gaiola.

Wales era um sujeito generoso e fazia questao de sempre me dar um presente apos cada voo: um sueter, um novo par de luvas de esqui, uma carteira, coisas assim. Eu ganhava o bastante para comprar tudo de que precisava e nao me agradava a ideia de receber gorjetas, mas sabia que ele se sentiria insultado se eu recusasse os seus presentes. Nao era um sujeito desagradavel. Apenas demasiado bem-sucedido.

– Linda manha, hem, Doug? – disse Wales atras de mim. Era um homem irrequieto, que ate num aviao pequeno parecia estar sempre andando. Daria um pessimo piloto. Trouxe para a cabina um cheiro de alcool. Sempre viajava com uma garrafinha revestida de couro.

– E… 1… linda – respondi. Desde garoto eu gaguejava e por isso procurava falar o minimo possivel. As vezes, ficava pensando no que a minha vida poderia ter sido se eu nao tivesse esse defeito, mas nao me deixava abater por causa disso.

– Deve estar otimo para esquiar – disse Wales.

– E, otimo – concordei. Nao gostava de falar quando estava pilotando, mas nao podia dizer isso a Wales.

– Vamos a Sugarbush – continuou ele. – Voce vai estar la neste fim de semana?

– A… a… acho que sim – respondi. – C… combinei com uma garota esquiar c… com ela. – A garota chamava-se Pat Minot. O irmao dela trabalhava nos escritorios da companhia de aviacao, e eu a conhecera atraves dele. Ensinava historia no ginasio e eu combinara encontrar-me com ela as tres, quando as aulas terminassem. Esquiava muito bem e era, alem disso, muito bonita, miuda, morena e interessante. Conhecia-a havia mais de dois anos e fazia quinze meses que tinhamos um caso bastante irregular, pelo menos no que dizia respeito a ela, pois durante semanas a fio ela me mantinha a distancia, com um pretexto ou outro, e quase nao reparava em mim quando nos encontravamos por acaso. Depois, de repente, sugeria que saissemos juntos. Pelo sorriso em seu rosto, eu ja sabia quando e que ela estava entrando numa fase nao irregular.

Era uma garota popular, que teimava em permanecer solteira; segundo seu irmao, todos os amigos dele lhe tinham feito a corte. Se tinham sido bem sucedidos ou nao, eu nunca descobrira. Sempre fui timido com as garotas e nao me podia gabar de ter andado atras dela. Tampouco podia dizer que ela andava atras de mim. Tudo aconteceu simplesmente, depois de esquiarmos juntos um longo fim de semana em Sugarbush. Apos a primeira noite, eu lhe dissera:

'Esta foi a melhor coisa que ja me aconteceu'.

Ao que ela replicara apenas:

'Pss'.

Nunca soube se estava ou nao apaixonado por Pat. Se ela nao estivesse sempre insistindo para que eu curasse a gagueira, acho que lhe teria pedido para casar-se comigo. O proximo fim de semana, pensava eu, seria decisivo. Mas estava resolvido a ser cauteloso, a deixar abertas todas as saidas.

– Otimo! – exclamou Wales. – Vamos jantar juntos esta noite!

– Obrigado, G… George – respondi. Desde o inicio ele insistira para que eu os tratasse pelos nomes de batismo. – S… seria otimo. – Jantar com outro casal adiaria decisoes, dar-me-ia tempo para sondar os sentimentos de Pat e reavaliar os meus.

– Vamo-nos por a caminho logo que aterrarmos – continuou Wales. – Assim, poderemos comecar a esquiar ainda esta tarde. E voce? Quer que a gente o espere na pensao?

– A… acho que n… nao. Tenho exame m… medico marcado, esta tarde, e n… nao sei quando vou f… ficar livre.

– Mas voce janta conosco? – insistiu Wales.

– J… janto.

– Doug – disse Wales -, sera que voce tem tres semanas livres seguidas? No inverno, claro?

– N… nao – respondi. – Estamos em plena temporada. P… por que?

– Eu e Beryl vamos a Zurique num charter em principios de fevereiro. – Beryl era a mulher dele. – Damos sempre um jeito de passar tres semanas nos Alpes… Voce ja esquiou la?

– N… nunca sai dos Estados Unidos. Exceto uns d… dias que estive no Canada.

– Voce ficaria maluco – disse ele. – Umas encostas de sonho! Gostariamos que fosse conosco. Sou socio de um clube e a viagem sai baratissima. Menos de trezentos dolares ida e volta. O nome do clube e Christie Ski Club. E nao e so por ser barato, logico! A companhia e espetacular, a melhor turma do mundo para se viajar, sem falar na bebida gratis. E nao e preciso preocupar-se com excesso de bagagem ou com a alfandega suica. Eles deixam voce passar com um sorriso. A pessoa tem de ser socia do clube pelo menos ha seis meses, mas eles nao ligam muito para isso. Conheco uma moca que trabalha na secretaria, o sobrenome dela e Mansfield, ela arranja tudo. E so voce lhe dizer que e meu amigo. No inverno, ha voos quase todas as semanas. No ano passado, estivemos em St.Moritz e este ano vamos para St. Anton. Voce botaria os austriacos no chinelo e as austriacas ficariam caidinhas.

– I… imagine! – falei, com um sorriso.

– Pense no assunto – disse Wales. – Vai divertir-se como nunca.

– P… pare de tentar um pobre trabalhador – falei.

– Que diabo! – exclamou Wales. – Todo mundo tem direito a ferias.

– V… vou pensar no c… caso – prometi.

Ele voltou para o seu assento, deixando o cheiro de uisque na cabina. Quanto a mim, conservei os olhos no horizonte, nitidamente delineado contra o azul brilhante do ceu hibernai, tentando nao ter inveja de um homem como Wales, sem jeito nenhum para esquiar, mas que podia deixar de trabalhar tres semanas e gastar milhares de dolares para esquiar nos Alpes.

Depois de passar pelo escritorio e confirmar que nao havia servico naquele fim de semana, dirigi-me a cidade no meu Volkswagen para o exame medico rotineiro que fazia duas vezes por ano. O Dr. Ryan era especialista em oftalmologia, mas fazia tambem clinica geral. Um velho agradavel, de movimentos lentos, que ha cinco anos me auscultava, tirando-me a pressao arterial e examinando-me os olhos e os reflexos. Exceto numa ocasiao, em que eu adoecera de gripe, nunca me receitara sequer uma aspirina. 'Em forma para o Grande Premio', dizia-me sempre, quando terminava de me examinar. Compartilhava do meu interesse por corridas de cavalos e, de vez em quando, telefonava para minha casa, quando descobria um animal muito pouco cotado e que, na sua opiniao, era uma barbada.

O exame seguiu a rotina habitual, com o medico anuindo confortavelmente a cada teste. Foi so quando me examinou os olhos que sua expressao mudou. Li as letras bem, mas, quando ele utilizou os instrumentos para me ver os olhos, seu rosto tornou-se serio. A enfermeira entrou duas vezes no consultorio para lhe dizer que havia pacientes esperando com hora marcada, mas ele mandou-a embora com um gesto brusco. Aplicou-me uma serie de testes que eu nao conhecia, fazendo-me olhar em frente, enquanto ele conservava as maos no colo, e depois erguendo lentamente as maos e pedindo-me para lhe dizer quando elas entrassem no meu campo de visao. Finalmente, pos de lado os instrumentos, sentou-se pesadamente a sua escrivaninha, suspirou e passou a mao fatigadamente pelo rosto.

– Sr. Grimes – disse, por fim -, sinto ter de lhe dar mas noticias.

As noticias que o velho Dr. Ryan me deu naquela manha de sol, no seu consultorio demode, modificaram toda a minha vida.

– O nome cientifico da doenca – continuou ele – e retinosquise. Trata-se de uma fissura das dez camadas da retina, dando origem a um quisto. Na maioria dos casos, nao progride, mas e irreversivel. As vezes, podemos deter a doenca operando com raio laser. Uma de suas manifestacoes e o bloqueio da visao periferica. No seu caso, da visao periferica para baixo. Para um piloto, que tem de estar alerta a todo um conjunto de mostradores a frente e em volta, bem como ao horizonte na direcao do qual avanca, e uma doenca incapacitadora… Fora disso, para todos os outros fins, como ler, praticar esportes, etc, o senhor pode considerar-se normal.

– Normal – repeti. – Normal! O senhor sabe que a unica coisa normal para mim, doutor, e voar. Foi sempre a unica coisa que eu quis fazer, a unica coisa para a qual me preparei…

– Vou mandar o relatorio ainda hoje, Sr. Grimes – disse Ryan. – Com profundo pesar. Naturalmente, o senhor pode consultar outro medico. Outros medicos. Acho que nao vao poder ajuda-lo, mas essa e apenas a minha opiniao. No que me diz respeito, a partir deste momento o senhor nao vai poder mais voar. Nunca mais. Sinto muito.

Lutei para reprimir o odio que senti por aquele velho bem-posto, sentado entre os seus instrumentos, assinando atestados condenatorios com a sua letra complicada de medico. Sabia que nao tinha razao, mas aquele nao era o momento para pensar em razoes. Sai do consultorio sem apertar a mao de Ryan, dizendo 'Maldicao, maldicao' em voz alta para mim mesmo, nao ligando para as pessoas na sala de espera e na rua, que me olhavam intrigadas enquanto me dirigia para o bar mais proximo. Sabia que nao podia voltar ao aeroporto e dizer o que teria de dizer sem antes me fortalecer. E muito bem.

O bar era decorado como um pub [1] ingles, todo em madeira escura e com canecas de latao nas paredes. Mandei vir um uisque. Um velho magro, de macacao caqui e bone de cacador vermelho, estava encostado ao balcao do bar, com um copo de cerveja a sua frente.

– Estao poluindo todo o lago – dizia ele, num sotaque de Vermont. – A fabrica de papel. Em cinco anos, vai ficar como o lago Erie. E continuam botando sal nas estradas, para esses idiotas de Nova York poderem correr a cento e vinte por hora ate Stowe, Mad River e Sugarbush. Quando a neve derrete, o sal escorre para os lagos e os rios. Quando eu morrer, nao vai haver nenhum peixe vivo em todo o Estado. E ninguem toma medidas contra isso. Ainda bem que nao vou viver para ver.

Pedi outro uisque. O primeiro nao me fez qualquer efeito. Nem o segundo. Paguei e entrei no carro. Pensar que o lago Champlain, onde nadara todos os veroes e passara tantos dias felizes, velejando ou pescando, ia acabar pareceu-me mais triste do que tudo o que me havia acontecido.

Quando entrei no escritorio vi, pela expressao no velho rosto de Cunningham, que o Dr. Ryan ja se comunicara com ele. Cunningham era o presidente e unico dono da pequena companhia de aviacao, alem de piloto veterano da Segunda Guerra, de modo que sabia como eu me sentia.

– V… vou-me embora, Freddy – falei. – Voce sabe p… por que.

– Sei – respondeu ele. – E sinto muito – acrescentou, brincando nervosamente com um lapis que havia sobre sua mesa. – Voce sabe que sempre lhe podemos arrumar um trabalho aqui. Quem sabe no escritorio… na manutencao… – A voz foi sumindo, e ele ficou olhando para o lapis.

– Obrigado – falei. – E muito gentil de sua parte, mas nao adianta. – Se havia alguma coisa de que eu tinha a certeza era que nao ia poder ficar ali, como um passaro aleijado, vendo todos os meus amigos decolarem. E nao queria acostumar-me com o olhar de piedade no rosto de Freddy Cunningham ou em qualquer outro rosto.

– De qualquer maneira, Doug, pense bem – disse Cunningham.

– N… nao e preciso – retruquei.

– Quais sao os seus planos?

– Em primeiro lugar – respondi -, ir embora daqui.

– Para onde?

– Para qualquer lugar.

– E depois?

– Depois, vou pensar no que fazer com o resto da minha vida – respondi, gaguejando duas vezes na palavra 'vida'.

Ele fez que sim com a cabeca, evitando olhar para mim, parecendo muito interessado no lapis.

– Que tal voce anda de dinheiro?

– Tenho o bastante… por ora.

– Bem – disse -, se alguma vez… voce sabe que pode contar sempre comigo, nao?

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