Abri a grande porta de vidro da frente, reforcada por uma pesada grade de ferro forjado. Para um hotel velho e decadente como o St. Augustine, a gerencia parecia demasiado preocupada com a seguranca. A mulher empurrou a porta impacientemente e correu para a rua escura. Respirei fundo o ar frio da noite, enquanto o ruido dos saltos altos diminuia na direcao da Lexington Avenue. Fiquei ainda um momento parado na porta, olhando para a rua, na esperanca de que uma radiopatrulha passasse por ali. Sentir-me-ia muito melhor se pudesse subir ao sexto andar com um policial do lado. Nao me pagavam para bancar o heroi solitario. Mas a rua estava vazia. Ouvi uma sirena a distancia, provavelmente na Park Avenue, o que nao adiantava. Fechei a porta, tranquei-a e atravessei lentamente o hall na direcao do escritorio, pensando: 'Sera que vou passar o resto da minha vida abrindo portas para prostitutas?'

'Louvai-o com cordas e orgaos.'

No escritorio, tirei a chave-mestra da gaveta, olhei um momento para a pistola. Abanei a cabeca e fechei a gaveta. Nao fora minha ideia colocar ali a pistola. Nao tinha adiantado, na noite em que os dois viciados tinham entrado e carregado todo o dinheiro que havia, deixando o meu predecessor banhado em sangue no chao, com um galo do tamanho de um melao na cabeca.

Vesti o paleto, como se o fato de estar convenientemente trajado me desse mais autoridade perante qualquer situacao que se me deparasse no sexto andar, e dirigi-me de novo para o hall, fechando a chave a porta do escritorio. Apertei o botao do elevador e ouvi o guincho dos cabos e do elevador descendo.

Quando a porta se abriu, com um rangido, hesitei antes de entrar. Talvez, pensei, eu devesse voltar ao escritorio, pegar o meu sobretudo, meu sanduiche e minha cerveja e dar o fora dali. Quem precisava daquele empreguinho a-toa? Mas, quando a porta comecou a se fechar, eu entrei.

Mal cheguei ao sexto andar, apertei o botao que mantinha a porta do elevador aberta e sai para o corredor. Uma luz estava acesa no quarto bem em frente do elevador, de numero 602. Sobre o tapete gasto do corredor, metade na sombra e metade na luz, estava um homem nu, caido de brucos, a cabeca e o tronco na sombra, as nadegas enrugadas e as pernas magras de velho obscenamente iluminadas. O braco esquerdo estava estendido, os dedos da mao dobrados, como se o homem tivesse procurado segurar algo ao cair. O braco direito estava debaixo do seu corpo e todo ele estava imovel. Ao me inclinar para vira-lo, ja tinha a certeza de que nada que eu pudesse fazer, nem ninguem que eu pudesse chamar lhe poderia valer.

O homem era pesado, com uma grande barriga flacida que nao combinava com as pernas e as nadegas magras, e resmunguei, ao colocar o corpo de costas. Foi entao que vi o que a prostituta tinha dito que o homem havia brandido em sua direcao e que lhe parecera um bastao de beisebol. Nao era um bastao e sim um longo tubo de papelao, embrulhado em papel pardo, do tipo que os artistas e arquitetos usam para carregar gravuras e plantas sem amassar. A mao do homem continuava a segura-lo. Nao me espantava que a mulher tivesse ficado apavorada. A luz fraca do corredor, tambem eu teria ficado apavorado se um homem nu tivesse surgido de repente, brandindo aquilo ameacadoramente para cima de mim.

Levantei-me, sentindo um arrepio percorrer-me, juntando coragem para tocar uma vez mais no corpo. Olhei para o rosto sem vida. Os olhos estavam abertos, como que olhando para mim, a boca torcida numa ultima careta torturada. Emitindo grunhidos de animal, dissera a prostituta. Nao havia sangue, nenhum sinal de ferimento. Eu nunca vira aquele homem, mas issO nao era de espantar, pois muitas vezes entrava de servico depois que os hospedes ja se tinham recolhido e saia antes que eles descessem, de manha. Tinha uma cara redonda e gorda de velho, com um nariz grande e carnudo e um resto de cabelo grisalho no cranio quase calvo. Mesmo descomposta pela morte, era uma face que traduzia poder e importancia.

Lutando contra a nausea crescente, ajoelhei-me e encostei o ouvido ao peito do homem. Tinha mamas como as de uma velha, com alguns fios de cabelo branco e umido e mamilos quase verdes a luz eletrica. O corpo continuava cheirando a suor, mas sem-movimento, sem ruido. 'Velhinho,' pensei, levantando-me, 'por que diabos voce foi morrer justamente no meu plantao?'

Curvei-me de novo, coloquei as maos sob as axilas do morto e arrastei-o pela porta aberta do quarto numero 602. Nao se pode deixar um corpo nu caido no corredor, sem mais nem menos. O tempo que eu trabalhava na industria hoteleira ja dava para saber que um morto era coisa que nao se deixava a vista dos hospedes.

Ao puxar o corpo para o pequeno hall que comunicava com o quarto, o tubo de papelao rolou para o lado. Coloquei o corpo no quarto, ao lado da cama, que era uma confusao de lencois e cobertores, com manchas de batom sobre os travesseiros. Provavelmente da mulher para quem eu abrira a porta a uma da manha. Contemplei, com um pouco de piedade, o velho corpo nu sobre o tapete gasto, a carne flacida e sem vida contra o papel de parede desbotado. Uma ultima erecao. O prazer e, depois, a morte.

Uma mala de tamanho medio mas de aparencia cara, de couro, estava aberta em cima da pequena penteadeira. Junto dela havia uma carteira velha e um clipe de notas, de ouro, com algumas notas presas. Na mala, viam-se tres camisas limpas, muito bem dobradas.

Sobre a penteadeira havia algumas moedas. Contei o dinheiro no clipe: quatro notas de dez dolares e tres de um. Deixei cair o clipe de novo e peguei a carteira. Dentro dela havia dez notas novinhas, de cem dolares cada. Assobiei baixinho. Fosse o que fosse que tinha acontecido nessa noite ao velho, ele nao fora roubado. Coloquei as dez notas de novo na carteira, que por sua vez pus cuidadosamente em cima da penteadeira. Nao me ocorreu tirar nenhuma nota. Eu tinha sido criado assim. 'Nao roubaras.' Nao faras uma porcao de coisas.

Olhei para a maleta aberta. Junto das camisas havia duas cuecas muito bem passadas, uma gravata listrada, dois pares de meias, um pijama azul. Fosse ele quem fosse, o hospede do numero 602 ia ficar em Nova York mais tempo do que havia planejado.

O cadaver no chao me oprimia, como se eu fosse em parte responsavel por ele. Peguei um dos cobertores sobre a cama e joguei-o em cima do corpo, cobrindo com ele o rosto, os olhos abertos, os labios que, apesar de mudos, pareciam gritar. Senti-me mais confortavel, a morte era agora apenas uma forma geometrica no chao.

Voltei ao corredor para apanhar o tubo de papelao. Nao havia nele etiquetas, enderecos ou qualquer identificacao. Ao leva-lo para o quarto, vi que o grosso papel pardo tinha sido rasgado bem em cima. Ia po-lo sobre a penteadeira, junto dos outros pertences do morto, quando vislumbrei uma ponta de papel verde que saia pela abertura. Puxei-a. Era uma nota de cem dolares, nao nova, como as cedulas da carteira, mas velha e amassada. Segurei o tubo a fim de poder olhar para dentro dele. Ate onde eu podia ver, estava cheio de notas. Permaneci um momento imovel; depois, enfiei a cedula que tinha puxado novamente para dentro do tubo, alisando o papel pardo da melhor maneira possivel.

Com o tubo debaixo do braco, sai do quarto, apaguei a luz e fechei a porta do apartamento 602 com a chave-mestra. Tudo isso com gestos rapidos e precisos, quase automaticos, como se toda a vida eu tivesse ensaiado para aquele momento, como se nao houvesse alternativas.

Peguei o elevador para o hall e abri a porta do cubiculo vizinho ao escritorio. Sobre o cofre havia uma prateleira cheia de papel de carta, contas velhas e revistas rasgadas, tudo apanhado nos quartos. Retratos de politicos falecidos, mulheres nuas que agora ja nao estariam em condicoes de ser fotografadas – mortos ilustres, mulheres desejaveis, assassinos de monoculo, artistas de cinema, autores famosos -, uma coletanea de acontecimentos recentes e antigos do panorama americano. Sem hesitar, estendi o braco e empurrei o tubo contra a parede ate ficar fora da vista, por tras de todos aqueles testemunhos de escandalos e prazeres.

Voltei para o escritorio iluminado e telefonei pedindo uma ambulancia.

Depois sentei-me, desembrulhei novamente o sanduiche e abri a garrafa de cerveja. Enquanto comia e bebia, olhei para o livro de registro. O hospede do numero 602 era um tal John Ferris, que entrara na tarde do dia anterior dando como endereco permanente um numero na North Michigan Avenue, em Chicago, Illinois.

Estava terminando a minha cerveja quando a campainha tocou e vi dois homens saindo de uma ambulancia. Um vestia um avental branco e carregava uma maca dobrada. O outro trajava um uniforme azul e trazia na mao uma maleta preta, mas eu sabia que nao era medico. Em Manhattan, nao se desperdicam medicos em ambulancias, aproveitam-se os enfermeiros capazes de prestar primeiros socorros sem matar os pacientes no local. Quando eu estava abrindo a porta, uma radiopatrulha aproximou-se e um policial saiu.

– Que foi que houve? – perguntou o policial, homem troncudo, de queixada escura e olheiras profundas.

– Um velho morreu la em cima – respondi.

– Vou com eles, Dave – disse o policial para seu colega ao volante. Ouvi o radio do carro transmitindo ordens, despachando policiais para acidentes, casos de homens surrando mulheres, suicidios, ruas onde homens de aspecto suspeito tinham sido vistos entrando em edificios.

Calmamente, conduzi o grupo atraves do hall. O enfermeiro era jovem e bocejava como se nao dormisse ha semanas. As pessoas que trabalham a noite tem todas o ar de estarem sendo castigadas por algum pecado sem nome. No chao despido do hall, os sapatos do policial pareciam ter solas de chumbo. Subindo no elevador, ninguem falou. Nao prestei qualquer informacao. Um cheiro de medicamentos encheu o elevador. Carregam o hospital com eles, pensei. Teria preferido que a radiopatrulha nao tivesse chegado junto com a ambulancia.

Quando saimos no sexto andar, abri a porta do apartamento 602 e entrei na frente. O enfermeiro puxou o cobertor de cima do morto, inclinou-se sobre ele e colocou o estetoscopio no peito do homem. O policial ficou aos pes da cama, percorrendo com os olhos os lencois manchados de batom, a mala em cima da penteadeira, a carteira e o clipe de dinheiro ao lado.

– Voce quem e, cara? – perguntou-me ele.

– Sou recepcionista da noite.

– Qual e o seu nome? – perguntou ele, num tom de acusacao, como se tivesse a certeza de que eu lhe daria um nome falso. Que teria ele feito, se eu tivesse respondido: 'Meu nome e Ozimandias, rei dos reis'? Provavelmente puxaria do seu livrinho preto e escreveria: 'Testemunha declara chamar-se Ozimandias. Na certa, um apelido'. Era um verdadeiro policial noturno, fadado a patrulhar uma cidade as escuras, pulando de inimigos e de emboscadas.

– Meu nome e Grimes – respondi.

– Cade a mulher que esteve com ele?

– Nao tenho ideia. Abri a porta para uma mulher a uma da manha. Talvez fosse a dita. – Espantosamente, nao gaguejei.

O enfermeiro levantou-se e, tirando o estetoscopio dos ouvidos, declarou, secamente:

– Esta morto.

Ora, eu podia ter afirmado isso sem precisar chamar uma ambulancia! Quantos movimentos inuteis numa grande cidade!

– De que foi que ele morreu? – perguntou o policial. – Esta ferido?

– Nao. Deve ter sido um enfarte.

– Alguma coisa a fazer?

– Acho que nao – disse o enfermeiro. – So a rotina. – Inclinou-se novamente, revirou as palpebras do morto e examinou-lhe os olhos sem vida. Depois, apalpou o pescoco com maos suaves e habeis.

– Voce parece saber o que esta fazendo, amigo – comentei. – Deve ter muita pratica.

– Estou no segundo ano de medicina – respondeu ele. – Faco isto para poder comer.

O policial aproximou-se da penteadeira e pegou no clipe de dinheiro.

– Quarenta e tres dolares – falou. – E, na carteira… – As espessas sobrancelhas se ergueram, ao revista-la. Tirou para fora as notas e contou-as. – Dez notas de cem! – exclamou.

– Puxa vida! – assobiei. Mas, pela maneira como o policial me olhou, vi que nao conseguia engana-lo.

– Quanto e que havia na carteira quando voce descobriu o cara? – perguntou ele. Nao era um tira simpatico e humano. Talvez fosse diferente quando estivesse no plantao de dia.

– Nao tenho a menor ideia – respondi. O fato de nao gaguejar ja era um triunfo.

– Vai me dizer que nao olhou?

– Nao olhei.

– Ah, e? E por que?

– Por que o que? – Ainda bem que eu tinha ar de garoto.

– Por que voce nao olhou?

– Nem pensei nisso.

– E… – repetiu o tira, mas nao insistiu. Contou de novo as notas. – Tudo em notas de cem. Um cara com tanto dinheiro podia escolher um lugar melhor para esticar as canelas do que isto aqui. – Recolocou as cedulas na carteira. – Vou levar isto para a delegacia – disse. – Algum de voces quer contar?

– A gente confia no senhor – disse o enfermeiro, com um leve tom de ironia na voz. Era jovem, mas ja entendido em morte e espoliacao.

O policial passou em revista os compartimentos da carteira- Seus dedos eram grossos e cabeludos.

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