o prazer que me teria dado a sua oferta, renunciou logo a sua ideia; e eu, por ponto de honra, fui nessa mesma tarde comprar uma mala com o meu dinheiro. No dia seguinte apareci aos amantes com a minha mala no braco e disse-lhes que tinha sido um presente de Gino. Foi a unica vitoria que consegui no decurso destas deploraveis escaramucas. Custou-me muito, porque era uma boa mala, e a paguei muito cara.

Quando Gisela julgou ter-me mortificado e humilhado suficientemente, a forca de ironias, de vexames e de sermoes, chamou-me e disse que tinha uma coisa importante a comunicar-me :

— Mas vais deixar-me falar ate ao fim! — explicou. Nao vais mostrar-te intransigente, como e teu habito, antes de teres compreendido?

— Conta — disse-lhe.

— Sabes que sou muito tua amiga — comecou. — Considero-te como uma irma. A tua beleza permitir-te- ia teres tudo o que quisesses… Faz realmente pena ver-te sempre vestida como uma pedinte.

Aqui parou e olhou-me com ar solene.

— Ha um senhor extremamente distinto, muito serio… que te viu e se interessa imenso por ti. Ele e casado, mas a familia esta na provincia. E um grande da policia — acrescentou baixando a voz. — Se tu quiseres, eu posso apresentar-to. Como te digo, e um senhor muito serio e muito fino; com ele podes estar certa de que mais ninguem sabera… De resto, ele esta muito ocupado e so te encontrarias com ele duas ou tres vezes por mes. Nao ha inconveniente em que continues essa historia com o Gino, se isso te agrada… nem mesmo que te cases… mas ele procurara proporcionar-te uma vida melhor do que a que tens agora. Que dizes?

— Agradeco-te muito mas nao posso aceitar! — respondi peremptoriamente.

— Mas porque? — gritou ela, sinceramente estupefacta.

— Porque nao. Amo o Gino, e se aceitasse nunca mais poderia olha-lo de frente.

— E ideia tua, porque Gino nada sabera!

— E justamente por isso!

— Pensar — pronunciou entao como se falasse consigo propria — que se aqui ha uns tempos me tivessem feito uma oferta semelhante! Entao, que devo dizer-lhe? Nao queres reflectir?

— Nao, nao! Nao aceito!

— Es uma idiota! — disse-me Gisela, desapontada. — A isto chama-se recusar a fortuna!

Acrescentou muitas coisas do mesmo genero, as quais respondi sempre da mesma maneira, e foi-se embora muito descontente.

Eu tinha recusado esta oferta com um grande entusiasmo, sem lhe discutir o valor. So uma vez experimentei como que um sentimento de arrependimento; podia ser, apesar de tudo, que Gisela tivesse razao, podia ser esta a unica maneira de obter tudo de que tao desesperadamente precisava. Mas afastei este pensamento e agarrei-me de preferencia a ideia do casamento e da existencia pobre, mas honesta, que tinha tracado para mim.

O sacrificio que me tinha imposto punha-me entretanto na obrigacao de me casar a todo o custo; era ainda mais forcoso que anteriormente.

Nao consegui resistir a um sentimento de vaidade e informei minha mae da oferta de Gisela. Pensei que isso lhe agradaria duplamente: sabia ate que ponto ela estava orgulhosa da minha beleza e quais as suas ideias; esta oferta inflamava o seu orgulho e confirmava o bom fundamento das suas conviccoes. Mas fiquei estupefacta com a agitacao que lhe provocou a minha noticia. Os olhos brilharam de avidez; todo o seu rosto corou de contentamento:

— Mas quem e? — perguntou por fim.

— Um senhor rico — disse-lhe. Tinha vergonha de confessar que era um policia.

— Ela disse que ele era muito rico?

— Sim… parece que ganha muitissimo bem!

Nao ousava exprimir o que visivelmente pensava: que tinha feito mal em recusar a oferta.

— Ele viu-te — repetiu — e disse-lhe que se interessava por ti… Porque nao to apresentou?

— A que proposito, se eu nao posso?

— Que pena ele ja ser casado!

— Mesmo que fosse solteiro nao o queria conhecer.

— Ha tanta maneira de fazer as coisas! — disse minha mae. — alguem que e rico… gosta de ti… uma coisa leva a outra… podia ajudar-te… sem te pedir nada!

— Nao, nao! — respondi. — Essa gente nada da sem receber em troca.

— Nunca se sabe.

— Nao, nao — repetia eu.

— Nada quer dizer — disse minha mae abanando a cabeca… — Isso nao impede que Gisela seja uma boa rapariga e que tenha verdadeira afeicao por ti. Outra qualquer teria tido inveja, nao te teria falado. Ela, ao contrario, mostrou ser uma verdadeira amiga!

Depois da minha recusa, Gisela nao me tornou a falar do tal senhor distinto e, com grande espanto meu, deixou de me picar a proposito do meu noivado. Continuava a ve-la as escondidas, assim como a Ricardo, mas mais de uma vez falei nela a Gino com o desejo de uma reconciliacao, porque estes subterfugios me desgostavam. Ele nem me deixava acabar de falar; renovava as suas expressoes de raiva e jurava que se soubesse que eu a tornara a ver tudo acabaria entre nos. Falava seriamente e eu tinha quase a impressao de que teria de boa vontade aproveitado este pretexto para desfazer o casamento! Falei a minha mae desta antipatia de Gino por Gisela e minha mae declarou, sem parecer por maldade nesta observacao:

— Ele nao quer que andes com Gisela porque tem medo que tu facas a comparacao dos trapos com que sais e as toalettes que o noivo dela lhe da.

— Nao! Somente diz que Gisela nao lhe agrada.

— Ele e que nao agrada… Se Gino pudesse saber que tu falas com Gisela e rompesse contigo!

— Mae! — gritei, apavorada. — Que nem sequer te passe pela cabeca dizer-lho!

— Nao, nao! — respondeu muito depressa, como que arrependida. — Isso sao assuntos vossos, nao sao da minha conta!

— Se lhe fores dizer — gritei, pondo toda a minha paixao neste grito. — Nunca mais me veras!

Estavamos no Verao de S. Martinho e os dias eram tepidos e limpidos. Gisela disse-me um dia que anuira a fazer uma pequena viagem de automovel: ela, Ricardo e um seu amigo.

Precisava-se de outra senhora para fazer companhia ao amigo e tinham pensado em mim. Aceitei com alegria, porque na mesquinhez da minha vida estava sempre a espreita de tudo o que me pudesse torna-la menos insipida. Disse a Gino que era obrigada a fazer um trabalho extraordinario, e de manha, pontualmente, eu estava no local marcado, que era do outro lado da ponte Milvio. O carro ja me esperava, e quando me aproximei nem Gisela nem Ricardo, sentados no banco da frente, se mexeram, mas o amigo de Ricardo saltou em terra e veio ao meu encontro. Era um homem novo, de meia estatura, calvo, a cara amarelenta, com grandes olhos pretos, um nariz aquilino e uma boca larga, com as comissuras dos labios parecendo sorrir.

Estava vestido com elegancia, mas num estilo diferente do de Ricardo, um estilo classico: casaco cinzento-escuro, calcas de um cinzento mais claro, colarinho engomado e gravata preta com uma perola. Tinha uma voz doce. Os olhos tambem me pareceram doces, mas igualmente melancolicos e como que entristecidos.

Era extremamente cortes, mesmo cerimonioso. Gisela apresentou-mo dando-lhe o nome de Estevao Astarito e tive logo a conviccao de que se tratava do senhor distinto cujas galantes propostas ela me tinha transmitido. Mas nao fiquei contrariada por travar este conhecimento, porque no fundo achava que as suas propostas nada tinham de ofensivo: lisonjeavam-me mesmo, num certo sentido. Estendi-lhe a mao; levou-a aos labios com uma devocao estranha, de uma intensidade quase dolorosa. Depois subi, ele sentou-se ao meu lado e o carro arrancou. Enquanto o automovel rolava por entre campos amarelecidos, sobre uma estrada nua e inundada de sol, nao falamos quase nada. Eu estava feliz por andar de automovel, feliz por dar um passeio, feliz pelo ar que passava atras da janela e me batia em cheio no rosto.

Era talvez a segunda ou terceira vez na minha vida que eu dava um passeio longo de automovel e tinha receio de nao o desfrutar bastante; escancarava os olhos procurando observar o maior numero possivel de coisas: molhos de palha, quintas, arvores, campos, colinas, bosques. Pensava que passariam meses, talvez anos, antes que eu pudesse dar um passeio igual, que tinha que gravar todos os pormenores na memoria de maneira a possuir uma recordacao precisa que lembraria sempre que quisesse. Mas Astarito, afastado, muito direito, nao

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