eram insuficientes para se formar um juizo solido e tornava-se preciso confiar na intuicao. Nisso consistia, em parte, o genio de Cook; e sempre escolhera o alvitre acertado — ate o fim, na baia de Kealakekua.
O Sargento esperava pacientemente enquanto o seu comandante olhava em silencio a noite de Rama. Ja nao era uma noite ininterrupta, pois em dois pontos, a uns quatro quilometros de distancia, podiam avistar-se claramente as debeis manchas luminosas dos grupos de exploradores.
«Numa emergencia, posso faze-los voltar no prazo de uma hora», pensou Norton. E isso, por certo, seria suficiente.
Virou-se para o Sargento.
— Escreva esta mensagem. «Comite Rama, a cuidado de Spacecom. Agradeco recomendacao e tomarei precaucoes. Favor especificar significado da expressao 'irrupcao repentina'. Respeitosamente, Norton, Comandante, Endeavour.»
Esperou que o sargento tivesse desaparecido na direcao das luzes resplandecentes do acampamento para tornar a ligar o gravador. Mas o fio de seus pensamentos se rompera e nao podia recuperar o estado de espirito anterior. O fim da carta teria que aguardar outra oportunidade.
Nao era comum que o Capitao Cook lhe acudisse quando estava negligenciando o seu dever. Mas subitamente lembrou-se de que a pobre Elizabeth Cook so de raro em raro e por breves momentos tinha visto seu marido em dezesseis anos de vida matrimonial. Nao obstante, dera-lhe seis filhos — e sobrevivera a todos eles.
Suas esposas, que nunca se achavam a mais de dez minutos dele a velocidade da luz, nao tinham por que se queixar…
17 PRIMAVERA
Durante as primeiras «noites» em Rama nao fora facil dormir. A escuridao e os misterios que ali se ocultavam eram opressivos, mas ainda mais inquietante era o silencio. A ausencia de ruidos nao e uma condicao natural; todos os sentidos humanos exigem algum grau de excitacao. Se dela sao privados, a mente fabrica os seus sucedaneos. E assim, muitos se tinham queixado de ouvir estranhos ruidos — e mesmo vozes — enquanto dormiam — o que era evidentemente uma ilusao, uma vez que os que estavam acordados nao tinham ouvido nada. A Capita-medica Ernst prescrevera uma cura muito simples e eficaz para isso; durante as horas de sono, o acampamento era agora embalado por uma suave e discreta musica de fundo.
Nessa noite, o Comandante Norton achou o remedio inadequado. Nao cessava de agucar o ouvido na escuridao, e sabia de que estava a escuta. Mas, embora uma levissima aragem lhe acariciasse o rosto de tempos a tempos, nao havia som algum que pudesse ser interpretado como o de um vento que se levantasse ao longe. E tampouco qualquer dos grupos de exploracao comunicou algo fora do comum.
Em todo caso, por volta de meia-noite, hora da nave, ele ferrou no sono. Havia sempre um homem de plantao a mesa de comunicacoes, para a eventualidade de alguma mensagem urgente. Nao se consideravam necessarias quaisquer outras precaucoes.
Nem mesmo um furacao poderia ter produzido o som que o acordou, e com ele o acampamento inteiro no mesmo instante. Dir-se-ia que o ceu estava caindo ou que Rama rachara e se estava partindo em dois. Primeiro um «crrrac!» de rebentar os ouvidos, depois uma longa serie de estrondos cristalinos, como se um milhao de estufas de vidro estivessem sendo demolidas. Isso durou varios minutos, conquanto parecessem horas; e ainda continuava aparentemente distanciando-se cada vez mais, quando Norton chegou a mesa de comunicacoes.
— Controle Central! Que foi que aconteceu?
— Um momentinho, Capitao. E la para os lados do Mar. Estamos focalizando o projetor sobre ele.
Oito quilometros acima, no eixo de Rama, o projetor comecou a vasculhar a planicie com o seu circulo de luz. Alcancou a margem do Mar e seguiu rente a ela. A um quarto do caminho em redor da superficie cilindrica, imobilizou-se.
La em cima, no ceu — ou aquilo que a mente ainda insistia em chamar o ceu — algo de extraordinario estava acontecendo. A principio, Norton teve a impressao de que o Mar houvesse entrado em ebulicao. Ja nao se mantinha imovel e gelado, prisioneiro de um infindavel inverno; uma area enorme, de quilometros de largura, se movia turbulentamente. E ia mudando de cor: uma larga faixa branca avancava atraves do gelo.
De repente, uma laje que media talvez um quarto de quilometro num dos lados comecou a inclinar-se para cima, como um alcapao que se abre. Lenta e majestosamente, alcou-se para o ceu, reluzindo e cintilando a luz do projetor. Depois deslizou para tras e desapareceu sob a superficie, enquanto um vagalhao de agua espumejante corria em todas as direcoes a partir do ponto de submersao.
So entao o Comandante Norton compreendeu plenamente o que estava acontecendo. O gelo comecava a quebrar-se. Durante todos esses dias e semanas o Mar estivera degelando, la no fundo. Era dificil concentrar-se por causa do tremendo estrepito que ainda enchia o pequeno mundo, ecoando no seu ceu, mas Norton procurou encontrar um motivo para tao dramatica convulsao. Quando um lago ou rio gelado degelava na Terra, nao acontecia nada semelhante a isto…
Mas claro! A razao era assaz evidente, agora que a coisa tinha acontecido. O Mar estava degelando de baixo para cima, a proporcao que o calor solar penetrava o casco de Rama. E quando o gelo se converte em agua, o seu volume diminui…
De forma que o Mar se estivera afundando sob a camada superior de gelo e a deixara sem suporte. Dia a dia, a pressao se fora acumulando; agora a banda de gelo que circundava o equador de Rama desmoronava como uma ponte que perde o seu pilar central. Esfarelava-se em centenas de ilhas flutuantes que se iriam acotovelar e entrechocar ate que tambem elas se derretessem. Norton sentiu o sangue esfriar-lhe repentinamente nas veias quando se lembrou dos planos que faziam ainda na vespera, de alcancar Nova Iorque em treno…
O tumulto amainava rapidamente; a guerra entre o gelo e a agua ficara temporariamente paralisada. Dentro de algumas horas, com a crescente elevacao da temperatura, venceria a agua e os ultimos vestigios do gelo desapareceriam. Mas no fim da historia o gelo e que seria o vencedor quando Rama tivesse dado volta ao Sol e mergulhado mais uma vez na noite interestelar.
Norton lembrou-se de comecar a respirar novamente, depois chamou o grupo que se achava mais proximo do Mar. Para grande alivio dele, o Ten. Rodrigo respondeu em seguida. Nao, a agua nao chegara ate eles. Nenhuma onda de ressaca ultrapassara a beira da escarpa.
— De modo que agora sabemos — acrescentou com perfeita serenidade — por que existe uma escarpa.
Norton concordou em silencio; «mas isto nao explica», pensou la consigo, «por que a escarpa e dez vezes mais alta na margem meridional»…
O projetor do Cubo continuava a vasculhar o mundo. O Mar agora desperto se ia acalmando aos poucos e ja nao corria aquela espuma branca fervilhante de baixo dos bancos de gelo emborcados. No espaco de quinze minutos o grosso da convulsao terminou.
Mas Rama ja nao era um mundo silencioso; tinha despertado do seu sono, e de'quando em quando se ouvia o som de gelo triturado ao se chocarem dois icebergs um de encontro ao outro.
A primavera chegara um pouco tarde, pensou Norton, mas estava findo o inverno.
E la estava aquela brisa de novo a soprar, mais forte do que nunca. Rama o tinha avisado suficientemente; eram horas de partir.
Ao aproximar-se da marca que assinalava a metade do caminho, o Comandante Norton sentiu-se mais uma vez grato pela escuridao que impedia a vista para cima — e para baixo. Embora soubesse que tinha ainda por galgar mais de dez mil degraus e pudesse ver, com os olhos da imaginacao, a ingreme curva ascendente, o fato de so enxergar uma pequena porcao dela tornava a perspectiva mais suportavel.
Esta era a sua grande ascensao, e aprendera bastante com os seus erros na primeira. A grande tentacao era subir com demasiada rapidez a essa gravidade baixa; era tao facil galgar cada degrau que custava adotar o ritmo lento e perseverante que se fazia necessario. Mas, se assim nao fosse, depois de uns poucos milhares de degraus estranhas dores comecavam a fazer-se sentir nas coxas e nas panturrilhas. Musculos que a gente nunca soubera que existiam comecavam a protestar, e era preciso intercalar periodos de repouso cada vez mais longos. La pelo fim, ele passara mais tempo descansando do que subindo, e mesmo assim nao bastava. Andou dois dias