— Com todo o respeito que se deve ao Sr. Embaixador — disse o Dr. Conrad Taylor no seu tom mais desrespeitoso, — creio que podemos excluir como ingenuo o temor de uma intervencao malevola. Criaturas tao avancadas como sao os ramaianos devem ter uma moral nao menos desenvolvida. Se assim nao fosse teriam destruido uns aos outros — como estivemos a ponto de fazer no seculo XX. Esclareci bem este ponto no meu novo livro, Ethos e Cosmos. Espero que o senhor tenha recebido o seu exemplar.
— Sim, e muito obrigado, embora, infelizmente, a premencia de outros assuntos nao me tenha permitido le-lo alem da introducao. Todavia, a tese geral nao e novidade para mim. Talvez nao tenhamos intencoes malevolas para com um formigueiro, mas, se desejamos construir uma casa no mesmo local…
— Isto e tao ruim quanto as ideias do partido pandorista! Nada menos que xenofobia interestelar!
— Por favor, cavalheiros! Assim nao vamos a parte alguma. O Sr. Embaixador continua com a palavra.
O Presidente enviou um olhar severo atraves de trezentos e oitenta mil quilometros de espaco a Conrad Taylor, que se calou a contragosto, como um vulcao que aguarda a sua hora.
— Obrigado — disse o Embaixador de Mercurio. — O perigo pode ser pouco provavel, mas quando esta em jogo o futuro da especie nao podemos nos arriscar. E, se me permitem dize-lo, a nos, os mercurianos, isso interessa particularmente. Talvez tenhamos mais razao para nos alarmarmos do que quaisquer outros.
O Dr. Taylor emitiu um «pfu!» bem audivel, mas outra carranca proveniente da Lua lhe impos silencio.
— Por que Mercurio mais do que qualquer outro planeta? — perguntou o Presidente.
— Vejam a dinamica da situacao. Rama ja se acha dentro da nossa orbita. Que vai dar volta ao Sol e partir novamente para o espaco nao e mais do que uma suposicao. E se ele executar uma manobra de freagem? Se o fizer, sera no perielio, dentro de uns trinta dias. Os meus cientistas me dizem que, se toda essa mudanca de velocidade se realizar aqui, Rama terminara numa orbita circular a apenas vinte e cinco milhoes de quilometros do Sol. Dessa posicao, poderia dominar o Sistema Solar.
Por longo tempo ninguem — nem mesmo Conrad Taylor — pronunciou uma so palavra. Todos os membros do Comite concentravam o seu pensamento nessa gente intratavel, os mercurianos, tao bem representados ali pelo seu Embaixador.
Para a maioria das pessoas, Mercurio era uma imagem bastante aproximada do Inferno. Pelo menos, servia enquanto nao aparecesse outra pior. Mas os mercurianos se orgulhavam do seu esquisito planeta, com seus dias mais longos do que os anos, seus duplos nasceres e pores-do-sol, seus rios de metal derretido… Em comparacao, a Lua e Marte e tinham sido, por assim dizer, meras brincadeiras. So depois que os homens houvessem pousado em Venus (se algum dia la pousassem), iriam deparar-se com um ambiente mais hostil que o de Mercurio.
E contudo, esse mundo se revelara, sob muitos aspectos, a chave do Sistema Solar. Em retrospecto isso parecia obvio, mas havia ja quase um seculo que durava a Era Espacial quando o fato foi percebido. Agora, os mercurianos nunca deixavam que ninguem os esquecesse.
Muito antes de os homens chegarem la, a densidade anormal de Mercurio estava a indicar os elementos pesados que ele continha; mesmo assim, a sua riqueza ainda causava pasmo, e adiara por mil anos todo temor de que os metais essenciais a civilizacao humana viessem a exaurir-se. E esses tesouros estavam localizados, como por encomenda, num mundo em que a forca do Sol era dez vezes maior do que na frigida Terra.
Energia sem limites; metais sem limites: eis o que era Mercurio. Seus grandes lanca-foguetes magneticos podiam enviar produtos manufaturados a qualquer ponto do sistema solar. O planeta tambem podia exportar energia, tanto sob a forma de isotopos transuranianos sinteticos como de radiacao pura. Alguem chegara a propor que se descongelasse um dia o gigantesco Jupiter com os lasers mercurianos, mas essa ideia nao fora bem recebida nos outros mundos. Uma tecnologia capaz de cozinhar Jupiter ofereceria muitas e1 tentadoras possibilidades de chantagem interplanetaria.
So o fato de se ter expressado uma tal preocupacao dizia muito sobre a atitude geral para com os mercurianos. Eram respeitados pela sua rijeza e sua habilidade como engenheiros, e admirados pela maneira como tinham conquistado um mundo tao espantoso. Mas nao os estimavam, e muito menos depositavam neles inteira confianca.
Ao mesmo tempo, era possivel apreciar-lhes o ponto de vista. Os mercurianos, segundo um gracejo corrente, portavam-se como se o Sol fosse sua propriedade particular. Estavam presos a ele por uma entranhada relacao de amor e odio, como os vikings de outrora tinham sido ligados ao mar, os nepaleses ao Himalaia e os esquimos a tundra. Sentir-se-iam os mais infelizes dos seres se alguma coisa se interpusesse entre eles e a forca natural que lhes dominava e controlava a vida.
Por fim o Presidente rompeu o silencio. Ainda se lembrava do sol da india e estremecia so de pensar no sol de Mercurio. Tomava, por isso, muito a serio os mercurianos, embora os considerasse como rudes barbaros tecnologicos.
— Seu argumento me parece ter algum merito, Sr. Embaixador — disse, falando lentamente. — Tem alguma proposta a fazer?
— Sim, senhor. Antes de sabermos que medidas tomar, precisamos conhecer os fatos. Conhecemos a geografia de Rama — se e licito usar essa expressao — mas nao fazemos ideia de suas potencialidades. E a chave de todo o problema e este: Rama possui um sistema de propulsao? Pode ele mudar de orbita? Seria muito interessante ouvir a opiniao do Dr. Perera.
— Tenho refletido muito sobre esse assunto — respondeu o exobiologista. — Evidentemente, Rama deve ter recebido o seu impulso inicial de algum dispositivo de lancamento, mas talvez nao tenha sido mais que um empurrao exterior. Se, em verdade, tem propulsao instalada a bordo, nao encontramos vestigios dela. E certo que nao ha canos de descarga de foguetes nem coisa parecida em qualquer ponto do casco externo.
— Podiam estar escondidos.
— E verdade, mas qual seria a vantagem disso? E onde estao os tanques de combustivel, as fontes de energia? O casco principal e inteirico — verificamos isso por meio de testes sismicos. As cavidades da calota setentrional podem ser explicadas pelo sistema de eclusas de ar.
— Resta, pois, a extremidade meridional de Rama, que o Comandante Norton nao conseguiu atingir devido aquela cintura de agua com dez quilometros de largo. Ha toda sorte de mecanismos'e estruturas curiosas nesse Polo Sul — os senhores viram as fotos. Para que servem, e o que ninguem sabe ate agora.
«Mas ha uma coisa de que estou bastante certo. Se Rama possui de fato um sistema de propulsao, e algo completamente inacessivel aos nossos atuais conhecimentos. Teria, mesmo, de ser a fabulosa «propulsao espacial», de que se vem falando ha duzentos anos.
— O senhor nao a poria fora de cogitacao?
— Certamente que nao. Se pudermos provar que Rama tem uma propulsao espacial — ainda que nao aprendamos nada sobre o seu modo de operar — teremos feito uma grande descoberta. Pelo menos, saberemos que tal coisa e possivel.
— Mas que e, enfim, essa propulsao espacial? — perguntou o Embaixador da Terra num tom de voz meio queixoso.
— Qualquer sistema de propulsao, Sir Robert, que nao funcione com base no principio do foguete. O termo antigravidade — se isso e possivel — seria muito apropriado. De momento, nao sabemos onde procurar uma tal propulsao e a maioria dos cientistas duvidam que ela exista.
— Nao existe — atalhou o Prof. Davidson. — Newton estabeleceu isso uma vez por todas. Nao se pode ter acao sem reacao>As propulsoes espaciais sao um contra-senso, podem crer no que lhes digo.
— Talvez o senhor tenha razao — replicou Perera com uma brandura desacostumada. — Mas, se Rama nao tem uma propulsao espacial, nao tem propulsao nenhuma. Simplesmente nao ha espaco para um sistema de propulsao convencional, com os seus enormes tanques de combustivel.
— E dificil imaginar um mundo inteiro sendo empurrado de ca para la — disse Dennis Solomons. — Que aconteceria aos objetos que vao no seu interior? Seria preciso aparafusar tudo. Extremamente incomodo.
— Bem, a aceleracao seria provavelmente muito baixa. O maior problema seria a agua do Mar Cilindrico. Como impedir que ela… A Voz de Perera apagou-se de repente e seus olhos se vidraram. Parecia estar a beira de uma crise epileptica ou mesmo de um ataque cardiaco. Os colegas olhavam-no alarmados; mas, refazendo-se subitamente, ele deu um murro na mesa e gritou:
— Pois claro! Isso explica tudo! A escarpa meridional! Agora sim, faz sentido!
— Nao para mim — resmungou o Embaixador da Lua, exprimindo o sentir de todos os presentes.
— Vejam esta secao longitudinal de Rama — continuou Perera, alvorocado, desdobrando o seu mapa. — Tem as suas copias ai? O Mar Cilindrico esta contido entre duas escarpas, que circundam completamente o