– Ouvi dizer que o senhor ganhou uma bolada – disse ele.

– Nem tanto – respondi. – Mas ate que o dia valeu a pena. Voce seguiu a minha dica?

– Nao – disse o rapaz. Via-se que era um homem que mentia pelo simples prazer de mentir. – Estive ocupado o dia todo.

– Que pena! – comentei. – Mais sorte da proxima vez!

Jantei um bife no restaurante do hotel, fumei outro charuto, tomei um conhaque depois do cafe, subi para o quarto, despi-me e deitei-me. Dormi sem sonhar doze horas a fio e acordei com o sol entrando-me pelo quarto. Nao dormia tao bem desde que era garoto.

CAPITULO V

De manha, fiz as malas e carreguei-as eu proprio ate o elevador. Nao queria mais conversas com Morris. Paguei o hotel com parte do dinheiro que ganhara no segundo pareo das corridas de Hialeah. A porta do hotel, olhei em volta cautelosamente. Ate onde os meus olhos alcancavam, nao havia ninguem esperando por mim ou que me pudesse seguir. Tomei um taxi e dirigi-me para a estacao rodoviaria, onde pegaria um onibus para Washington. Ninguem pensaria em procurar numa estacao rodoviaria um homem que acabava de roubar cem mil dolares.

Tentei primeiro o Hotel Mayflower. Enquanto estivesse em Washington, achei que devia aproveitar o melhor que a cidade tinha para oferecer. Mas o hotel estava cheio, informou-me o recepcionista, dando-me a impressao de que, naquele centro de poder, para se conseguir um quarto era preciso ser-se eleito por larga margem de votos ou, pelo menos, nomeado pelo presidente em pessoa. Apesar dos pesares, ele teve a amabilidade suficiente de me indicar um hotel a cerca de um quilometro de distancia. Geralmente tinha lugar, acrescentou, no mesmo tom com que poderia ter dito que um seu conhecido costumava usar camisas encardidas.

Ele tinha razao. O predio era novo, todo em metal cromado e pintura berrante, mais parecendo um motel a beira de uma estrada americana, mas havia lugar. Preenchi a ficha com o meu nome verdadeiro. Achava que, naquela cidade, nao era necessario tomar tantas precaucoes para ficar anonimo.

Lembrando-me do que tinha ouvido falar sobre assaltos nas ruas da capital, coloquei prudentemente a carteira no cofre do hotel, deixando so cem dolares para as despesas do dia. Todo o cuidado e pouco. O perigo espreita a nossa porta. A pistola das noites de sabado e quem dita a lei.

A ultima vez em que eu estivera em Washington fora quando pilotara um charter de republicanos de Vermont para a posse de Richard Nixon, em 1969. Os republicanos tinham bebido um bocado, no aviao, e eu passara boa parte do voo discutindo com um senador bebado, que fora piloto de um B-17 durante a Segunda Guerra Mundial e queria que o deixasse pilotar depois que passamos Filadelfia. Nao tinha ido a posse ou ao baile, para o qual os republicanos me haviam arranjado um convite. Nessa epoca, eu me considerava um democrata. Agora, ja nao sabia o que me considerava.

Tinha passado o dia da posse presidencial no Cemiterio Nacional de Arlington. Parecera-me uma boa maneira de comemorar a posse de Richard Nixon no cargo de presidente dos Estados Unidos.

Havia um Grimes enterrado no cemiterio, um tio que morrera em 1921, envenenado por gas de cloro na floresta de Argonne. Quanto a mim, jamais seria sepultado em Arlington. Nao era veterano de nenhuma guerra. Por ocasiao da Guerra da Coreia, eu era demasiado jovem, e quando a do Vietnam estourou tinha o meu emprego na companhia de aviacao e nao me sentira tentado a alistar-me como voluntario. Caminhando por entre os tumulos, nao senti pena de saber que nunca seria levado a descansar na companhia de herois. Nunca fui amigo de brigar – mesmo quando garoto, so uma vez troquei socos na escola – e, embora fosse razoavelmente patriota, as guerras nao tinham nenhuma atracao para mim. Meu patriotismo nao estava orientado na direcao do derramamento de sangue.

Quando sai do hotel, na manha seguinte, vi que havia uma fila de gente esperando taxi, de modo que me pus a andar, na esperanca de pegar um taxi a meio da avenida. A temperatura estava agradavel, em contraste com o frio cortante de Nova York, e a rua tinha um ar de prosperidade, com os transeuntes bem vestidos e disciplinados. Durante meia quadra, caminhei lado a lado com um senhor de aspecto digno e bem nutrido, metido num sobretudo de gola de vison, e com aparencia de senador. Diverti-me imaginando qual a reacao do homem se eu me aproximasse dele, olhando-o bem fixamente, como o Velho Marinheiro, que deteve um entre tres, e lhe dissesse o que havia feito desde a madrugada de terca-feira.

Parei junto a um cruzamento e fiz sinal para um taxi que vinha diminuindo a marcha. So depois que o carro parou e que eu vi que no assento de tras havia uma passageira. Mas o motorista, um negro de cabelo grisalho, virou-se e abriu a janela.

– Para onde o senhor vai? – perguntou.

– Para o centro.

– Entre – disse o homem. – A senhora tambem vai para la.

– Importa-se de que eu va com a senhora? – perguntei, abrindo a porta de tras.

– Importo-me, sim – respondeu a mulher. Era jovem, nao devia ter mais de trinta anos, e bonita, de uma beleza loura e agressiva, menos bonita, no momento, do que deveria ser normalmente, por causa dos labios apertados.

– Desculpe – disse eu e fechei a porta. Ia voltar para a calcada, quando o motorista abriu a porta da frente.

– Entre – falou ele.

'Bem-feito', pensei, e, sem olhar para a mulher, sentei-me ao lado do chofer. Ouvimos um barulho furioso no banco de tras, mas nem eu nem o chofer nos viramos. Viajamos em silencio.

Quando o taxi parou diante de um edificio do governo, a mulher inclinou-se para a frente.

– Um dolar e quarenta e cinco cents? – perguntou.

– Isso mesmo, dona – respondeu o motorista.

Ela abriu a bolsa, tirou uma nota de um dolar e algumas moedas e deixou o dinheiro no banco de tras.

– Nao espere encontrar gorjeta – falou, ao sair. Dirigiu-se para o edificio, gingando furiosamente. Reparei que tinha lindas pernas.

O chofer riu, enquanto estendia o braco para tras e apanhava o dinheiro.

– Funcionaria publica – disse ele.

– Apelido: bruxa – retruquei. O motorista riu de novo.

– Nesta cidade a gente ve de tudo – falou. E continuou a dirigir, abanando a cabeca e rindo consigo mesmo.

Ao chegar ao Departamento de Estado, dei ao homem um dolar de gorjeta.

– Obrigado, moco – disse o motorista -, mas essa dona loura ja me fez ganhar o dia.

Entrei no edificio e dirigi-me ao balcao de informacoes.

– Gostaria de falar com o Sr. Jeremy Hale – disse a moca do balcao.

– Sabe qual e a sala dele?

– Nao.

A moca suspirou. Pelo que via, Washington estava cheia de mulheres pouco amaveis. Enquanto a moca procurava numa lista em ordem alfabetica o numero da sala de Jeremy Hale, eu lembrava-me de ter dito a Hale, havia um bocado de tempo:

'Com um nome como o seu, Jerry, voce tinha que acabar no Departamento de Estado'. Sorri da lembranca.

– O Sr. Hale esta a sua espera?

– Nao. – Havia anos que nao falava com Hale, nem lhe escrevia. Tinhamos sido colegas e amigos na Universidade de Ohio. Depois disso, eu pegara o emprego em Vermont e tinhamos esquiado juntos varios invernos, quando Hale nao estava lotado no exterior.

– Seu nome, por favor? – perguntou a moca.

Dei-lhe o meu nome e ela discou um numero no telefone em cima do balcao.

A moca falou qualquer coisa ao telefone e escrevinhou um passe.

– O Sr. Hale esta a sua espera. – Entregou-me o passe e vi que ela tinha escrito o numero da sala de Hale.

– Muito obrigado, senhorita – disse. So depois e que reparei na alianca. Tinha feito mais uma inimiga em Washington.

Tomei o elevador. Estava quase cheio, mas dentro dele reinava um silencio decoroso. Os segredos de Estado eram bem guardados.

O nome de Hale estava numa porta exatamente igual a uma longa serie de portas que desapareciam, em perspectiva, por um corredor aparentemente interminavel. 'O que todas essas pessoas podem estar fazendo em prol dos Estados Unidos da America durante oito horas por dia, duzentos dias por ano?', pensei ao bater na porta.

– Entre – disse uma voz de mulher.

Empurrei a porta e entrei numa pequena sala, onde uma linda jovem batia a maquina. O velho Jeremy Hale!

A bela jovem sorriu radiosamente para mim. 'Como se comportaria ela nos taxis?', pensei.

– Sr. Grimes? – perguntou, levantando-se. Era ainda mais linda de pe do que sentada, alta e morena, esbelta num sueter azul bem justo.

– Exatamente – respondi.

– O Sr. Hale esta a sua espera. Entre, por favor – disse ela, abrindo-me a porta para o escritorio de Hale.

Meu amigo estava sentado diante de uma mesa apinhada, tendo a sua frente um monte de papeis. Engordara desde a ultima vez em que o vira, e o seu rosto educado tinha agora a solidez do burocrata. Sobre a mesa, numa moldura de prata, via-se o retrato de uma mulher e duas criancas, um casal. Tudo com moderacao. O crescimento demografico perfeitamente controlado. Um exemplo para os pagaos. Hale ergueu-se ao me ver entrar e sorriu abertamente.

– Doug! – exclamou. – Voce nem sabe a alegria que me da!

Demo-nos as maos e fiquei espantado de ver como aquela recepcao me emocionava. Havia tres anos que ninguem se mostrava feliz por me ver.

– Por onde tem andado, homem? – perguntou Hale. Indicou-me um sofa de couro a um dos lados do espacoso gabinete e, depois que me sentei, puxou uma poltrona para perto do sofa e sentou-se tambem. – Pensei que voce tinha desaparecido da face da Terra. Escrevi tres cartas e todas elas foram devolvidas. Por que nao me deu o seu endereco? Tambem escrevi a sua namorada, Pat, pedindo noticias suas, mas ela respondeu que nao sabia do seu paradeiro. – Olhou para mim, com a testa franzida. Era um rapaz agradavel, alto, com um bom fisico e um rosto sensivel, em quem a testa franzida nao ficava bem. – Voce tambem nao parece muito em forma. Parece que ha anos nao toma ar.

– Ok, ok – atalhei. – Cada coisa a seu tempo, Jerry. Decidi que nao queria mais voar e cai fora. So isso.

– Quis esquiar com voce, no inverno passado. Tive duas semanas de ferias e ouvi dizer que a neve estava otima…

– Para dizer a verdade, tambem nao tenho esquiado muito – falei.

Impulsivamente, Hale bateu-me no ombro.

– Esta bem – disse ele. – Nao lhe vou fazer nenhuma pergunta. – Mesmo quando jovem, na faculdade, ele sempre mostrara inteligencia e sensibilidade. – So uma pergunta. De onde voce esta vindo e o que esta fazendo aqui em Washington? Riu. – Acho que sao duas perguntas.

– Estou vindo de Nova York – respondi. – E vim a Washington para lhe pedir um pequeno favor.

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