro-me de que naquele Inverno ela usou algumas vezes um casaco preto com gola e punhos de astraca que eu muito lhe invejava. O noivo chamava-se Ricardo, era um rapaz alto e gordo, pacifico e bem nutrido, com uma cara lisa como um ovo, que me pareceu entao bela. Estava sempre reluzindo, cheio de cosmeticos e com fatos novos: o pai era dono de uma loja de gravatas e roupa interior para homem.

Possuia a simplicidade Que se aproxima da imbecilidade: era alegre, bonacheirao e mesmo bom, creio eu; Gisela e ele eram amantes sem que entre eles, suponho, houvesse qualquer promessa de casamento, como existia entre mim e Gino. Gisela, alias sem grandes esperancas, pensava em se casar. Quanto a Ricardo, estou convencida de que a ideia de uma uniao com Gisela nunca lhe tinha aflorado o espirito; a esta, bem mais experiente que eu, tinha-se-lhe metido em cabeca proteger-me e educar-me. Ela tinha — para resumir as coisas — sobre a vida e sobre a felicidade as mesmas ideias de minha mae, salvo que na minha mae estas ideias encontravam uma expressao amarga e violenta porque eram o fruto de decepcoes e privacoes, ao passo que em Gisela esta maneira de ver vinha da sua pratica e fazia-se acompanhar de uma grande suficiencia e de uma

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