Irwin Shaw

Plantao Da Noite

Traducao: Vera Neves Pedroso

Titulo original: Nightwork

Para Gerda Nielsen

CAPITULO I

Era de noite e eu estava sozinho atras da porta trancada, de vidro a prova de balas. La fora, a cidade de Nova York estava envolta no manto negro de janeiro. Durante os ultimos dois anos, seis vezes por semana, eu vinha entrando de servico as onze da noite e saindo as oito da manha. Nao estava satisfeito nem insatisfeito. O lugar era quente, o trabalho nao matava, nao havia necessidade de falar muito.

Tinha tempo para dedicar aos meus interesses, sem ninguem para me dar ordens ou alterar a rotina da noite. Passava uma hora estudando o Jornal do Joquei, preparando as apostas para as corridas do dia seguinte. Era um jornalzinho cheio de vida, escrito com animacao, confiante no futuro, renovando esperancas a cada edicao.

Depois de calcular tempos, pesos, distancias, sol e chuva, eu lia, procurando ter sempre a mao um estoque de livros que me interessavam. Como alimento, havia um sanduiche e uma garrafa de cerveja, que comprava a caminho do trabalho. Duas vezes por noite fazia exercicios de ginastica para os bracos, o ventre, as pernas. Apesar do meu emprego sedentario, aos trinta e tres anos eu me sentia mais forte e em melhores condicoes fisicas do que quando tinha vinte. Tenho pouco menos de um metro e oitenta e tres e peso oitenta e tres quilos. As pessoas ficam espantadas quando lhes digo que peso tudo isso, no que a minha vaidade se compraz. Mas gostaria de ser mais alto. Algumas mulheres me acham com ar de garoto, o que para mim nao e nenhum elogio. Nunca senti necessidade de uma segunda mae. Como a maioria dos homens, preferiria ser o tipo de homem que aparece na televisao como um comandante decidido ou um lider temerario.

Estava somando a maquina, aprontando as contas do dia anterior para o pessoal que entrava de manha. A maquina fazia um barulho semelhante ao de um grande inseto irritado, a cada vez que tocava nas teclas. Mas esse barulho, que a principio me incomodara, agora me parecia familiar e ritmico, calmamente. Para alem do vidro, o bali do hotel estava as escuras. A gerencia economizava eletricidade, como tudo o mais.

O vidro a prova de balas tinha sido colocado diante do balcao depois que o meu predecessor fora assaltado pela segunda vez. Quarenta e tres pontos nao eram brincadeira. Meu predecessor mudara de profissao.

Eu devia aquele emprego ao fato de, por instancia de minha mae, ter feito um ano de contabilidade na escola. Ela insistira para que eu aprendesse pelo menos uma coisa util, conforme dizia. Havia onze anos que eu terminara a faculdade, e minha mae, nesse meio tempo, falecera.

O nome do hotel era St. Augustine. Por que, nao se sabia. Nao havia crucifixos nas paredes, nem nada que lembrasse o sul, a nao ser, talvez, os quatro vasos de plantas no gasto bali. Embora do lado de fora seu aspecto fosse bastante respeitavel, o hotel conhecera dias melhores. Idem para a sua clientela, que pagava pouco e exigia ainda menos. A excecao de dois ou tres hospedes, que costumavam chegar mais tarde, eu quase nao tinha que falar com ninguem. Nao aceitara o emprego pelas suas oportunidades de conversacao. Muitas vezes, noites inteiras transcorriam sem que uma unica luz se acendesse no painel.

Ganhava cento e vinte e cinco dolares por semana. Morava num quarto-e-sala conjugado, na 81? Street, East.

Nessa noite, eu so fora interrompido uma vez, por uma prostituta que descera pouco depois da uma hora e a quem eu abrira a porta da frente. Eu ainda nao estava de servico quando ela entrara, de modo que nao sabia a que quarto ela se dirigira. Havia um botao ao lado da porta que permitia abri-la automaticamente, mas fazia uma semana que estava quebrado. Farejei brevemente o ar frio da noite, feliz por poder fechar logo a porta e voltar ao meu cubiculo.

O Jornal do Joquei estava aberto sobre a minha mesa no programa das corridas do dia seguinte em Hialeah. O calor gostoso do sul. Minha escolha ja estava feita. Ask Gloria no segundo pareo. A egua nao se saira bem nas tres ultimas vezes em que correra, mas ganhara facil no norte, durante a temporada de outono. As probabilidades eram de quinze para um.

Eu sempre fui jogador. Boa parte dos meus estudos universitarios foi paga com o que ganhava jogando poquer na faculdade. Quando ainda trabalhava em Vermont, jogava poquer uma vez por semana e consegui juntar alguns milhares de dolares. Desde entao, nao tenho tido muita sorte.

Foi a minha inclinacao pelo jogo que me levou ao Hotel St. Augustine. Quando cheguei pela primeira vez a Nova York, conheci num bar um bookmaker que morava no hotel, onde tambem efetuava os pagamentos. Apostava para mim, e todos os fins de semana ajustavamos as contas. O hotel era barato e conveniente, minha situacao financeira nao me permitia luxos. Quando fiquei devendo quinhentos dolares ao bookmaker, ele cortou-me o credito. Felizmente, acrescentou ele, o recepcionista da noite largara o emprego e o gerente estava a procura de um substituto. Segundo o bookmaker eu tinha a aparencia e o modo de falar de um sujeito formado por uma universidade, e ele sabia que eu era forte em somas e subtracoes. Aceitei o emprego, mas tratei de arrumar um apartamento. Vinte e quatro horas seguidas no St. Augustine eram demais. Fui saldando minha divida com o bookmaker em prestacoes mensais, deduzidas do meu ordenado, o que me garantiu um novo credito. Nessa noite, so me faltava pagar cento e cinquenta dolares.

Conforme tinhamos logo de inicio combinado, eu escrevia os nomes dos cavalos em que desejava apostar e colocava-os dentro de um envelope, na caixa de correio do bookmaker. Ele nunca acordava antes das onze da manha. Resolvi apostar cinco dolares. Se a egua ganhasse, minha divida ficaria reduzida a metade.

Sobre o Jornal do Joquei, havia um exemplar da Biblia de Gideao, aberta nos salmos. Minha familia era religiosa e eu fora criado lendo a Biblia. Minha fe em Deus ja nao era a mesma, mas ainda gostava de ler a Biblia. Sobre a mesa havia tambem o Vile Bodies, de Evelyn Waugh, e o classico de Conrad, Almayer's folly. Naqueles dois anos que passara trabalhando a noite aproveitei para fazer um curso livre de literatura inglesa e americana.

Ao me sentar novamente a maquina de calcular, olhei para a Biblia aberta sobre o Jornal do Joquei. 'Louvai-o por seus atos gloriosos', li; 'louvai-o pela sua excelencia, louvai-o com o som da trombeta; louvai-o com o salterio e a harpa. Louvai-o com o pandeiro e a danca; louvai-o com cordas e orgaos.'

Tudo isso encaixava muito bem em Jerusalem, pensei. Onde encontrar um pandeiro em Nova York? La dos ceus, penetrando a pedra e o aco, veio o estrondo sibilante de um aviao a jato, atravessando Nova York, vindo do polo a caminho de Karachi. Fiquei ouvindo, e pensando no silencio da cabina de comando, nos homens agarrados aos controles, no pisca-pisca dos mostradores, no radar varrendo o ceu da noite.

– Meu Deus! – exclamei em voz alta.

Terminando o servico com a maquina de calcular, empurrei a cadeira para tras, peguei uma folha de papel, segurei-a acima das coxas e olhei por cima dela para um calendario que havia na parede. Depois, ergui lentamente a folha de papel. So quando ela estava a altura do meu peito, quase no meu queixo, e que entrou no meu campo de visao. Nao acontecera nenhum milagre, essa noite.

– Meu Deus! – exclamei de novo, amassando a folha de papel e jogando-a na cesta.

Fiz uma pequena pilha com as contas e comecei a arquiva-las em ordem alfabetica. Estava trabalhando automaticamente, a cabeca noutras coisas, e nao prestara atencao na data das contas. De repente, reparei: 15 de janeiro. De certa forma, um aniversario. Sorri dolorosamente. Fazia tres anos, naquele dia, que tudo acontecera.

CAPITULO II

Em Nova York, o tempo estava encoberto, mas quando passamos Peekskill, voando rumo ao norte, o ceu ficou limpo. La embaixo, sobre as montanhas, a neve brilhava ao sol. Eu tinha levado o pequeno Cessna ao Aeroporto de Teterboro, para pegar o charter de Nova Jersey, e, atras de mim, escutava os passageiros dando-se mutuamente parabens pelo ceu azul e pela neve fresca. Voavamos baixo, a apenas dois mil metros, e os campos formavam como que tabuleiros de xadrez, com as arvores pretas contra o branco impecavel da neve. Eu nao me cansava daquele voo. O fato de reconhecer fazendas, cruzamentos de estradas e o curso de um riacho aqui e ali tornava a curta viagem agradavel e familiar. O norte do Estado de Nova York e bonito visto do chao, mas num belo dia do inicio do inverno, visto de cima, transforma-se num dos panoramas mais belos deste mundo. Uma vez mais, agradeci nunca ter cedido a tentacao de aceitar emprego numa das grandes companhias aereas, onde se passa a melhor parte da vida a uma altitude de mais de dez mil metros, com o mundo la embaixo, apenas um vasto mar de nuvens ou um mapa impessoal, abrindo-se lentamente aos nossos pes.

Eu levava apenas tres passageiros, a familia Wales, pai, mae e uma meninota gorducha, de aparelho nos dentes e doze ou treze anos de idade, chamada Didi. Eram entusiastas do esqui, e eu ja os transportara umas quatro ou cinco vezes. Havia uma linha aerea regular para Burlington, mas o Sr. Wales era um homem muito ocupado, explicava, que esquiava quando tinha tempo e nao gostava de ficar preso a horarios. Tinha uma firma de publicidade em Nova York e parecia nao se incomodar com dinheiro. Quando contratava um charter, sempre fazia questao de que o piloto fosse eu. A razao, em parte – ou, talvez, toda a razao -, para essa preferencia era o fato de eu de vez em quando esquiar com eles em Stowe, Sugarbush e Mad River, guiando-os pelas trilhas que eu conhecia melhor do que eles e, ocasionalmente, mostrando-lhes, com tato, como melhorar o seu desempenho. Wales e a esposa, mulher nova-yorquina, dura e atletica, estavam sempre competindo um com o outro e esquiavam depressa demais, descontroladamente. Dizia para mim mesmo que alguem ainda acabaria com uma perna partida. Sabia quando estavam furiosos um com o outro pelos tons diferentes em que se chamavam mutuamente 'meu bem'.

Didi era uma crianca seria e solene, sempre com um livro nas maos. Segundo seus pais, comecava a ler tao logo apertava o cinto de seguranca e so parava quando o aviao aterrava. Naquele voo, estava mergulhada em O Morro dos Ventos Uivantes. Em garoto, eu tambem devorava livros – quando minha mae se aborrecia comigo, dizia: 'Puxa, Douglas, pare de se comportar como uma personagem de livro' – e divertia-me vendo o que Didi lia.

Ela era, de longe, a melhor esquiadora da familia, mas seus pais obrigavam-na a descer sempre atras deles. Eu tinha esquiado uma manha sozinho com ela, numa tempestade de neve, quando o casal Wales ficara dormindo apos uma festa, e ela parecia outra, sorrindo e descendo alegremente a montanha comigo, semelhante a um animalzinho selvagem a quem tivessem aberto a

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