acompanhada por policiais uniformizados. Devia haver uns dez fotografos a nossa espera. Na delegacia, ambos identificamos os dois homens, embora eu nao entendesse como Priscilla os podia ter visto bem no carro as escuras e com ela gritando e se debatendo. De qualquer maneira, eles ja tinham confessado, e a identificacao era mera formalidade.

Os dois pareciam inofensivos, a luz do dia. Ainda nao eram propriamente homens. Nenhum dos dois teria mais de dezoito anos e eram magros e assustados, com a pele cheia de espinhas e bocas fingidamente duras, que tremiam quando os policiais lhes dirigiam a palavra. Pouco mais do que pivetes, segundo o policial jovem. Era dificil acreditar que, algumas horas antes, eles tinham ferido um homem, tentado matar-me e quase sido mortos por mim.

Quando sai da delegacia, os fotografos pediram-me que posasse ao lado de Priscilla, mas eu continuei a andar. Estava mais do que farto de Priscilla Dean.

Falei com o medico antes de entrar para ver Fabian. O medico estava otimista.

– Reagiu a operacao muito melhor do que se podia esperar. Acho que vai escapar.

Fabian estava deitado de costas na cama, com tubos enfiando-lhe soro no braco e algo no peito, por baixo das cobertas. O sol entrava pelo quarto e, atraves da janela aberta, chegava o cheiro de grama recem-cortada. Quando me viu entrar, sorriu debilmente e ergueu a mao em cumprimento.

– Acabei de falar com o medico – disse eu, puxando uma cadeira para junto da cama -, e ele me disse que voce vai ficar logo bom.

– Ainda bem – disse ele, numa voz fraca. – Imagine morrer para salvar a honra de Priscilla Dean! – Nao pode deixar de rir. – O que nos deviamos ter feito era apresenta-la aqueles dois rapazes. – Riu de novo, com esforco. – Podiam ter ido juntos para Quogue e se divertido os tres.

– Diga-me uma coisa, Miles – perguntei. – O que deu em voce para tentar pegar o diabo da arma?

Ele abanou a cabeca de um lado para outro, sobre o travesseiro.

– Quem e que sabe? O instinto? A bebida? Ou talvez tenha sido um resto de Lowell, Massachusetts…

– Acho que essa e uma explicacao tao boa quanto qualquer outra – concordei. – Por falar nisso, o medico diz que voce tem uma cicatriz enorme no peito e no abdome. Onde foi que voce a conseguiu?

– Trata-se de um souvenir – respondeu ele. – Mas preferia nao falar nisso agora, se voce nao se incomoda. Sera que voce me fazia um favor?

– Claro.

– Pode telefonar para Lily e perguntar se ela poderia vir passar aqui uns dias? Acho que a presenca dela me faria muito bem.

– Vou telefonar-lhe hoje mesmo – prometi.

– Isso e que e ser um bom menino. – Suspirou. – Foi um sucesso a noite de ontem. Toda aquela gente requintada! Voce devia telegrafar a Quinn, dando-lhe os parabens.

– Evelyn vai tratar disso esta manha – retruquei.

– Mulher sensivel! Estava linda, ontem a noite. – Pus-me de pe. – Nao, nao va ja embora – disse ele. – Acho que naquela gaveta ha um bloco e uma caneta. Pode traze-los ate aqui?

Abri a gaveta e dei-lhe o bloco e a caneta. Ele escreveu devagar e com dificuldade. Depois, arrancou a folha do bloco e entregou-me.

– Nunca se sabe o que vai acontecer, Douglas – disse-me ele. – Eu… – Estacou, como se tivesse dificuldade em escolher as palavras. – Essa nota que voce tem na mao e para o banco em Zurique. Alem da nossa conta conjunta, tenho uma conta particular, nesse banco. O numero esta ai, bem como a minha assinatura. O que lhe estou querendo dizer e que, de tempos em tempos, eu… eu, bem… retirei uma quantia consideravel. Para falar francamente, Douglas, eu estava trapaceando com voce. Essa nota vai devolver-lhe o dinheiro que eu tirei.

– Meu Deus! – exclamei.

– Eu lhe avisei, logo de inicio – disse ele -, que nao era um sujeito admiravel.

Bati-lhe de leve na cabeca.

– Ora, o dinheiro nao e tudo, meu amigo – falei. – Voce me ensinou muitas coisas.

As lagrimas subiram-lhe aos olhos.

– O dinheiro nao e tudo – repetiu. E logo depois riu. – Sabe o que estou pensando? Que foi uma sorte eu ficar ferido. De outra maneira, ninguem iria acreditar que tudo nao passava de uma farsa publicitaria para promover Priscilla Dean.

A enfermeira entrou no quarto e olhou severamente para mim, de modo que me levantei.

– Cuide dos negocios – disse Fabian, a guisa de despedida.

Lily chegou na tarde do dia seguinte. Fui espera-la no Aeroporto Kennedy para leva-la ao hospital. Como sempre, ela estava muito elegante, no mesmo casaco marrom que usara em Florenca. Quase nao falou, durante o caminho. Mas fumou sem parar. Tive de comprar dois macos de cigarros na estrada. Dissera-lhe que o medico considerava boas as chances de Fabian se recuperar, mas ela limitara-se a assentir com a cabeca.

– O medico tambem disse – falei eu, quebrando o silencio, quando passavamos por Riverhead – que Miles tem uma enorme cicatriz no peito e no abdome. Disse que parecia um ferimento a granada. Voce sabe do que se trata? Perguntei a Miles, mas ele disse que preferia nao falar nisso.

– Claro que sei da cicatriz – retrucou Lily. – Vi-a na primeira vez que fomos para a cama juntos. Ele parecia ter vergonha dela, como se fosse algo que o diminuisse. Voce sabe como ele e vaidoso. E por isso que nunca pratica natacao e sempre usa camisa e gravata. Nao lhe fiz perguntas, mas depois de algum tempo ele mesmo me contou. Foi piloto na guerra… suponho que lhe tenha dito isso…

– Nao – disse eu.

Ela sorriu atraves da fumaca do cigarro.

– Sempre discreto e reservado, o nosso Miles. Bem, ele foi piloto durante a guerra. Deve ter sido um otimo piloto. Soube, por velhos amigos meus americanos, que o conheceram, que ele tem quase todas as medalhas que um governo grato pode conferir. – Lily torceu ironicamente a boca. – No inverno de 1944, deram-lhe uma missao nos ceus da Franca. Segundo ele me disse, uma missao praticamente suicida, num tempo horrivel. Claro que nao entendo nada disso, mas numa coisa dessas tendo a acreditar nele. Disse-me que o comandante do seu esquadrao era um louco e irresponsavel conquistador de glorias. Seja como for, Miles e seu melhor amigo foram derrubados sobre o Pas de Calais. O amigo morreu e Miles foi feito prisioneiro pelos alemaes, que cuidaram dele… a maneira alema. A cicatriz e resultante disso. Quando o hospital em que ele estava internado foi tomado pelas forcas aliadas, ele pesava menos de cinquenta quilos. Aquele homenzarrao. – Lily ficou por um tempo calada, fumando. – Segundo ele me disse, foi entao que decidiu que ja tinha feito o suficiente em prol da humanidade. Isso explica um pouco a sua maneira de viver, voce nao acha?

– Um pouco – concordei. – Voce acreditava, quando ele se fazia passar por um rico proprietario ingles?

– Claro que nao. Riamos um bocado. Eu lhe ensinei uma porcao de anglicismos. Voce se envolveu em muitos negocios com ele, nao?

– Em varios – disse eu.

– Lembra-se de que o preveni sobre ele, a respeito de dinheiro?

– Lembro-me.

– Ele o enganou?

– Um pouco.

– A mim tambem. Querido Miles! – Riu. – Pode nao ser muito honesto, mas e um homem que sabe viver e gosta de dar alegria aos outros. Nao sei, mas talvez isso seja mais importante do que ser honesto. – Acendeu outro cigarro. – Custa pensar que ele esteja morrendo.

– Talvez nao morra – disse eu.

– E, talvez.

Nao falamos mais ate chegarmos ao hospital.

– Gostaria de estar com ele a sos – disse Lily, quando paramos a porta do belo predio de tijolos vermelhos.

– Naturalmente – falei. – Vou deixar suas malas no hotel. E estarei em casa, se voce precisar de mim. – Beijei a e vi-a entrar no hospital.

Estava escuro, quando cheguei a casa. Havia um carro que eu nao conhecia diante do portao. 'Mais reporteres', pensei, aborrecido. O carro de Evelyn nao estava na garagem e decerto Anna deixara entrar quem quer que fosse. Abri com a minha chave. Um homem estava sentado na sala, lendo um jornal. Levantou-se quando me viu entrar.

– Sr. Grimes…? – perguntou.

– Sim, sou eu.

– Tomei a liberdade de esperar pelo senhor em sua casa – explicou ele. Era um homem magro, de cabelo louro e ar intelectual, corretamente vestido num terno de verao cinza-escuro, camisa branca e gravata colorida. Nao parecia um reporter. – Meu nome e Vance – disse ele. – Sou advogado. Vim aqui, a pedido de um cliente, apanhar cem mil dolares.

Dirigi-me ao armario onde guardavamos as bebidas e preparei um uisque para mim.

– Aceita um drinque? – perguntei ao homem.

– Nao, muito obrigado.

Trouxe a bebida na mao e sentei-me numa poltrona, diante de Vance. Ele permaneceu de pe, franzino e nada ameacador.

– Estava sempre a espera de que voces aparecessem.

– Levou algum tempo – disse ele, numa voz seca, baixa e educada, dificil de aguentar por muito tempo sem entediar. – Nao foi facil segui-lo. Felizmente… – Indicou o jornal. – O senhor se transformou num heroi, da noite para o dia.

– Assim parece – concordei. – Nao ha como uma boa acao para a pessoa brilhar neste mundo perdido.

– Exatamente – assentiu ele.

Olhou em volta da sala. O bebe estava chorando em seu quarto.

– Bela casa! – falou ele. – Gostei da vista.

– Pois e – falei. Sentia-me muito cansado.

– Meu cliente mandou-me avisar-lhe que o senhor tem tres dias para entregar o dinheiro. Ele e um homem razoavel.

Fiz que sim com a cabeca. Ate isso foi com esforco.

– Estarei no Hotel Blackstone. A menos que o senhor prefira o St. Augustine. – Sorriu, um sorriso de caveira.

– O Blackstone esta bom – disse eu.

– Nas mesmas condicoes em que o senhor o encontrou, por favor – disse Vance. – Em notas de cem dolares.

Fiz de novo que sim.

– Bem – disse ele -, acho que esta tudo combinado. Agora, preciso ir andando.

Ja na porta, ele parou.

– O senhor nao perguntou quem e o meu cliente – falou.

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