experiencia e inquietante, embora nao seja particularmente rara. A maioria das pessoas a conheceram numa ou noutra ocasiao, e em geral a «explicam» como a memoria de uma fotografia esquecida, uma pura coincidencia — ou, quando se inclinam ao misticismo, alguma forma de telepatia, a mensagem de outra mente, ou mesmo como um flash-back do seu proprio futuro.

Mas reconhecer um lugar em que nenhum outro ser humano pode ter visto jamais — isso e simplesmente chocante. Pelo espaco de varios segundos, o Comandante Norton pareceu ter criado raizes na superficie lisa e cristalina sobre a qual estivera caminhando enquanto procurava por em ordem as suas emocoes. Seu bem- ordenado universo virara de pernas para o ar e ele teve um vislumbre vertiginoso daqueles misterios que pairam na orla da existencia e pelos quais, em geral, conseguia passar de largo.

Foi entao que, para seu imenso alivio, acudiu-lhe o senso comum. Desvaneceu-se a perturbadora sensacao do deja vu, cujo lugar foi tomado por uma real e identificavel recordacao da sua juventude. Era verdade: uma vez ele se encontrara entre dois taludes inclinados e ingremes como aqueles, vendo-os perder-se na distancia, ate que pareciam convergir num ponto infinitamente afastado. Mas eram cobertos de grama aparada a capricho; e o chao era de pedra britada, nao de cristal liso. Isso acontecera trinta anos atras, durante uma ferias de verao na Inglaterra. Em grande parte por causa de uma outra estudante (lembrava-se ainda do seu rosto, mas esquecera como se chamava), tinha feito um curso de Arqueologia Industrial, entao muito em voga entre os graduados em Ciencias e Engenharia. Haviam explorado minas de carvao e cotonificios abandonados, escalado ruinas de altos- fornos e locomotivas a vapor, arregalado os olhos incredulos diante de primitivos (e ainda perigosos) reatores nucleares, e dirigido preciosas antiqualhas movidas a turbina por auto-estradas restauradas.

Nem tudo que viram era genuino; uma boa parte dessas coisas perdera-se ao longo dos seculos, pois os homens raramente se dao ao trabalho de preservar os objetos comuns da vida cotidiana. Mas quando era necessario fazer copias, eles tinham sido reconstruidos com amoroso cuidado.

E foi assim que o jovem Norton saiu a rolar sobre os trilhos, a uma euforica velocidade de cem quilometros por hora, atirando pazadas e mais pazadas de precioso carvao para dentro da fornalha de uma locomotiva que parecia velha de duzentos anos, mas em realidade era mais jovem do que ele. Os trinta quilometros de via permanente da Great Western Railway, no entanto, eram perfeitamente genuinos, se bem que fora preciso um consideravel trabalho de escavacao para faze-la voltar a funcionar.

Apita que apita, haviam mergulhado na vertente de uma colina, precipitando-se numa escuridao fumarenta, alumiada por chamas de querosene. Apos um tempo que pareceu interminavel, deixaram repentinamente o tunel e vararam por um corte perfeitamente retilineo entre ingremes taludes plantados de grama. A vista, ha muito esquecida, era quase identica aquela que tinha agora diante dos olhos.

— Que e que ha, Capitao? — gritou o Ten. Rodrigo. — Achou alguma coisa?

Enquanto Norton voltava, com um esforco, ao senso da realidade presente, seu espirito libertou-se, em parte, do sentimento de opressao. Havia ali um misterio, e certo; mas talvez nao estivesse alem da compreensao humana.

Tinha aprendido uma licao, embora nao fosse facil comunica-la a outros. Custasse o que custasse, nao devia deixar-se esmagar por Rama. Por esse caminho se ia ao fracasso, talvez a loucura.

— Nao — respondeu. — Nao ha nada ca embaixo. Me puxem para cima. Vamos direto a Paris.

14 SINAL DE MAU TEMPO

CONVOQUEI esta reuniao do Comite — disse S. Excia. o Embaixador de Marte junto aos Planetas Unidos — porque o Dr. Perera tem algo de importante para nos comunicar. Pede insistentemente que entremos sem demora em contato com o Comandante Norton, usando o canal prioritario que, posso dize-lo, so conseguimos estabelecer depois de lutar com grandes dificuldades. A comunicacao do Dr. Perera e de carater bastante tecnico, e antes de a examinarmos creio que convem fazer um sumario da situacao presente. O Dr. Price preparou esse sumario. Ah, sim… ha alguns pedidos de desculpas por ausencia. Sir Lewis Sands nao pode nos fazer companhia porque esta presidindo uma conferencia, e o Dr. Taylor roga que o dispensemos.

Quanto a esta ultima abstencao, nao lhe desagradava nem um pouco. O antropologo perdera logo o interesse por Rama quando se tornou evidente que oferecia pouco campo aos seus estudos. Como muitos outros, ficara profundamente desapontado a noticia de que aquele pequeno mundo itinerante estava morto; isso excluia toda oportunidade de livros e videos sensacionais a respeito dos ritos e padroes de comportamento ramaianos. Outros que cavassem esqueletos e classificassem artefatos; esse tipo de trabalho nao era do gosto de Conrad Taylor. Talvez a unica descoberta capaz de faze-lo voltar pressurosamente fossem algumas obras de arte altamente explicitas, como os afrescos de Tera e Pompeia.

O ponto de vista de Thelma Price, a arqueologa, era o oposto exato deste. Ela preferia escavacoes e ruinas livres de habitantes que pudessem interferir nos desapaixonados estudos cientificos. O fundo do Mediterraneo tinha sido ideal — pelo menos enquanto os urbanistas e arquitetos paisagistas nao se meteram de permeio. E Rama teria sido perfeito, nao fosse o exasperante detalhe de encontrar-se a cem milhoes de quilometros de distancia, o que a impedia para sempre de visita-lo em pessoa.

— Como todos aqui sabem — comecou, — o Comandante Norton completou uma travessia de quase trinta quilometros sem encontrar qualquer problema. Explorou o curioso fosso que aparece nesses mapas como o Vale Retilineo; a finalidade desse fosso ainda e completamente desconhecida, mas sua importancia e evidente, porquanto corre ao longo de todo o comprimento de Rama — salvo a interrupcao do Mar Cilindrico — e ha duas outras estruturas identicas, com intervalos de 120 graus, em volta da circunferencia desse mundo.

«Depois o grupo dobrou a esquerda — ou para Leste, se adotarmos a convencao do Polo Norte — ate chegarem a Paris. Como verao por esta fotografia, tirada por uma camara telescopica no Cubo, trata-se de um grupo de varias centenas de edificios separados por largas ruas.

«Bem, estas outras fotografias foram tiradas pelo grupo do Comandante Norton quando chegaram ao local. Se Paris e uma cidade, e uma cidade muito singular. Notem que nenhum dos edificios tem janelas, ou mesmo portas! Todos sao simples estruturas retangulares, com uma altura uniforme de trinta e cinco metros. Parecem ter sido expelidas do solo como pasta dentifricia de um tubo: nao tem juntas nem emendas. Vejam este primeiro plano da base de uma parede — a transicao para o solo e perfeitamente lisa.

«Minha opiniao pessoal e que este lugar nao e uma area residencial, mas um conjunto de depositos e armazens de suprimentos. Em apoio dessa teoria, vejam esta foto…

«Estas fendas ou sulcos estreitos, medindo uns cinco centimetros de largura, correm ao longo de todas as ruas, e ha um conduzindo a cada um deles — penetrando diretamente na parede. Esses sulcos tem uma semelhanca notavel com os trilhos de bondes do comeco do seculo XX. Fazem parte, evidentemente, de algum sistema de transportes.

«Nunca nos pareceu necessario fazer com que os transportes publicos conduzissem diretamente a cada casa. Seria economicamente absurdo, e as pessoas sempre podem caminhar algumas centenas de metros. Mas, se estes edificios fossem usados para armazenagem de materiais pesados, isso faria sentido.

— Da licenca de fazer uma pergunta? — perguntou c Embaixador da Terra.

— Pois nao, Sir Robert.

— O Comandante Norton nao conseguiu entrar em nenhum dos edificios?

— Nao. Quando ouvirem o relato dele, verao a que ponto se sentiu frustrado. Chegou mesmo a pensar que so se podia entrar nos edificios pelo subsolo; foi entao que descobriu os sulcos do sistema de transportes e mudou de pensar.

— Tentou forcar a entrada?

— Nao havia maneira de faze-lo, a nao ser com explosivos. ou ferramentas pesadas. E ele nao quer usar essas coisas a nao ser quando todos os outros meios tiverem falhado.

— Ja sei! — exclamou repentinamente Dennis Solomons. Encasulagem!

— Perdao?

— E uma tecnica que foi desenvolvida ha coisa de dois seculos — continuou o historiador da Ciencia. — Quando se quer preservar alguma coisa, poe-se dentro de um saco de plastico, insufla-se um gas inerte e veda- se. Inicialmente, usou-se para proteger equipamento militar nos periodos entre guerras; chegou-se a encasular navios inteiros. O processo ainda e muito usado nos museus onde haja escassez de espaco para armazenagem;

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