O funcionario disse-me quanto era. Anotei a importancia numa folha de papel. O velho Drusack ia po-la na conta de Ferris. Eu o conhecia.

Tomei outro trago de uisque e depois instalei-me na cadeira giratoria e peguei a Biblia. Tinha tempo de ler os proverbios antes que o meu plantao acabasse.

CAPITULO IV

Tomei um taxi para casa, apos contar ao meu colega do dia o que se passara, ou quase tudo. Deixei, como de habito, o envelope para o bookmaker meu amigo, com um bilhete dizendo-lhe para apostar cinco dolares em Ask Gloria, no segundo pareo das corridas de Hialeah. Enquanto fosse possivel, convinha aparentar que aquele era um dia igual a todos os outros.

Mesmo no East Eighties, onde eu morava, nao eram raros os assaltos a qualquer hora. O taxi era um luxo, mas aquele nao era um dia para ser assaltado. Tinha tirado o tubo da prateleira, aproveitando que o meu colega estava ocupado no balcao. Nao havia ninguem no hall quando eu sai e, mesmo que houvesse, que havia de extraordinario no fato de um homem sair com um tubo de papelao embrulhado em papel pardo?

Minha mente funcionava bem e eu nao estava nem um pouco com sono. Geralmente, quando o tempo estava bom, caminhava as trinta e poucas quadras ate meu apartamento, parando para tomar o cafe da manha numa cafeteria da Second Avenue, antes de me deitar e dormir ate as duas da tarde. Mas hoje eu sabia que nao ia poder dormir, que nao tinha necessidade de dormir.

Quando abri a porta do meu apartamento conjugado, as janelas deixando entrar a fria luz cinzenta do inverno, fui direto a geladeira da kitchenette, tirei uma garrafa de cerveja e abri-a, sem sequer despir o sobretudo. A seguir, bebendo de vez em quando um gole de cerveja, rasguei o papel que embrulhava o tubo de papelao. Com uma faca, consegui abrir um dos lados do tubo. Estava cheio, de cima a baixo, de notas de cem dolares.

Tirei as notas uma por uma, alisei-as e agrupei-as em pilhas de dez, sobre a mesa da cozinha. Quando terminei, havia cem pilhas. Cem mil dolares, que cobriam toda a mesa. Acabei com a cerveja. Nao sentia nenhuma emocao, nem medo, euforia ou remorso. Olhei para o relogio de pulso. Vinte para as nove. Os bancos so abririam dali a vinte minutos.

Tirei uma maleta do armario e coloquei dentro o dinheiro.

Ninguem mais tinha a chave do apartamento, mas para que correr riscos? Mala na mao, desci e sai para a avenida. Na quadra seguinte havia uma papelaria e comprei uma caixa de elasticos e tres grandes envelopes pardos, os maiores que havia na loja.

Depois, voltei ao apartamento, tranquei a porta, despi o sobretudo e o paleto e pus metodicamente um elastico em volta de cada pilha de notas, antes de enfia-las num dos envelopes. Reservei mil dolares, que guardei na carteira, para uso imediato.

Fechei os envelopes, fazendo uma careta ante o gosto da cola na lingua. Tirei depois outra garrafa de cerveja da geladeira, enchi um copo e fui bebendo calmamente, sentado a mesa, diante da pilha formada pelos grossos envelopes.

Alugara o apartamento mobiliado e so os livros eram meus. Mesmo assim, nao eram muitos. Quando terminava de ler um livro, geralmente jogava-o fora. O aquecimento era deficiente, e, quando me sentava na unica poltrona esgarcada para ler, costumava vestir o anoraque, que pendia de um gancho atras da porta de entrada. Nessa manha, embora fizesse o frio de sempre e embora eu estivesse em mangas de camisa, sentia-me perfeitamente bem.

Sabia que ia ter de me mudar. E largar o emprego. E sair da cidade. Nao tinha ainda nenhum plano, mas sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguem apareceria, a procura de cem mil dolares.

No banco, fizeram-me assinar duas vezes em cartoes separados. Minha letra estava bastante firme. Os envelopes fechados, contendo o dinheiro, estavam em cima da mesa, diante do jovem subgerente que me atendia, com um rosto assexuado de seminarista. A conversa entre nos foi curta e estritamente comercial. Tinha-me barbeado e vestido adequadamente. Conservava ainda dois ternos decentes, reliquias dos velhos tempos, e tinha posto uma roupa sobria, cinzenta, com uma camisa azul-clara e gravata azul-escura. Queria dar a impressao de que era um cidadao acomodado, talvez nao rico, mas modestamente prospero, um homem cauteloso, industrioso, que podia ter algumas acoes e letras de cambio demasiado valiosas para guardar em casa.

– Seu endereco, por favor? – pediu o subgerente.

Dei o endereco do St. Augustine. Se alguem chegasse a me procurar no banco, o que era pouco provavel, nao encontraria nenhuma pista do meu paradeiro.

– O senhor vai ser a unica pessoa autorizada a ter acesso ao cofre?

'Claro, irmao!', pensei. Mas respondi apenas:

– Sim.

– Sao vinte e tres dolares anuais. Prefere pagar em dinheiro ou em cheque?

– Em dinheiro. – Dei-lhe uma nota de cem dolares. A expressao dele nao se alterou. Sem duvida, achava que eu parecia o tipo de homem capaz de andar com uma nota de cem dolares no bolso. Tomei isso como um bom sinal. O subgerente alisou cuidadosamente a nota com um gesto liturgico e pediu a um dos caixas para fazer o troco.

Permaneci sentado a mesa, acariciando um dos envelopes pardos com as pontas dos dedos. Nao gaguejara uma so vez em toda a manha.

O subgerente voltou, deu-me o troco e fez um recibo, que dobrei e guardei na minha carteira. Depois, segui o homem ate a camara subterranea, onde ficavam as caixas-fortes. Havia no ar um silencio higienico quase religioso, que fazia com que a gente hesitasse em falar mais alto do que num sussurro. Vitrais de igreja nao me pareceriam deslocados, ali. A parabola dos talentos. O encarregado dos cofres entregou-me uma chave e conduziu-me por um silencioso corredor de dinheiro.

Com os tres grossos envelopes debaixo do braco, nao pude deixar de imaginar como todos os tesouros dentro daquelas caixas fechadas, as notas de mil, as acoes e obrigacoes, as joias, teriam sido acumulados, quanto suor despendido, quantos crimes praticados, por que maos todas aquelas pedras e todos aqueles papeis teriam passado antes de repousar naquele frio subterraneo de aco santificado. Olhei para a cara do funcionario, que abria um cofre e puxava a caixa-forte para mim com as duas chaves, a dele e a minha. Era um homem velho e palido de tanto viver debaixo do chao. Nao parecia ter jamais pensado em nada. Talvez essas pessoas fossem escolhidas pela sua falta de curiosidade. Um homem curioso ficaria louco, ali. Acompanhei o homem ate um cubiculo fechado por uma cortina e com uma mesa dentro, e o funcionario deixou-me a sos com a minha caixa, respeitando a privacidade do dinheiro.

Rasguei os envelopes e acomodei as pilhas de notas na caixa, tentando, sem sucesso, prever o que elas fariam por mim. Era como se olhasse para uma enorme maquina, ora em repouso, mas capaz de desenvolver uma forca subita e brutal. Fechei a caixa com um cliquezinho decisivo. Joguei os envelopes numa cesta de papeis, voltei a fileira de cofres com o funcionario e vi-o enfiar a minha caixa no seu compartimento. Mais uma vez ele utilizou as duas chaves para fechar o cofre. Deixei cair minha chave no bolso do paleto e disse ao homem:

– Obrigado. E um bom dia – acrescentei, cortes como um policial.

– Ah! – retrucou ele. Nao devia ter um bom-dia desde que fora crianca.

Subi a escada e sai para a avenida ensolarada e fria. 'Por hoje, chega', pensei. 'Cremical Bank and Trust, confio a voce meus bens terrenos.'

Voltei para casa a pe e fiz as malas. Alem da maleta em que havia levado o dinheiro, tinha uma mala de aviao e tudo o que possuia cabia dentro delas, folgadamente. Deixei o velho anoraque pendurado no armario. Quem me sucedesse no apartamento ia precisar mais dele do que eu. Depois, escrevi um bilhete ao senhorio, dizendo que ia deixar o apartamento. Nao tinha contrato, de modo que nao haveria obstaculo. Dobrei o bilhete, meti-o num envelope junto com a chave e coloquei-o dentro da caixa de correio do senhorio. Carregando as duas malas, sai do edificio sem olhar para tras. Nunca mais teria de me preocupar em como me manter quente naquele apartamento.

Chamei um taxi e dei ao chofer o nome de um hotel no Central Park West, um bairro onde nunca morara e aonde poucas vezes fora. Mesmo com o meu trabalho noturno e os meus habitos reclusos, no meu antigo bairro do East Side sempre podia haver gente capaz de me reconhecer, o meu bookmaker, o dono do bar da esquina, onde as vezes entrava para beber, a garconete de um restaurante italiano proximo, outras pessoas que poderiam indicar-me a alguem que eventualmente viesse a perguntar a meu respeito. Sabia que teria de ir para bem mais longe, porem, nesse meio tempo, atravessar o Central Park seria o suficiente. Mas nao queria fugir as cegas. Sabia que precisava de pelo menos um dia para pensar e fazer planos.

O hotel que escolhi era de classe media e comercial, nao o tipo de lugar que um homem de posse de uma fortuna inesperada iria preferir.

Pedi um quarto de solteiro com banheiro, dei o nome de Theodore Brown, morador em Camden, Nova Jersey, cidade aonde nunca fora, e entrei no elevador com o rapaz das malas. Enquanto subia, estudei o rosto fino e fechado do homem. Era jovem, mas nao havia sinal de inocencia nos olhos sonsos, nos labios apertados. Um rosto destinado pela natureza a corrupcao. O que nao faria com cem mil dolares um sujeito com uma cara daquelas!

Quando chegamos ao quarto, que dava para o parque, o rapaz colocou a mala grande numa cadeira e acendeu a luz do banheiro, ostensivamente reclamando uma gorjeta.

– Sera que voce pode fazer-me um favor? – perguntei, puxando de uma nota de cinco dolares.

– Depende do favor – disse ele, olhando para a nota. – A gerencia nao gosta de prostitutas entrando e saindo.

– Nao e nada disso – retruquei. – Acontece que estou querendo apostar num cavalo e, como nao conheco bem a cidade… – Estava comecando vida nova, mas nao conseguia desligar-me inteiramente dos velhos habitos. Ask Gloria relinchava nas cavalaricas do meu passado.

O rapaz mostrou os dentes no que ele imaginava ser um sorriso simpatico.

– Temos um bookmaker no hotel – falou. – Dentro de quinze minutos ele estara aqui.

– Obrigado. – Dei-lhe a nota de cinco dolares.

– Muito grato – disse o rapaz, fazendo a nota desaparecer. – Poderia dizer-me em que cavalo o senhor vai apostar?

– Ask Gloria, no segundo pareo – respondi. – Em Hialeah.

– E um tremendo azarao – disse ele. Via-se que era um aficionado.

– Isso mesmo – concordei.

– Interessante! – comentou ele. Nao havia duvida do que faria com os meus cinco dolares. Apesar de desonesto, nunca deixaria de ser pobre.

Assim que ele saiu do quarto, desapertei a gravata e atirei-me em cima da cama, embora nao estivesse cansado. Contra o cansaco matinal, pensei, rindo, experimente dinheiro. Ah, a influencia dos comerciais da televisao na maneira de pensar do homem moderno!

O bookmaker nao tardou a aparecer. Era um homem enorme de gordo, metido num terno amassado, com tres esferograficas no bolso do paleto. Ofegava e falava numa voz fina, quase de soprano, tanto mais surpreendente por sair daquele corpanzil.

– Oi, amigo – falou, ao entrar no quarto, seus olhos percorrendo tudo. Um homem preparado para enfrentar ciladas. Embora agisse a luz do dia, seu mundo era o mesmo do policial da radiopatrulha. – Morris me disse que voce esta querendo fazer uma fezinha.

– Isso mesmo – confirmei. – Quero apostar em Ask Gloria… – Hesitei um momento. – Trezentos dolares no primeiro lugar do segundo pareo, em Hialeah. Segundo os catedraticos, ela e um azarao. – Sentia uma euforia estranha, como se estivesse num aviao aberto, sem oxigenio, e de repente tivesse subido a sete mil metros.

O homem tirou do bolso uma folha de papel dobrada, desdobrou-a e percorreu-a com um dedo.

– Posso dar-lhe doze por um – falou.

– Ok – disse eu, passando-lhe as tres notas de cem.

O bookmaker pegou as notas, examinou-as cuidadosamente e deitou-me um olhar em que percebi respeito, uma certa cautela delicada.

– Meu nome e… – comecei.

– Ja sei o seu nome, Sr. Brown. Morris me disse – atalhou o homem, enquanto escrevia com uma das canetas na folha de papel. – O pagamento e as seis, no bar la embaixo.

– Ate as seis, entao – disse eu.

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