cogitacao — ou melhor, era impossivel.

Havia momentos em que o Comandante Norton sentia uma vergonha irracional por deixar tanto lixo humano nesse lugar estranhamente imaculado. Quando partissem finalmente, estava preparado para sacrificar uma parte do precioso tempo da tripulacao no empenho de deixar tudo em perfeita ordem. Por improvavel que isso fosse, talvez um dia, milhoes de anos mais tarde, Rama atravessasse outro sistema estelar e tornasse a receber visitantes.

Entrementes, tinha um problema de importancia mais imediata. Durante as ultimas vinte e quatro horas, havia recebido mensagens quase identicas de Marte e da Terra. A coincidencia parecia estranha; talvez se tivessem condoido uma da outra, como podia acontecer por vezes, havendo motivo suficiente para tal, a esposas que viviam em planetas diferentes. Com certa insistencia, ambas lhe lembravam que, embora fosse agora um grande heroi, nao se livrara das suas responsabilidades de familia.

O Comandante apanhou uma cadeira dobradica e saiu do circulo de luz para a escuridao que rodeava o acampamento. Era o unico meio que tinha de isolar-se, e tambem poderia refletir melhor longe da lufa-lufa. Voltando deliberadamente as costas aquela confusao organizada, pos-se a falar para o gravador que levava pendurado ao pescoco.

«Original para arquivo pessoal, duplicatas para Marte e Terra. Alo, minha querida… Sim, eu sei que tenho sido um pessimo correspondente, mas ha uma semana que nao vou a bordo da nave. Fora a tripulacao minima que la ficou, estamos todos acampados dentro de Rama, ao pe da escadaria que chamamos de Alfa.

«Tenho agora tres grupos explorando a planicie, mas os nossos progressos tem sido decepcionadoramente lentos, pois tudo deve ser feito a pe. Se ao menos tivessemos algum meio de transporte! Eu ate me daria por muito satisfeito com algumas bicicletas eletricas… Seriam otimas para esse servico.

«Voce conhece minha oficial medica, a Capita Ernst…» Fez uma pausa, hesitante; Laura conhecia uma de suas esposas, mas qual delas? Era melhor cortar isso. Apagou a frase e comecou de novo.

«Minha oficial, a Capita-medica Ernst, conduziu o primeiro grupo que chegou ao Mar Cilindrico, a quinze quilometros daqui. Verificou que se tratava de agua gelada, como esperavamos — mas uma agua que voce nao desejaria beber. A Dra. Ernst diz que e uma sopa organica diluida, contendo tracos de quase todos os compostos de carbonio que se pode imaginar, alem de fosfatos, nitratos e uma duzia de sais metalicos. Nao ha o mais leve sinal de vida — nem sequer microrganismos mortos. Continuaremos, pois, ignorando tudo sobre a bioquimica dos ramaianos — embora seja provavel que nao diferisse tanto assim da nossa.»

Alguma coisa rocou de leve o seu cabelo. Tao atarefado andava que nao tivera tempo de manda-lo cortar, mas nao devia esquecer-se de faze-lo antes de por um capacete espacial…

«Voce viu os videos de Paris e das outras cidades que exploramos deste lado do Mar… Londres, Roma, Moscou. E impossivel acreditar que tenham sido construidas para alguma coisa viver nelas. Paris tem o ar de um gigantesco armazem. Londres e uma colecao de cilindros ligados entre si por tubulacoes que, por sua vez, estao em conexao com estruturas que sao, evidentemente, postos de bombeamento. Tudo esta perfeitamente vedado, e nao ha meio de descobrir o que se oculta la dentro a nao ser usando explosivos ou raios laser. So tentaremos essas coisas quando nao houver outro recurso. «Quanto a Roma e Moscou…»

— Com licenca, meu Capitao. Prioridade, vindo da Terra. «Que teremos agora?» pensou Norton. «Um homem nao pode gozar alguns momentos de descanso para falar as suas familias?»

Recebeu a mensagem das maos do sargento e percorreu-a rapidamente com os olhos para convencer-se de que nao era assunto imediato. Depois tornou a le-la, mais devagar.

Que diabo de negocio era esse Comite Rama? E por que nunca tinha ouvido falar nele? Sabia que toda sorte de associacoes, sociedades e grupos profissionais — alguns serios, outros completamente malucos — haviam tentado entrar em contato com ele; o Controle da Missao fazia um bom trabalho de protecao e nao teria deixado passar essa mensagem a nao ser que a considerasse importante.

«Ventos de duzentos quilometros… provavel irrupcao repentina…» Bem, isso dava que pensar. Mas era dificil leva-lo muito a serio, nessa noite perfeitamente calma; e seria ridiculo porem-se em fuga como ratos assustados, quando estavam justamente comecando a explorar de verdade.

O Comandante Norton ergueu a mao para afastar uma mecha do seu cabelo que, nao sabia como, tornara a cair-lhe sobre os olhos. De repente imobilizou-se, sem completar o gesto.

Havia sentido uma baforada de vento por varias vezes durante a ultima hora. Era tao leve que nao fizera caso nenhum; afinal de contas, comandava uma astronave, nao um navio a vela. Ate agora o movimento do ar nao tivera o menor interesse profissional para ele. Que teria feito numa situacao como esta o comandante daquele outro Endeavour, morto havia tanto tempo?

Esta era uma pergunta que Norton vinha fazendo a si mesmo em todos os momentos de crise durante os ultimos anos. Era o seu segredo, que nunca revelara a ninguem. E, como a maioria das coisas importantes na sua vida, ocorrera de maneira completamente acidental.

Fazia ja varios meses que era comandante da Endeavour quando soube que esta recebera o nome de um dos mais famosos navios da Historia. E verdade que nos ultimos quatrocentos anos houve uma duzia de Endeavours do mar e dois do espaco, mas o antepassado de todos eles fora o carvoeiro de 370 toneladas em que o Capitao James Cook, da Real Armada Britanica, fizera a volta ao mundo entre 1768 e 1771.

Com um interesse ocioso que nao tardara a converter-se numa curiosidade absorvente, quase uma obsessao, Norton pusera-se a ler tudo que podia encontrar a respeito de Cook. Era agora, provavelmente, a maior autoridade do mundo sobre o maior explorador de todos os tempos, e conhecia de cor trechos inteiros dos Diarios.

Ainda parecia incrivel que um homem so pudesse ter feito tanto, com um equipamento tao primitivo. Mas Cook nao somente fora um navegador inigualavel como tambem um cientista e — numa epoca de disciplina brutal — um humanitario. Tratava seus homens com bondade, o que era raro; mas havia outra coisa, essa inaudita: exatamente da mesma forma se conduzia com os selvagens muitas vezes hostis das novas terras que ia descobrindo.

O sonho secreto de Norton, que ele sabia nunca havia de realizar, era retracar pelo menos uma das viagens de Cook ao redor do mundo. Fizera uma limitada mas espetacular tentativa que certamente teria assombrado o Capitao, certa vez que voara numa orbita polar bem acima dos recifes da Grande Barreira. Era de manha cedo, num dia limpido, e de quatrocentos quilometros de altura tinha desfrutado uma soberba vista da mortifera muralha de coral marcada por sua linha de espuma branca ao longo da costa de Queensland.

Levara um pouco menos de cinco minutos para sobrevoar ps dois mil quilometros da Barreira. Num so relance de olhos pode abarcar semanas de perigosa navegacao para aquele primeiro Endeavour. E, pelo telescopio, divisara Cooktown e o estuario onde o navio fora posto em seco para reparacoes, apos o seu primeiro encontro quase fatal com os recifes.

Um ano depois, uma visita a Estacao de Rastreamento Espacial de Havai lhe proporcionara uma experiencia ainda mais inesquecivel. Tomara o hidrofolio para a baia de Kealakekua, e ao passar rapidamente pelas desoladas penedias vulcanicas sentiu uma intensidade de emocao que o surpreendeu e ate o desconcertou. O guia do grupo de cientistas, engenheiros e astronautas fizera-os passar diante do refulgente pilone de metal que substituia o monumento anterior, destruido pelo grande tsunami de 2068. Caminharam sobre alguns metros de lava negra e escorregadia para ler a pequena placa a beira d'agua. As maretas vinham quebrar-se sobre ela, mas Norton apenas reparou nisso ao curvar-se para ler as palavras:

PERTO DESTE PONTO

O CAPITAO JAMES COOK

FOI MORTO

EM 14 DE FEVEREIRO DE 1779

A PLACA ORIGINAL FOI INAUGURADA EM 28 DE AGOSTO DE 1928

PELA COMISSAO DO SESQUICENTENARIO DE COOK

E SUBSTITUIDA PELA COMISSAO DO TRICENTENARIO

EM 14 DE FEVEREIRO DE 2079

Isso fora anos atras e a cem milhoes de quilometros dali. Mas num momento como este a confortadora presenca de Cook parecia muito proxima. Nos desvaos secretos do seu pensamento, ele perguntaria: «Bem, Capitao, e o senhor o que pensa disto? Era um pequeno jogo a que se entregava nas ocasioes em que os fatos

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