uma subita intuicao dos seus proprios motivos ocultos. Havia escolhido Boris porque era fisicamente apto, tecnicamente habilitado e homem de toda a confianca. Ao mesmo tempo, desconfiava de que nessa escolha tivesse participado uma especie de curiosidade travessa, de que o seu eu consciente nao quisera tomar conhecimento. Como reagiria um homem com tais crencas religiosas a aterradora realidade de Rama? E se ele encontrasse alguma coisa que desbaratasse a sua teologia… ou, pelo contrario, que viesse confirma-la?

Mas Boris Rodrigo, com a sua cautela costumeira, nao se deixou levar.

— Eles certamente respiravam oxigenio, e e possivel que fossem humanoides. Com um pouco de sorte, talvez venhamos «a descobrir que aparencia tinham. Talvez haja pinturas, estatuas, quem sabe se ate corpos, nessas cidades. Se e que sao cidades.

— E a mais proxima fica apenas a oito quilometros de distancia — observou esperancosamente Joe Calvert.

«Sim», pensou o comandante, «mas tambem sao oito quilometros a retroceder, e depois sera preciso subir de novo aquela tremenda escadaria. Podemos assumir esse risco?»

Uma pequena expedicao de reconhecimento a «cidade» que eles haviam denominado Paris figurava entre os seus primeiros planos de contingencia, e chegara o momento de tomar a decisao. Tinham mantimentos e agua de sobra para uma permanencia de vinte e quatro horas; estariam sempre a vista da equipe de reforco postada no Cubo, e qualquer especie de acidente parecia virtualmente impossivel naquela planicie lisa, com a sua suave curvatura. O unico perigo previsivel era a exaustao; quando chegassem a Paris, o que seria bastante facil, que outra coisa poderiam fazer alem de tirar algumas fotografias e talvez colher pequenos artefatos, antes de serem obrigados a voltar?

Entretanto, mesmo uma breve incursao desse genero valeria a pena. O tempo era muito curto, pois Rama se precipitava na direcao de um perielio demasiado perigoso para a Endeavour.

Em todo caso, nao era a ele que competia tomar uma parte da decisao. La em cima, na astronave, a Dra. Ernst estaria observando as indicacoes dos sensores biotelemetricos aplicados ao seu corpo. Se ela voltasse o polegar para baixo, nao haveria apelacao.

— Laura, que e que voce acha?

— Descansem trinta minutos e tomem um modulo energetico de quinhentas calorias. Depois podem partir.

— Obrigado, doutora — atalhou Joe Calvert. — Agora posso morrer contente. Sempre desejei conhecer Paris. Montmartre, la vamos nos.

13 A PLANICIE DE RAMA

DEPOIS DAQUELAS interminaveis escadarias, era um estranho luxo caminhar mais uma vez sobre uma superficie horizontal. Bem em frente, o terreno era em verdade completamente plano; a direita e a esquerda, a curva ascendente se fazia perceptivel nos limites da area iluminada pelo projetor. Era como se eles estivessem caminhando por um vale raso e muito largo; ninguem diria que em realidade avancavam sobre a face interna de um enorme cilindro, e que alem desse pequeno oasis de luz o solo ia subindo para encontrar-se com o ceu — ou, mais exatamente, para tornar-se o proprio ceu.

Embora todos eles estivessem animados por um sentimento de confianca e de contido alvoroco, depois de algum tempo o silencio quase palpavel de Rama comecou a pesar opressivamente sobre o grupo. Cada passo, cada palavra se desvanecia instantaneamente no vazio sem eco; apos terem percorrido pouco mais de meio quilometro, o Ten. Calvert nao pode mais suportar aquilo.

Entre as suas pequenas habilidades contava-se um talento hoje raro, embora muitos achassem que nao o era suficientemente — a arte de assobiar. Com ou sem encorajamento, podia reproduzir os temas musicais da maioria dos filmes dos ultimos duzentos anos. Comecou apropriadamente com Heigh-ho, heigh-ho, 'tis off to work we go, mas, convencendo-se de que nao podia sustentar o baixo dos anoes de Disney em marcha, fez uma rapida transicao para o Rio Kwai. Depois progrediu, mais ou menos cronologicamente, atraves de meia duzia de marchas heroicas, culminando no famoso Napoleao de Sid Krassman, dos fins do seculo XX. Foi uma bela tentativa, mas nao surtiu efeito, nem mesmo para elevar o moral. Rama exigia a grandeza de um Bach ou Beethoven, de Sibelius ou Tuan Sun, nao a trivialidade dos espetaculos populares. Norton estava a ponto de sugerir que Joe guardasse o seu folego para exercicios futuros, quando o jovem oficial percebeu a inutilidade dos seus esforcos. Dai em diante, fora alguma consulta ocasional a nave, continuaram a caminhar em silencio. Rama havia ganho esse round.

Em sua travessia inicial, Norton permitira-se uma digressao. Paris ficava bem em frente, a igual distancia entre o pe da escadaria e a margem do Mar Cilindrico, mas apenas um quilometro a direita do caminho que seguiam havia um acidente de terreno muito proeminente e um tanto misterioso, que fora batizado como o Vale Retilineo. Era um longo sulco ou vala, com quarenta metros de fundo e cem de largo, ladeado por taludes de suave inclinacao; fora provisoriamente identificado com um fosso ou canal de irrigacao. Como a propria Escadaria, tinha dois pendants semelhantes, igualmente espacados ao redor da curva de Rama.

Os tres vales mediam quase dez quilometros de comprimento e terminavam bruscamente, um pouco antes de chegarem ao mar — o que era estranho, se de fato se destinavam a conduzir agua. E no outro lado do mar o mesmo padrao se repetia: outras tres valas de dez quilometros seguiam no rumo da regiao polar Sul.

Alcancaram o termino do Vale Retilineo ao cabo de apenas quinze minutos de marcha folgada, e por um momento ficaram parados, olhando pensativamente o fundo da depressao. As paredes perfeitamente lisas desciam num angulo de sessenta graus; nao tinham degraus nem apoios para os pes. Enchia o fundo uma camada de material branco, de superficie plana, que se parecia muito com gelo. Uma amostra desse material poderia resolver muitas disputas. Norton decidiu ir busca-la.

Enquanto Calvert e Rodrigo funcionavam como ancoras, folgando pouco a pouco uma corda de seguranca, ele desceu vagarosamente o forte declive. Ao alcancar o fundo, tinha quase certeza de que ia experimentar a conhecida sensacao do gelo resvaladico sob os pes, mas enganava-se. O atrito era muito grande e seus pes pousaram firmes no chao. Aquele material era alguma especie de vidro ou cristal transparente; quando o tocou com as pontas dos dedos, sentiu-o frio, duro e resistente a pressao.

Voltando as costas ao projetor e fazendo pala com a mao sobre os olhos, Norton procurou espreitar as profundezas cristalinas como quem tenta enxergar atraves da camada de gelo que recobre um lago. Nao pode ver nada, contudo, nem mesmo a luz concentrada de sua lampada de capacete. O material era translucido, porem nao transparente. Se realmente era um liquido gelado, tinha um ponto de fusao muito mais alto que a agua.

Bateu levemente nele com o martelo do seu estojo de geologo; a ferramenta ricocheteou com um ruido surdo: clanc! Bateu mais forte, sem melhor resultado, e ia martelar com toda a forca quando algum impulso o fez desistir. Parecia muito pouco provavel que conseguisse rachar aquele material; mas… e se o fizesse? Seria como um vandalo que despedaca uma enorme parede de cristal. Teria melhor ensejo para colher sua amostra mais tarde, e pelo menos ja tinha uma informacao valiosa. Agora, parecia mais improvavel do que nunca que se tratasse realmente de um canal; era, simplesmente, um singular fosso que comecava e terminava abruptamente, sem levar a parte alguma. E, se alguma vez tinha conduzido liquido, onde estavam as manchas, as incrustacoes de sedimentos secos que seriam de esperar? Tudo brilhava de limpeza, como se os construtores houvessem partido ainda na vespera…

Mais uma vez se lhe defrontava o misterio fundamental de Rama, e agora nao era possivel fugir-lhe. O Comandante Norton era um homem razoavelmente imaginativo, mas jamais teria ascendido a sua posicao atual se costumasse entregar-se aos voos mais desenfreados da fantasia. E contudo, nesse momento, teve pela primeira vez um sentimento — nao exatamente de premonicao, mas de previsao. As coisas nao eram o que pareciam; havia algo muito, mas muito estranho num lugar que era simultaneamente novinho em folha — e velho de um milhao de anos.

Muito pensativo, pos-se a caminhar lentamente ao longo do pequeno vale, enquanto seus companheiros, que ainda seguravam a corda amarrada a sua cintura, o seguiam pela borda. Nao esperava fazer novas descobertas, mas queria que o seu curioso estado emocional fosse ate o fim. Porque havia outra coisa a preocupa-lo, e essa coisa nada tinha que ver com a inexplicavel novidade de Rama.

«Nao havia andado mais que uma duzia de metros quando o pensamento o atingiu como um raio.

Conhecia aquele lugar. Ja tinha estado ali antes. Mesmo na Terra ou em algum planeta familiar, essa

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