grande profundidade. Minha mae, num certo sentido, contentava-se em enunciar essas ideias como se para ela a afirmacao dos principios contasse de antemao para a sua aplicacao. Gisela, pelo contrario, tendo pensado sempre dessa maneira e nao compreendendo que alguem pensasse diferentemente, admirava-se de que eu nao me comportasse exactamente como ela. E foi apenas quando, apesar dos meus esforcos em contrario, deixei transparecer a minha desaprovacao, que o seu espanto se transformou em colera e ciume. Gisela compreendeu de subito que eu nao me limitava a recusar as suas licoes e a sua proteccao, mas ia mais longe, e a condenava do alto das minhas aspiracoes afectuosas e desinteressadas. Foi entao que nasceu no seu espirito, talvez inconscientemente, o desejo de anular essa condenacao, tornando-me igual a ela. Enquanto isso nao acontecia, nao cessava de me repetir que eu era completamente parva em levar esta vida de sacrificios so para me manter honesta; que era uma dor de alma ver-me tao mal vestida; que, se eu quisesse, com a minha beleza poderia mudar por completo de existencia. Acabei por me envergonhar de a deixar convencida de que nunca tinha conhecido qualquer homem e por lhe contar as minhas relacoes com Gino, informando-a ao mesmo tempo de que estavamos noivos e nos casariamos brevemente. Ela perguntou-me imediatamente o que ele fazia, e quando soube que era chauffeur franziu depreciativamente o nariz. Mas nem por isso deixou de me pedir que lho apresentasse.

Gisela era a minha melhor amiga e Gino o meu noivo. Hoje estou a altura de os julgar friamente, mas naquele tempo a minha cegueira perante os seus caracteres era completa. Quanto a Gino, ja disse que o achava perfeito. No que diz respeito a Gisela, talvez notasse os seus defeitos, mas em compensacao julgava que ela tinha um grande coracao e uma grande afeicao por mim, porque atribuia a sua solicitude pela minha sorte nao ao despeito por me achar inocente e ao desejo de me corromper, mas a uma bondade mal compreendida e fora de proposito. Tanto assim que os apresentei, nao sem apreensao; na minha ingenuidade, eu tinha querido que eles se fizessem amigos. A apresentacao foi numa leitaria. Gisela durante todo o tempo mostrou uma atitude claramente hostil.

Pelo lado de Gino, acreditei de principio que ele quisesse seduzir Gisela, porque, seguindo o seu habito, encaminhou a conversa para o assunto da moradia e alongou-se a exaltar a riqueza dos patroes, como se esperasse dissimular assim a classe mediocre da sua condicao. Mas Gisela nao desarmou: persistia na sua atitude hostil. Nao me lembro ja a que proposito, ela encontrou maneira de o fazer notar:

— Teve muita sorte em ter encontrado Adriana!

— Porque? — perguntou Gino, muito admirado.

— Porque habitualmente os chauffeurs arranjam-se com as criadas!

Vi Gino corar; mas ele nao era homem para se deixar apanhar desprevenido.

— E verdade! E verdade! — repetia lentamente, baixando o tom como se considerasse pela primeira vez um facto evidente que ate entao lhe tivesse escapado. — Com efeito o chauffeur que la esteve antes de mim casou justamente com uma cozinheira; compreende-se, e muito natural! Eu devia ter feito o mesmo: os chauffeurs casam com criadas e as criadas com chauffeurs… Pergunto a mim mesmo como nao pensei nisso mais cedo!… Alias — acrescentou negligentemente —, tinha preferido que Adriana deixasse deliberadamente de ser honesta do que ser modelo… nao tanto — continuou levantando a mao, como a prevenir uma objeccao de Gisela — por causa propriamente do oficio, se bem que, para dizer a verdade, nao consigo engolir essa historia de se por toda nua diante dos homens… mas sobretudo porque este trabalho proporciona certas ligacoes de amizade que…

Levantou a cabeca e fez uma careta. Depois, oferecendo a Gisela o seu maco de cigarros:

— Fuma? — perguntou.

De momento Gisela nao soube que responder; limitou-se a recusar o cigarro. Depois olhou o relogio de pulso e disse:

— Adriana, temos de nos ir embora, e tarde.

Era efectivamente tarde.

Despedimo-nos de Gino e saimos da pastelaria. Uma vez na rua, Gisela disse-me:

— Mas tu cometeste um erro enorme!… Eu nunca casaria com um homem assim!

— Nao gostaste dele? — perguntei-lhe ansiosamente.

— Absolutamente nada. Primeiro tinhas dito que ele era alto, e ele e quase pouco mais pequeno do que tu! Tem uns olhos falsos e que nao nos olham de frente… e sempre artificial… Fala de uma maneira tao afectada que se conhece a um quilometro de distancia que nao diz o que pensa… E e de uma vaidade para um chauffeur!

— Mas eu amo-o — objectei.

Ela respondeu-me com calma:

— Sim, so tu, porque ele nao te ama; vais ver que um dia abandona-te.

Fiquei magoada com esta profecia tao segura e tao parecida com a da minha mae. Hoje posso dizer que numa hora, a parte a maldade, Gisela compreendera melhor o caracter de Gino que eu durante tantos meses. Por seu lado, o julgamento que Gino fazia de Gisela era igualmente maldoso, mas tinha que reconhecer em seguida que, parcialmente pelo menos, era e acto. Na realidade, estava cega nao so pela minha inexperiencia mas tambem pela afeicao que dedicava aos dois…

Quando se pensa mal das pessoas, esta-se quase sempre perto da verdade!

— A tua Gisela — disse-me ele — e o que na minha terra se chama uma boa tipa!

Olhei-o com um ar espantado. Ele explicou:

— Uma rapariga das ruas. Esta toda orgulhosa de andar bem vestida, mas… como ganha o dinheiro?

— E o seu noivo quem lho da.

— Um noivo diferente todas as noites… entretanto ouve: e preciso escolher entre ela e eu!

— Que queres dizer?

— Quero dizer que es livre de fazer o que quiseres… mas se continuas a dares-te com ela deves renunciar a ver-me… Ou ela ou eu!

Procurei faze-lo mudar de ideias, mas sem resultado. A atitude desdenhosa de Gisela tinha-o com certeza ferido; mas ele devia, na sua antipatia indignada, a mesma fidelidade ao seu papel de noivo que lhe tinha sugerido contribuir para os gastos dos nossos preparativos de casamento.

— A minha noiva nao deve andar com mulheres de ma vida! — repetia com ar inflexivel.

Tomada do mesmo receio inicial de ver ir por agua abaixo o meu casamento, acabei por lhe prometer nao tornar a ver Gisela, mas sabia no meu coracao que nao poderia cumprir a promessa, ate mesmo pela impossibilidade de o fazer: Gisela e eu posavamos a mesma hora no mesmo atelier!

Desde esse dia continuei a falar-lhe as escondidas de Gino.

Quando estavamos juntas, ela nunca perdia oportunidade de fazer alusoes ironicas e desdenhosas ao meu noivado. Eu tinha a ingenuidade de lhe fazer confidencias a respeito das minhas relacoes com Gino; era justamente destas confidencias que ela se servia para me ferir e me representar a minha vida presente e futura sob as cores mais negras. Como o seu amigo Ricardo parecia nao notar a minima diferenca entre ela e eu, considerando-nos as duas como raparigas faceis, que nao mereciam qualquer respeito, ele prestava-se de boa vontade as brincadeiras de Gisela e reforcava as piadas, mas de maneira estupida e sem malicia, porque, como ja disse, nao era inteligente nem mau. Para ele o meu noivado nao era outra coisa que um assunto para boas gracolas, para matar o tempo.

Mas Gisela, a quem a minha virtude fazia o efeito de uma censura viva, e que queria tornar-me igual a ela, para me tirar o direito de a desaprovar, punha nas suas gracolas encarnicamento e azedume, procurando por todas as formas mortificar-me e humilhar-me. Atacava sobretudo o meu ponto fraco: a maneira de vestir.

— Hoje — dizia — tenho francamente vergonha de andar contigo!

Ou entao:

— O Ricardo nao permitiria que eu saisse com esses trapos em cima de mim. Nao e verdade, Ricardo?

— Isso e que e um indice de amor, minha querida! Ingenuamente eu caia nesta grosseira armadilha. Exaltava-me, defendia Gino, defendia mesmo os meus vestidos, por vezes com pouca conviccao, mas acabava sempre por perder, corar e ficar com lagrimas nos olhos. Um dia Ricardo teve pena de mim e declarou:

— Hoje vou dar um presente a Adriana. Vou oferecer-lhe uma mala!

Mas Gisela opos-se violentamente a este oferecimento, declarando:

— Nao, nao! Nada de ofertas. Ela tem o seu Gino. Que faca com que ele lhe de presentes!

Ricardo, que se propusera oferecer-me a mala por pura bondade de alma, sem imaginar nem por sombras

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