– Esperemos – retrucou ele, sem sorrir. Colocou as notas que eu lhe dera num bolo de outras, que prendeu destramente com um elastico. Suas maos eram pequenas, gordas e ageis. – Morris sabe sempre onde me encontrar, Sr. Brown – acrescentou, ja na porta.

Assim que ele saiu, abri as malas e comecei a arrumar minhas coisas. Quando estava tirando a escova de dentes e os apetrechos de barba, a gilete caiu no chao, atras de uma comoda. Ajoelhei-me para apanha-la, apalpando com a mao debaixo da comoda. Junto com a gilete e um montinho de poeira, veio tambem uma moeda. Um dolar de prata. Soprei a poeira da moeda e guardei-a no bolso. 'Nao capricham muito na limpeza, neste hotel', pensei. Otimo! Eu estava mesmo com sorte.

Olhei para o relogio. Quase meio-dia. Peguei no telefone e dei a telefonista o numero do St. Augustine. Como de costume, passaram-se quase trinta segundos antes que atendessem. Clara, a telefonista, considerava todas as chamadas como interrupcoes descabidas na sua vida particular, que consistia, pelo que eu tinha podido ver, em ler revistas sobre astrologia. Utilizava a demora em atender como maneira de protestar e punir os chatos que interrompiam sua procura do horoscopo perfeito, riqueza, fama e um desconhecido e simpatico jovem.

– Alo! Clara? – falei. – O Sr. Drusack ja chegou?

– Claro – respondeu a telefonista. – Esteve toda a manha em cima de mim para eu ligar para o senhor. Qual e mesmo o seu numero? Nao consegui encontra-lo. Liguei para o hotel que constava aqui como seu endereco e disseram que nunca tinham ouvido falar no senhor.

– Isso foi ha dois anos. Mudei. – Na verdade, desde entao eu havia mudado quatro vezes. Americano tipico, procurara sempre novas fronteiras, cada vez mais ao norte. A riqueza do Yukon, via East Eighties, Harlem, Riverdale, a tundra gelada. – Nao tenho telefone, Clara.

– Como e que e? O senhor esta brincando?

– Nao. Nao tenho telefone.

– O senhor e que e feliz, Sr. Grimes!

– Tambem acho, Clara. Agora, passe o telefone para o Sr. Drusack, por favor.

– Meu Deus, Grimes – disse Drusack, tao logo se pos ao telefone. – Em que rolo voce me meteu! Acho melhor vir logo para ca e me ajudar a sair da confusao.

– Sinto muito, Sr. Drusack – respondi, procurando parecer mesmo sentido. – Estou terrivelmente ocupado. O que aconteceu?

– O que aconteceu? – gritou Drusack. – Vou dizer-lhe o que aconteceu. A Western Union ligou para aqui as dez horas. Nao ha nenhum John Ferris no endereco que voce lhes deu, eis o que aconteceu.

– Foi o endereco que ele deu.

– Pois entao venha dizer isso a policia. Os tiras estiveram aqui uma hora inteirinha, esta manha. E tambem dois caras vieram perguntar por ele, e, se nao estavam armados, eu sou candidato a Miss America 1983. Falaram comigo como se eu estivesse escondendo o diabo do velho. Perguntaram se o sujeito tinha deixado algum recado para eles. Ele deixou algum recado?

– Que eu saiba, nao.

– Bem, eles estao querendo falar com voce.

– Por que? – perguntei, embora soubesse muito bem.

– Eu lhes disse que o recepcionista da noite e que tinha encontrado o corpo. Falei que voce entraria de servico as onze da noite, mas eles disseram que nao podiam esperar tanto tempo e me perguntaram qual era o seu endereco. Grimes, sabe que ninguem, neste hotel, tem ideia de onde voce mora? Naturalmente, os dois sujeitos nao acreditaram nisso. Disseram que iam voltar as tres da tarde e que era melhor voce estar aqui. Ameacadores. Nao do tipo bandidos comuns. Cabelos curtos, vestidos como corretores da Bolsa. Falando baixo. Pareciam espioes de cinema. Mas nao estavam brincando. De jeito nenhum. Por isso, esteja aqui as tres horas… porque eu vou demorar muito no almoco.

– Era sobre isso que eu queria falar, Sr. Drusack – disse eu calmamente, sentindo prazer em falar com o gerente pela primeira vez desde que comecara a trabalhar para ele. – Telefonei para me despedir.

– O que voce quer dizer com isso? – berrou Drusack. – Para se despedir? Quem se despede assim, sem mais nem menos?

– Eu, Sr. Drusack. Decidi, ontem a noite, que nao gosto da maneira como o senhor dirige o hotel. Estou me despedindo… alias, ja me despedi.

– Como! Ninguem se despede assim! Pelo amor de Deus, estamos na terca-feira. Voce tem coisas aqui. Meia garrafa de uisque, a sua Biblia…

– Pode ficar para a biblioteca do hotel – atalhei.

– Grimes! – rugiu Drusack. – Voce nao pode me fazer isso! Vou mandar a policia procura-lo. Vou…

Desliguei suavemente o telefone e depois sai para almocar. Escolhi um bom restaurante de frutos do mar, perto do Lincoln Center, e mandei vir uma grande lagosta grelhada, que me custou oito dolares, com duas garrafas de cerveja Heineken.

Sentado no restaurante aquecido, saboreando o otimo almoco e a cerveja importada, percebi que, pela primeira vez desde que a prostituta descera correndo do sexto andar do hotel, eu tinha tempo para pensar no que ia fazer. Ate entao, tudo se passara mais ou menos mecanicamente, as acoes decorrendo sem hesitar, uma apos outra, meus movimentos ordenados e precisos, como se eu estivesse seguindo um programa aprendido e assimilado havia muito. Agora, era chegada a hora de tomar decisoes, de considerar possibilidades, de examinar o horizonte a cata de provaveis perigos. Ao mesmo tempo em que pensava nisso, vi que algo no meu subconsciente me fizera escolher uma mesa onde podia sentar-me de costas para a parede, com uma visao clara da porta do restaurante e das pessoas que entravam. Aquilo me divertiu. Com alguma chance, todo homem se transforma no heroi de sua propria historia policial.

Divertido ou nao, chegara o momento de fazer um balanco, de pensar na minha situacao. Nao podia continuar a depender de simples reflexos ou de algo, no meu passado, que me ajudasse a orientar o futuro. Sempre obedecera inteiramente as leis. Nunca fizera nada que me granjeasse inimigos… pelo menos, nunca inimigos como os dois homens que tinham ameacado Drusack naquela manha.., Naturalmente, pensei, dois sujeitos que vao a um hotel onde esperam receber cem mil dolares em dinheiro de alguem registrado ali, muito provavelmente sob um nome falso e certamente sob um endereco ficticio, podem muito bem ir armados ou, pelo menos, parecer homens habituados a andar armados. Drusack poderia ter ficado um pouco histerico, mas nao era idiota e estava ha bastante tempo na industria hoteleira para farejar problemas de longe. Ele nao podia era ter ideia do perigo que os dois homens representavam e, provavelmente, nunca teria.

Uma coisa era certa, ou quase: a policia nao seria chamada, embora o caso pudesse interessar a um ou dois policiais corruptos. Com isso eu nao teria que me preocupar. Nao havia possibilidade de que o homem que dera o nome de John Ferris e os dois que tinham vindo ter com ele no hotel estivessem envolvidos numa transacao legal. Devia ser um caso de suborno ou chantagem. Os escandalos da segunda administracao Nixon estavam comecando a vir a tona, e todos estavamos descobrindo que gente perfeitamente respeitavel, pilares da comunidade, tinham criado o habito de carregar enormes somas de dinheiro em pastas 007 e guardar centenas de milhares de dolares em gavetas de escritorio. Por isso, nao me ocorreu, como poderia ter acontecido mais tarde, que tudo aquilo fizesse parte de uma tecnica politica relativamente amadora e nao perigosa. Tinha certeza de que me envolvera com profissionais empedernidos, gente que matava por dinheiro. 'Como espioes de cinema', dissera Drusack. Eu duvidava. Tinha visto o corpo.

'Gangsteres', pensei. A Mafia. Apesar de, como todo mundo, ter lido e visto artigos e filmes sobre o bas-fond, tinha apenas uma vaga ideia do que era a Mafia e talvez um respeito exagerado pela sua onipotencia, pelo seu poder de descobrir e destruir, pelos extremos a que poderia chegar para obter vinganca.

De uma coisa eu estava certo. Agora, estava do lado deles, fossem eles quem fossem, e tinha que obedecer as suas regras. Em apenas um momento de uma fria noite de inverno, tinha-me transformado num fora-da-lei que so podia contar comigo mesmo para minha seguranca.

A regra numero 1 era simples. Nao podia ficar parado. Teria de estar sempre em movimento, de sumir. Nova York era uma grande cidade, onde sem duvida milhares de pessoas vinham se escondendo havia anos, mas os homens que aquela hora provavelmente estariam atras de mim decerto ja saberiam o meu nome, a minha idade, a minha aparencia, e poderiam, sem muito trabalho e com um minimo de esperteza, descobrir em que universidade eu estudei, onde trabalhei antes, quais as ligacoes da minha familia. 'Felizmente', pensei, 'nao sou casado, nao tenho filhos, nenhum de meus irmaos nem a minha irma tem a menor ideia de onde estou.''' Apesar disso, em Nova York sempre havia a chance de deparar com alguem conhecido, que pudesse dizer o que nao devia para o homem errado.

Nessa mesma manha, tinha havido o rapaz do hotel. Eu cometera o meu primeiro erro com ele. Tinha certeza de que se lembraria de mim. E, pelo seu aspecto, era muito capaz de vender a irma por uma nota de vinte dolares. E o bookmaker do hotel. Erro numero 2. Podia muito bem imaginar que especie de conexoes ele tinha.

Nao sabia o que faria com o dinheiro guardado no subterraneo do banco, mas pretendia goza-lo. E nao iria goza-lo em Nova York. Sempre tinha querido viajar, e agora viajar seria nao so um prazer, mas uma necessidade.

Acendi um charuto, reclinei-me na cadeira e pensei em todos os lugares que iria querer ver. Europa. As palavras 'Londres', 'Paris', 'Roma' ecoaram agradavelmente no meu pensamento.

Mas, antes que pudesse atravessar o oceano, tinha coisas a fazer, pessoas que ver. Primeiro, teria de arranjar um passaporte. Nunca precisara de passaporte, mas agora ia precisar. Sabia que podia tira-lo no Departamento de Estado, em Nova York, mas quem estivesse atras de mim poderia deduzir que esse era o primeiro lugar aonde eu iria e poderia estar la a minha espera. As chances nao eram muitas, mas eu nao queria arriscar uma que fosse.

'Amanha', decidi, 'vou a Washington. De onibus.'

Olhei para o relogio de pulso. Quase tres horas. Os dois homens que tinham ameacado Drusack pela manha deveriam estar se dirigindo para o St. Augustine, ansiosos por fazer perguntas e prontos a obter de qualquer maneira as respostas. Sacudi as cinzas da ponta do meu charuto e sorri. 'Este e o melhor dia que eu tenho ha anos', pensei.

Paguei a conta e sai do restaurante, encontrei um pequeno estudio de fotografo e posei para fotos de passaporte. O fotografo disse-me que elas estariam prontas as cinco e meia e aproveitei o tempo para ver um filme frances. Convinha ir-me desde ja acostumando a ouvir a lingua, pensei, confortavelmente instalado na minha poltrona, admirando as paisagens a beira do Sena.

Quando voltei ao hotel com as fotos no bolso (parecia um garoto), eram quase seis horas. Lembrei-me do bookmaker e fui ate o bar procura-lo. Estava sentado a uma mesa de canto, sozinho, bebendo um copo de leite.

– Como e que foi? – perguntei.

– Voce esta brincando? – retrucou o homem.

– Nao. Por que?

– Voce ganhou – disse o bookmaker. O dolar de prata fora um bom augurio. Minha divida com o homem do St. Augustine ficava reduzida de sessenta dolares. Tudo numa tarde de sorte. O bookmaker nao parecia satisfeito. – Voce ganhou. Da proxima vez, diga-me de onde tira os palpites. E esse desgracado do Morris. Por que lhe deu a dica? Nao gostei.

– Simpatizo com os trabalhadores – falei.

– Trabalhadores! – resmungou o bookmaker. – Posso dar-lhe um conselho, amigo? Nao deixe sua carteira onde ele a possa encontrar. Nem mesmo a dentadura. – Tirou uma porcao de envelopes do bolso, passou-os em revista, deu-me um, guardou o resto outra vez. – Tres mil e seiscentos dolares – falou. – Conte.

Embolsei o envelope.

– Nao e preciso – retruquei. – Voce tem um ar honesto.

– Sim. – O bookmaker bebeu um gole de leite.

– Posso oferecer-lhe uma bebida?

– So bebo leite – respondeu o homem, arrotando.

– Acho que voce escolheu o oficio errado, para um homem que sofre do estomago – comentei.

– Tambem acho. Quer apostar no jogo de hoquei desta noite?

– Acho que nao – disse eu. – No fundo, nao sou jogador. Ate a vista, amigo.

O homem nao respondeu.

Aproximei-me do bar, tomei um uisque com soda e sai para o hall. Morris, o rapaz das malas, estava de pe junto ao balcao.

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