– Engracado! – exclamou.
– O que? – perguntou o enfermeiro.
– Nao ha cartoes de credito, cartoes de visita ou carteira de motorista. Um cara com mais de mil dolares no bolso. – Meneou a cabeca e empurrou o quepe para tras. – Nao e normal, nao acham? – Parecia insultado, como se o morto nao tivesse agido como se esperava que agisse um cidadao americano decente, que contava ser protegido na vida ou na morte pela policia do seu pais. – Sabe quem ele e? – perguntou-me.
– Nunca o vi mais gordo – respondi. – O nome dele e Ferris e morava em Chicago. Vou mostrar-lhe a ficha de entrada.
O policial colocou a carteira no bolso, remexeu rapidamente na roupa que havia na mala, abriu a porta do armario e revistou os bolsos do terno escuro e do impermeavel la dependurados.
– Nada – disse. – Nenhuma carta, nenhuma agenda. Nada. Um cara de coracao fraco. Ha gente com menos juizo do que um bicho. Bem, tenho que fazer um inventario. Na presenca de testemunhas. – Puxou do caderninho e foi anotando os poucos pertences, ou ex-pertences, do corpo estendido no chao. Nao demorou muito. – Escute – disse ele, virando-se para mim -, voce tem que assinar aqui.
Olhei para a lista. Mil e quarenta e tres dolares. Uma maleta marrom, aberta, um terno, um impermeavel cinzento, um chapeu… Assinei, logo abaixo do policial.
– Quem botou o cobertor em cima dele? – perguntou o tira.
– Eu – respondi.
– Voce o encontrou ai no chao?
– Nao. Estava la fora, no corredor.
– Assim… pelado?
– Pelado. Arrastei-o para o quarto.
– Para que voce foi fazer isso? – Agora o policial parecia queixoso, como se esperasse complicacoes.
– Isto aqui e um hotel – expliquei. – E preciso manter as aparencias.
O policial ficou uma fera.
– O que voce esta querendo… bancar o espertinho?
– Nao, nada disso. Se eu o tivesse deixado onde o encontrei e alguem o tivesse visto ali estendido, a gerencia me teria dado a maior bronca.
– Da proxima vez que voce vir um cara morto – disse o policial – trate de nao mexer nele ate a gente chegar, esta me ouvindo?
– Sim – respondi.
– Voce fica toda a noite no hotel, sozinho?
– Fico.
– Como foi que voce veio ate aqui? Ele telefonou para baixo?
– Nao. Uma mulher que estava saindo disse-me que havia um velho louco, nu, no sexto andar, ameacando ataca-la. – Tudo isso eu disse objetivamente, como se estivesse ouvindo uma fita que eu tivesse gravado. Reparei que nao gaguejara nem uma so vez.
– Ataca-la sexualmente?
– Foi o que ela insinuou.
– Uma mulher? Que especie de mulher?
– Pareceu-me uma prostituta – respondi.
– Voce ja a tinha visto alguma vez?
– Nao.
– Ha uma porcao de mulheres entrando e saindo do hotel, nao e?
– Mais ou menos – respondi.
O tira olhou para o rosto contorcido e azulado no chao.
– Ha quanto tempo voce acha que ele morreu, doutorzinho?
– E di… ficil dizer. Pode ter sido ha dez minutos ou ha meia hora – disse o enfermeiro. Olhou para mim. – Chamou o hospital tao logo o descobriu? O chamado foi as tres e quinze.
– Bem – expliquei -, primeiro escutei para ver se ele ainda estava vivo, depois puxei-o aqui para dentro e cobri-o, e so depois e que desci para telefonar.
– Tentou a respiracao boca a boca?
– Nao.
– Por que nao? – O rapaz nao estava sendo impertinente; era muito tarde e ele estava demasiado cansado para isso; estava apenas seguindo uma rotina.
– Nao pensei nisso – respondi.
– Voce nao pensou numa porcao de coisas – disse o tira, acusadoramente. Do mesmo modo que o enfermeiro, tambem estava sendo rotineiro. A suspeita era a sua rotina, so ja parecia cansado dela.
– Ok – disse o enfermeiro. – Vamos leva-lo daqui. Nao adianta ficar perdendo tempo. Quando souber o que a familia pretende fazer com o corpo – falou, dirigindo-se a mim -, ligue para o necroterio.
– Vou ja mandar um telegrama para Chicago – falei.
Os dois homens da ambulancia colocaram o corpo na maca.
– Pesado, o velho, hem? – comentou o motorista. – Aposto como comia do melhor, o velho satiro. Ameacas sexuais. Murcho desse jeito. – Cobriu o corpo com um lencol e amarrou os tornozelos aos pes da maca, enquanto o enfermeiro lhe afivelava uma correia no peito. O elevador era pequeno demais para levar o corpo deitado, iam ter que entrar com a maca em pe. Sairam para o corredor, seguidos pelo tira. Dei uma ultima olhadela ao quarto e apaguei a luz antes de fechar a porta.
– Noite movimentada? – perguntei ao enfermeiro, assim que o elevador comecou a descer. 'Procure agir com normalidade, a vontade,' disse comigo mesmo. Nao havia duvida de que, para aqueles tres homens, era perfeitamente normal carregar mortos de hoteis no meio da noite, e procurei ajustar-me aos seus padroes de comportamento.
– E a minha quarta saida desde que entrei de servico – respondeu ele. – Gostaria de estar no seu lugar.
– E? – retruquei. – Pois eu continuarei trabalhando toda a noite na maquina de calcular, enquanto voce estiver acumulando dinheiro, ano apos ano. – 'Por que e que eu fui falar em dinheiro?', pensei. – Leio os jornais – acrescentei, depressa. – Neste pais, os medicos ganham mais do que quaisquer outros profissionais.
– Deus abencoe a America – disse o enfermeiro, quando o elevador parou e a porta se abriu. Ele e o motorista pegaram na maca e eu fui a frente. Abri a porta com a chave e vi-os colocar o corpo na ambulancia. O policial ao volante da radio-patrulha estava dormindo, roncando baixo, o quepe caido e a cabeca encostada para tras.
O enfermeiro entrou na ambulancia com o cadaver e o motorista bateu a porta. Depois, deu meia-volta, sentou-se ao volante e ligou o motor ao mesmo tempo que a sirena.
– Para que tanta pressa? – disse o policial, na calcada, perto de mim. – Eles nao vao a lugar nenhum.
– Nao vai acordar seu colega? – perguntei.
– Nao. Se vier um chamado, ele acorda. Tem o instinto de um animal. E melhor ele descansar um pouco. Gostaria de ser calmo assim. – Suspirou, abatido por preocupacoes que seus nervos nao tinham forca suficiente para suportar. – Quero dar uma olhadela nas fichas – Entrou no hotel comigo, o passo pesado, o passo da lei.
Abri a porta do escritorio. Nao olhei para a prateleira acima do cofre, onde o tubo de papelao estava escondido por tras das caixas de papel de cartas e das pilhas de revistas velhas.
– Tenho uma garrafa de uisque, se o senhor quiser um trago – disse, espantado com a maneira tranquila como estava agindo. Como se eu fosse um computador, com todos os cartoes corretamente perfurados e os dados certos. Mas tinha sido um esforco nao olhar para a prateleira.
– Bem, eu estou de servico – disse o policial. – Mas acho que um tragozinho…
Abri o livro de registro e mostrei a pagina onde estava anotada a ficha do apartamento 602. O policial copiou-a lentamente no seu caderninho preto. A historia da cidade de Nova York, fielmente copiada em vinte mil paginas escritas a mao pelos diplomados da Academia de Policia. Uma interessante descoberta arqueologica.
Apanhei a garrafa e a abri.
– Desculpe, mas nao tenho copo – falei.
– Nao e a primeira vez que bebo na garrafa – retrucou o policial. Ergueu a garrafa e disse: –
– O senhor e judeu? – perguntei, quando ele me passou a garrafa.
– Nao. O meu colega e que e. Aprendi com ele. L’chaim. 'A vida', segundo eu recordava de uma cancao de Um violinista no telhado.
– Acho que vou beber tambem – falei, erguendo a garrafa. – Uma noite como esta faz um homem ficar meio bombardeado.
– Isto nao e nada – retrucou o tira. – Voce precisava ver o que nos vemos.
– Posso imaginar – disse eu, bebendo.
– Bem – falou o policial -, preciso ir andando. Vai vir um detetive, de manha. Deixe o quarto trancado ate ele chegar, ok?
– Vou avisar o meu colega do dia.
– Plantao da noite – disse o policial. – Voce consegue dormir bem de dia?
– Mais ou menos.
– Eu, nao – disse o tira, abanando queixosamente a cabeca. – Olhe so para as minhas olheiras!
– Esta precisando de uma boa noite de sono! – comentei, olhando para as olheiras dele.
– Quem sou eu! – exclamou o homem, enfiando brutalmente um dedo no olho. – Bem, pelo menos nao houve crime. A gente tem que dar gracas a Deus pelas pequenas coisas – acrescentou, surpreendentemente. Um vocabulario que incluia Deus numa tirada filosofica!
Acompanhei-o ate a porta da frente.
– Um bom dia para voce – disse o policial.
– Obrigado. Para voce tambem.
– Ah! – exclamou ele.
Vi-o subir lentamente para a radiopatrulha e acordar o colega. Logo depois, o veiculo descia a rua silenciosa. Tranquei a porta e voltei para o escritorio. Peguei no telefone e disquei. Tive de esperar pelo menos dez toques para que atendessem. 'Este pais esta em completa decadencia', pensei. 'Ninguem se mexe.'
– Western Union – disse a voz.
– Quero mandar um telegrama para Chicago – falei, dando o nome e o endereco, soletrando 'Ferris' bem devagar.
– A mensagem, por favor? – A voz parecia irritada.
– Lamento informar John Ferris faleceu esta manha, tres e trinta. Queiram entrar contato comigo imediatamente. Assinado, H. M. Drusack, gerente Hotel St. Augustine, Manhattan. – Quando a resposta chegasse, Drusack estaria de servico e eu estaria longe, a salvo. Nao havia necessidade de que a familia, em Chicago, soubesse o meu nome. – Quanto e, por favor?